Saudações flamengas a
todos,
Voltando das “férias”,
encaro com certa animação as perspectivas para o futebol flamengo em 2015, em
que pese o fato de, a rigor, o elenco ter sido mais reforçado pelas peças que
saíram do que propriamente pelas contratações. Por enquanto, seguimos com uma
versão um pouco melhorada do mediano time que nos fez padecer em 2014, como
atesta a atuação opaca na vitória de quarta-feira sobre o nosso rival (?).
Aliás, o Vasco já vai chegando ao terceiro ano sem nos vencer. Se levarmos em
conta que o Flamengo atravessou o período de 1984 a 2002 sem sua equipe
principal ser derrotada pelo América, creio que essa escrita contra o
cruzmaltino pode ainda prosperar um pouco.
Mas não é das
chineladas sistemáticas sobre o nosso Español do Balneário que quero falar
nesse texto que abre o ano. É que, há poucas semanas, andou ganhando certo
vulto a possibilidade de o Flamengo tirar do Fluminense seu principal jogador,
numa operação a meu ver inverossímil no momento (o clube ainda não está pronto
para esse tipo de peripécia). De qualquer forma, a possibilidade me remeteu a um
momento semelhante, que resgato agora nas linhas que seguem. Boa leitura.
1983.
Os anos 80 mal se
iniciaram e já imprimem traços marcantes no cotidiano do carioca. Cresce a
preocupação com o corpo, o bem-estar, jovens de espírito lotam academias de
ginástica e barracas de sucos naturais e a prática de esportes, radicais ou
não, cresce vertiginosamente. Em paralelo, muitos se voltam para a busca do
crescimento individual e espiritual, recorrendo a práticas como tarô,
tai-chi-chuan, astrologia. Nesse contexto, surge com força o conceito de
inferno astral, que, passadas várias décadas, ainda não é consenso entre os
especialistas da área.
Seja lá o que for,
inferno astral é uma palavra que pode definir com razoável clareza o que vive o
Flamengo na passagem de 1982 a 1983. Após dois anos conquistando rigorosamente
tudo, o rubro-negro perde, no intervalo de dias, a Libertadores e o Estadual,
reveses com os quais o clube, aparentemente, não está nem um pouco preparado
para lidar.
E tudo começa a dar
errado.
O primeiro alvo é o
agora contestado treinador Carpegiani, muito criticado por algumas intervenções
infelizes e substituições equivocadas nos jogos da reta final da temporada.
Além disso, nenhuma das contratações por ele indicadas mostrou resultado
(Popéia, Zezé, Jasson), salvo talvez o ponta Wilsinho “Xodó da Vovó”,
(ex-Vasco) que, após bom início, sofreu uma lesão e não conseguiu retomar o
nível inicial. Ademais, o temperamento difícil do treinador abre algumas
fissuras na tão decantada união do grupo, e seu nome já está longe de ser uma
unanimidade na Gávea.
Acuado, Carpegiani
alega que o pífio desempenho rubro-negro decorreu de um equivocado trabalho de
condicionamento físico, o que o faz angariar mais um desafeto, o preparador José
Roberto Francalacci. O bate-boca entre os dois ganha os jornais e ribomba na
demissão de Francalacci, que sai atirando pesado no treinador.
Sentindo a posição
fragilizada de Carpegiani, o atacante Nunes dá uma contundente entrevista aos
jornais, em que expõe todas as mazelas do vestiário. “Ele é desonesto. Muitos
aqui não gostam dele, mas nunca vão falar. Sei que ele me persegue”, entre outras
declarações fortes. As palavras de Nunes explodem outra crise e a situação do
goleador (que também não anda em boa fase) se torna insustentável. Nunes é
suspenso e treinará à parte até ser emprestado ao Botafogo, semanas mais à
frente.
Como se não fosse o
suficiente, a Gávea ainda sofre com a recente perda de Domingos Bosco,
supervisor que com seu carisma vinha sendo uma das poucas unanimidades dentro
do clube. Bosco, em seus últimos dias, conseguiu costurar a difícil renovação
de contrato de Carpegiani, e vinha trabalhando na tentativa de amenizar o
destroçado ambiente interno do clube. No entanto, foi surpreendido e vitimado
por um coágulo alojado no cérebro, uma morte fulminante e extremamente sentida.
O Flamengo está
devastado.
