domingo, 1 de fevereiro de 2015

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos,

Está começando mais uma edição do Campeonato Estadual, que certamente se arrastará, aos bocejos, até seu desfecho. Pelo seu prelúdio, não é difícil prever que a competição de 2015 ficará muito mais marcada pelas confusões extracampo do que pelo medíocre futebol nela apresentado.

Outro dia chamei a atenção, em um texto, para o retorno de Eurico Miranda, que muitos tentaram, ou tentam, reduzir a um personagem folclórico, quase cômico. Fui tachado de saudosista. Pois reitero, amparado pelos últimos acontecimentos, minha opinião. O sujeito não deve, em nenhuma hipótese, ser subestimado. Eurico é um produto dos anos 80/90 e a estrutura do nosso futebol mudou pouco, ou nada, desde então. O agora presidente do Vasco possui notável capacidade de articulação e sabe transitar com desenvoltura entre os fétidos e escuros porões e corredores do submundo da cartolagem.

Que o Flamengo saia do campo das ideias, onde tem defendido sua posição de forma clara, e parta para ações efetivamente pragmáticas. Que se tenha noção de que não adianta apenas mostrar que A ou B é “chato, feio e bobo”. Mantendo-se apenas a retórica, logo veremos um Vasco x Flamengo em São Januário, com torcida única, sob o beneplácito das autoridades estaduais e municipais. Ação.

Confio na diretoria.

Isto posto, vamos à história de hoje. Boa leitura.

1994.

A sensação é de fim de feira. Sem dinheiro, o Flamengo começa a desmontar enfurecidamente seu elenco, reconhecidamente um dos melhores do país. O primeiro é Casagrande, que força sua saída para o Corinthians. A seguir, Renato Gaúcho, desgastado pela deterioração da relação com a maioria dos jogadores (especialmente os mais jovens) e cansado dos sucessivos atrasos salariais, acerta sua transferência para o Atlético-MG. Mas a joia da coroa são os garotos. O primeiro a sair é Marcelinho, negociado por US$ 500 mil com o Corinthians. Djalminha, que estava emprestado ao Guarani, é vendido por outros US$ 500 mil. Mais US$ 600 mil, e Júnior Baiano vai defender o São Paulo. Piá também sai para o futebol paulista, reforçando o Santos. Com o dinheiro, o clube liquida pagamentos de salários atrasados e fecha a compra do lateral Marcos Adriano (que estava emprestado pelo São Paulo) por US$ 200 mil.

Assim, as referências do elenco do Flamengo passam a ser o goleiro Gilmar (que prefere ignorar o assédio do Palmeiras e manter-se em um clube onde é ídolo, facilitando seu caminho para a Copa), o meia-atacante Nélio, os volantes Charles Guerreiro, Fabinho e Marquinhos (que não vai embora por pouco), e o zagueiro Rogério. Pouco, muito pouco, como logo percebe o treinador Júnior, que começa a expor sua insatisfação com o baixo nível do grupo.

Para o início da temporada, uma boa nova. A diretoria consegue a ampliação do Estádio da Gávea, que, abraçado por arquibancadas tubulares, passa a poder abrigar 22.500 espectadores. A reforma sai de graça, e o acordo prevê participação da empresa construtora na bilheteria dos jogos lá realizados. O Flamengo, enfim, conta com seu “alçapão”, capaz de ser utilizado na esmagadora maioria dos jogos em que possuir o mando de campo.

A inauguração da “Nova Gávea”, ou “Bombonera do Flamengo”, conta com um sparring aparentemente adequado, o modesto FC Grasshopper, campeão suíço. Estádio novo, camisa nova (a Umbro recria as listras mais finas), mas o time, também desagradavelmente novo (praticamente a “rapa” do ano anterior), decepciona, leva um vareio de bola e é derrotado (0-2), enfurecendo sua torcida. O presidente comenta, embasbacado, “temos que levar em conta que perdemos para um adversário de alto nível. Não é campeão suíço à toa”. O treinador Júnior, menos condescendente, põe o cargo à disposição, causando séria crise que somente é resolvida após várias reuniões e a promessa de reforços.

Para o início do Estadual, o Flamengo se reforça às pressas, conseguindo quatro jogadores, todos por empréstimo: os meias Carlos Alberto Dias e Boiadeiro, o atacante baiano Charles e a estrela da companhia, o talentoso Valdeir “The Flash”, este trazido junto ao São Paulo ao custo de US$ 275 mil por um contrato de QUATRO meses.

Após a enésima ameaça de criação de uma Liga Independente, os três grandes clubes dissidentes (Flamengo, Fluminense e Botafogo) e a Federação chegam a um entendimento, criando uma fórmula de disputa mais atraente para o Estadual. Um turno curto classificatório e o título decidido em um Quadrangular Final. O Vasco e o Fluminense são os clubes que mais se reforçam (o Vasco contrata Dener, Ricardo Rocha, o tricolor traz Branco, Jandir, Luiz Henrique e Mário Tilico, entre outros) e largam como favoritos.

