domingo, 25 de janeiro de 2015

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos,

Voltando das “férias”, encaro com certa animação as perspectivas para o futebol flamengo em 2015, em que pese o fato de, a rigor, o elenco ter sido mais reforçado pelas peças que saíram do que propriamente pelas contratações. Por enquanto, seguimos com uma versão um pouco melhorada do mediano time que nos fez padecer em 2014, como atesta a atuação opaca na vitória de quarta-feira sobre o nosso rival (?). Aliás, o Vasco já vai chegando ao terceiro ano sem nos vencer. Se levarmos em conta que o Flamengo atravessou o período de 1984 a 2002 sem sua equipe principal ser derrotada pelo América, creio que essa escrita contra o cruzmaltino pode ainda prosperar um pouco.

Mas não é das chineladas sistemáticas sobre o nosso Español do Balneário que quero falar nesse texto que abre o ano. É que, há poucas semanas, andou ganhando certo vulto a possibilidade de o Flamengo tirar do Fluminense seu principal jogador, numa operação a meu ver inverossímil no momento (o clube ainda não está pronto para esse tipo de peripécia). De qualquer forma, a possibilidade me remeteu a um momento semelhante, que resgato agora nas linhas que seguem. Boa leitura.

1983.

Os anos 80 mal se iniciaram e já imprimem traços marcantes no cotidiano do carioca. Cresce a preocupação com o corpo, o bem-estar, jovens de espírito lotam academias de ginástica e barracas de sucos naturais e a prática de esportes, radicais ou não, cresce vertiginosamente. Em paralelo, muitos se voltam para a busca do crescimento individual e espiritual, recorrendo a práticas como tarô, tai-chi-chuan, astrologia. Nesse contexto, surge com força o conceito de inferno astral, que, passadas várias décadas, ainda não é consenso entre os especialistas da área.

Seja lá o que for, inferno astral é uma palavra que pode definir com razoável clareza o que vive o Flamengo na passagem de 1982 a 1983. Após dois anos conquistando rigorosamente tudo, o rubro-negro perde, no intervalo de dias, a Libertadores e o Estadual, reveses com os quais o clube, aparentemente, não está nem um pouco preparado para lidar.

E tudo começa a dar errado.

O primeiro alvo é o agora contestado treinador Carpegiani, muito criticado por algumas intervenções infelizes e substituições equivocadas nos jogos da reta final da temporada. Além disso, nenhuma das contratações por ele indicadas mostrou resultado (Popéia, Zezé, Jasson), salvo talvez o ponta Wilsinho “Xodó da Vovó”, (ex-Vasco) que, após bom início, sofreu uma lesão e não conseguiu retomar o nível inicial. Ademais, o temperamento difícil do treinador abre algumas fissuras na tão decantada união do grupo, e seu nome já está longe de ser uma unanimidade na Gávea.

Acuado, Carpegiani alega que o pífio desempenho rubro-negro decorreu de um equivocado trabalho de condicionamento físico, o que o faz angariar mais um desafeto, o preparador José Roberto Francalacci. O bate-boca entre os dois ganha os jornais e ribomba na demissão de Francalacci, que sai atirando pesado no treinador.

Sentindo a posição fragilizada de Carpegiani, o atacante Nunes dá uma contundente entrevista aos jornais, em que expõe todas as mazelas do vestiário. “Ele é desonesto. Muitos aqui não gostam dele, mas nunca vão falar. Sei que ele me persegue”, entre outras declarações fortes. As palavras de Nunes explodem outra crise e a situação do goleador (que também não anda em boa fase) se torna insustentável. Nunes é suspenso e treinará à parte até ser emprestado ao Botafogo, semanas mais à frente.

Como se não fosse o suficiente, a Gávea ainda sofre com a recente perda de Domingos Bosco, supervisor que com seu carisma vinha sendo uma das poucas unanimidades dentro do clube. Bosco, em seus últimos dias, conseguiu costurar a difícil renovação de contrato de Carpegiani, e vinha trabalhando na tentativa de amenizar o destroçado ambiente interno do clube. No entanto, foi surpreendido e vitimado por um coágulo alojado no cérebro, uma morte fulminante e extremamente sentida.

O Flamengo está devastado.