Naturalmente, as hienas
e cassandras do jornalismo, boa parte composta de botafoguenses, apressa-se em
anunciar a morte de um gigante. As páginas são encharcadas com termos como “decadência”,
“agonia”, “triste fim”, "novo Botafogo", entre outros mal redigidos epitáfios. Com efeito, é
grande a expectativa para o início de 1983. Entre os rivais.
Enquanto isso, o
Flamengo, aos cacos, vai buscando uma pequena reformulação. Há uma base de
juniores pronta para ser aproveitada (Élder, Júlio César, Ademar, Bigu, Vinícius,
entre outros), mas que deverá ser utilizada aos poucos. Nomes como Antunes,
Popéia, Jasson, Zezé, Peu e Ronaldo Marques estão fora dos planos e serão
negociados. Além disso, alguns jogadores já desgastados com a torcida também não
irão permanecer. É o caso de Tita, emprestado ao Grêmio em troca do goleador
Baltazar, operação que, a princípio, durará um ano (ironicamente, a torcida não
gosta da troca e protesta na frente da Gávea). O goleiro Cantarele, que se
envolveu em vários atritos com Raul, aproxima-se do Náutico, mas a transação
somente ocorrerá no segundo semestre. E há o caso de Nunes, definitivamente
fora dos planos.
E assim, com Baltazar e
o obscuro lateral-direito Cocada (trazido do Operário-MS) como novidades, o
Flamengo parece ter fechado seu elenco para o Campeonato Brasileiro, e inicia
os preparativos para a estreia, contra o Santos. Mas, a três dias da partida,
nova bomba irá estourar na Gávea.
Noite. Uma reunião.
Quatro horas de negociações. E o desfecho.
Robertinho, o melhor e
principal jogador do Fluminense, é o novo jogador do Flamengo.
O ponta-direita
Robertinho, revelado nas Laranjeiras, rapidamente ascendeu à equipe titular do
tricolor, sendo peça fundamental na conquista do Estadual de 1980. Baixinho e
extremamente arisco, caiu nas graças de sua torcida, despontando como um dos
principais atacantes do futebol carioca. Desde as divisões de base figurou em
convocações para a Seleção Brasileira (foi campeão no Torneio de Toulon em 1980
ao lado se seu grande amigo Mozer), tendo sido lembrado por Telê Santana em
várias oportunidades. Após a venda de Edinho, passou a ostentar a condição de
principal jogador do Fluminense, mas, diante da aguda crise financeira do
clube, não conseguiu evitar que o clube passasse a patinar em posições
coadjuvantes. Desgastado e caro, passou a integrar uma lista de “negociáveis”. Mas
os tricolores não previam a agressiva investida do Flamengo.
A negociação, em
definitivo, envolve a ida de Wilsinho para as Laranjeiras, mais uma gorda
compensação financeira ao Fluminense, a maior parte à vista. Negócio
irrecusável e Robertinho, ansioso, arruma as malas em direção à Gávea. Ágil, a
diretoria flamenga consegue inscrever o jogador a tempo, e Robertinho está apto
para estrear domingo, contra o Santos.
Após o jogo (vitória
flamenga por 2-0), em que teve razoável atuação, Robertinho declarará, tom de
exclamação, quase numa confissão, sua sensação de choque ao se deparar com a
grandeza do Flamengo. “Tudo aqui é diferente, jogar é mais fácil, os jogadores
se entendem, há uma estrutura, enfim”.
Robertinho se renderá à
grandeza do Flamengo. E por ela será engolido.
Robertinho manteve-se
como titular nas primeiras fases do Brasileiro e da Libertadores, com boas
atuações e até alguns gols. Mas não resistiu à turbulência que derrubou
Carpegiani, perdeu espaço e, com Carlos Alberto Torres, terminou o Brasileiro
na reserva. Ainda recuperou a posição no Mundialito e no início do Estadual,
mas foi soterrado pelos desastrosos resultados do Flamengo na Taça Guanabara.
Com a contratação do ponta-direita Lúcio, que estava voando, perdeu
definitivamente espaço no clube. Foi negociado com o Palmeiras no início de
1984 e, após perambular por alguns clubes, somente voltaria a se destacar já em
1987, defendendo o Sport que se tornaria finalista do inacabado Módulo Amarelo,
a Segunda Divisão do Brasileiro daquele ano.
Pelo Flamengo, sua
jogada mais marcante, sem dúvida, é o cruzamento que redundou no gol de cabeça
de Adílio, o terceiro na final do Brasileiro de 1983.