O Flamengo demora a engrenar. Perde de forma contundente alguns clássicos (1-3 Vasco, 2-4 Fluminense), além de protagonizar um vexame na partida contra o Madureira, na “Nova Gávea” (que recebe quase 10 mil). Não tanto pelo pífio empate de 1-1, mas pelas cenas de terror comandadas pelas Torcidas Organizadas, que encharcam o campo de pedras e bombas. Diante do ocorrido, a diretoria toma uma atitude. Não atuará mais na Gávea, e com isso as arquibancadas tubulares permanecerão às moscas durante todo o ano, enquanto o time passa a jogar em Moça Bonita, voltando a pagar as tais taxas de que se julgava livre quando montou o seu “alçapão”.

De qualquer forma, o rubro-negro se classifica às finais, apesar do futebol pouco convincente. De positivo, os gols de Charles, as boas atuações de Boiadeiro e a ascensão de um garoto aloirado, muito arisco e veloz, o ponta Sávio, que para surpresa de muitos coloca o badalado Valdeir na reserva, junto com seu apático companheiro Dias, a grande decepção entre os reforços.

No Quadrangular Final, o Flamengo, tido como azarão, atropela o favorito Fluminense (3-1) em uma brilhante atuação de Sávio. Na semana seguinte, outro 3-1 sobre o Botafogo de Túlio, e a certeza da briga pelo título. Vem a partida contra o Vasco, e o Flamengo, em uma das viradas mais sensacionais da história recente do clássico, vence por 2-1, os dois gols de Charles, e assume a liderança do Quadrangular. O time, dentro de campo, mostra de longe o melhor futebol nessa fase final, crescendo no momento certo. O antes inseguro Rogério agora enfim se firma como liderança, o goleador Charles justifica sua fama de artilheiro, o volante Marquinhos volta a atuar em alto nível e o meia Boiadeiro simplesmente gasta a bola e é sério candidato a craque do campeonato. E há o infernal Sávio, simplesmente imarcável, imparável e ponto de desequilíbrio do ataque rubro-negro. Além da surpreendente recuperação de Valdeir, que volta a se tornar um jogador perigosíssimo, entrando no final das partidas com gols e jogadas importantes. Tudo parece apontar para o inevitável título do Flamengo.

Aí começa o extracampo.

A tabela do Quadrangular prevê uma reunião após a realização dos jogos de ida, onde será definida a ordem das três rodadas finais. Contra todos os prognósticos, a partida entre Flamengo e Vasco, que seria a final teórica, é fixada logo na primeira rodada do returno. O Vasco quer reverter de imediato a inesperada desvantagem na tabela. O Flamengo, após enfrentar o cruzmaltino, jogará contra o Botafogo, encerrando o campeonato em um Fla-Flu na última rodada. Assim está escrito. Em tese.

Flamengo e Vasco fazem nova partida emocionante, mas dessa vez mais truncada, menos aberta. O Flamengo abre o placar logo no início, mas sofre o empate enquanto alguns jogadores ainda se abraçavam. Resta defender sua liderança na bicuda e na porrada, o time recua e sofre um violento bombardeio, sustentando o importantíssimo 1-1 graças à atuação de gala de Gilmar. A partida acaba marcada pelo que aconteceu em seu primeiro minuto (um emocionante coro que uniu o Maracanã em homenagem a Senna) e no seu derradeiro instante, um gol do Vasco muito bem anulado, um lance que paralisou o jogo por vários minutos. No fim, o empate e a certeza do título encaminhado. O Flamengo é o melhor time dessa reta final, o Vasco está desanimado, acuado, alguns jogadores começam a se estranhar, nada parece tirar a taça da Gávea.

Mas, dois dias antes, o Fluminense arromba 7-1 no Botafogo. Essa goleada muda o campeonato.

O tricolor, que até então se arrastava no Quadrangular, catando pontos aqui e ali, subitamente se vê com chances de título. E não contém a euforia após a goleada bíblica. Certamente entrará comendo grama contra seu próximo adversário, o Vasco, conforme a tabela. O Flamengo enfrentará o despedaçado Botafogo, e, a depender da combinação de resultados, já poderá sair campeão por antecipação.

Mas, se times ganham jogos, diretorias ganham campeonatos. E também os perdem.

O Conselho Arbitral se reúne para definir qual será o jogo de domingo (Fla-Bota ou Vasco-Flu). No entanto, em uma manobra surpreendente e sub-reptícia, o Vasco consegue colocar em pauta a votação para a inversão das rodadas do próprio Quadrangular. E a emplaca. No dia seguinte, o Rio de Janeiro acorda, atordoado, sabendo que domingo tem Fla-Flu.

E o resto é história.

Boa semana a todos.