Naturalmente, as hienas e cassandras do jornalismo, boa parte composta de botafoguenses, apressa-se em anunciar a morte de um gigante. As páginas são encharcadas com termos como “decadência”, “agonia”, “triste fim”, "novo Botafogo", entre outros mal redigidos epitáfios. Com efeito, é grande a expectativa para o início de 1983. Entre os rivais.

Enquanto isso, o Flamengo, aos cacos, vai buscando uma pequena reformulação. Há uma base de juniores pronta para ser aproveitada (Élder, Júlio César, Ademar, Bigu, Vinícius, entre outros), mas que deverá ser utilizada aos poucos. Nomes como Antunes, Popéia, Jasson, Zezé, Peu e Ronaldo Marques estão fora dos planos e serão negociados. Além disso, alguns jogadores já desgastados com a torcida também não irão permanecer. É o caso de Tita, emprestado ao Grêmio em troca do goleador Baltazar, operação que, a princípio, durará um ano (ironicamente, a torcida não gosta da troca e protesta na frente da Gávea). O goleiro Cantarele, que se envolveu em vários atritos com Raul, aproxima-se do Náutico, mas a transação somente ocorrerá no segundo semestre. E há o caso de Nunes, definitivamente fora dos planos.

E assim, com Baltazar e o obscuro lateral-direito Cocada (trazido do Operário-MS) como novidades, o Flamengo parece ter fechado seu elenco para o Campeonato Brasileiro, e inicia os preparativos para a estreia, contra o Santos. Mas, a três dias da partida, nova bomba irá estourar na Gávea.

Noite. Uma reunião. Quatro horas de negociações. E o desfecho.

Robertinho, o melhor e principal jogador do Fluminense, é o novo jogador do Flamengo.

O ponta-direita Robertinho, revelado nas Laranjeiras, rapidamente ascendeu à equipe titular do tricolor, sendo peça fundamental na conquista do Estadual de 1980. Baixinho e extremamente arisco, caiu nas graças de sua torcida, despontando como um dos principais atacantes do futebol carioca. Desde as divisões de base figurou em convocações para a Seleção Brasileira (foi campeão no Torneio de Toulon em 1980 ao lado se seu grande amigo Mozer), tendo sido lembrado por Telê Santana em várias oportunidades. Após a venda de Edinho, passou a ostentar a condição de principal jogador do Fluminense, mas, diante da aguda crise financeira do clube, não conseguiu evitar que o clube passasse a patinar em posições coadjuvantes. Desgastado e caro, passou a integrar uma lista de “negociáveis”. Mas os tricolores não previam a agressiva investida do Flamengo.

A negociação, em definitivo, envolve a ida de Wilsinho para as Laranjeiras, mais uma gorda compensação financeira ao Fluminense, a maior parte à vista. Negócio irrecusável e Robertinho, ansioso, arruma as malas em direção à Gávea. Ágil, a diretoria flamenga consegue inscrever o jogador a tempo, e Robertinho está apto para estrear domingo, contra o Santos.

Após o jogo (vitória flamenga por 2-0), em que teve razoável atuação, Robertinho declarará, tom de exclamação, quase numa confissão, sua sensação de choque ao se deparar com a grandeza do Flamengo. “Tudo aqui é diferente, jogar é mais fácil, os jogadores se entendem, há uma estrutura, enfim”.

Robertinho se renderá à grandeza do Flamengo. E por ela será engolido.

Robertinho manteve-se como titular nas primeiras fases do Brasileiro e da Libertadores, com boas atuações e até alguns gols. Mas não resistiu à turbulência que derrubou Carpegiani, perdeu espaço e, com Carlos Alberto Torres, terminou o Brasileiro na reserva. Ainda recuperou a posição no Mundialito e no início do Estadual, mas foi soterrado pelos desastrosos resultados do Flamengo na Taça Guanabara. Com a contratação do ponta-direita Lúcio, que estava voando, perdeu definitivamente espaço no clube. Foi negociado com o Palmeiras no início de 1984 e, após perambular por alguns clubes, somente voltaria a se destacar já em 1987, defendendo o Sport que se tornaria finalista do inacabado Módulo Amarelo, a Segunda Divisão do Brasileiro daquele ano.


Pelo Flamengo, sua jogada mais marcante, sem dúvida, é o cruzamento que redundou no gol de cabeça de Adílio, o terceiro na final do Brasileiro de 1983.