sábado, 17 de janeiro de 2015

A Gilberto Cardoso, com Carinho.




Irmãos rubro-negros,

O post de hoje é uma singela homenagem àquele que é considerado o maior presidente da história do Clube de Regatas do Flamengo: Gilberto Cardoso.

Gilberto Cardoso foi presidente do Flamengo de 1951 a 1955.

Faleceu no exercício do cargo, em 25 de novembro de 1955, quando seu coração, já fragilizado, não suportou a emoção de assistir ao seu amado Flamengo conquistar, com uma cesta de Guguta no último segundo, o Campeonato Estadual de Basquete.

Quando assumiu o Flamengo, Gilberto Cardoso deparou com um clube em grave crise financeira, política e esportiva, vivendo um jejum de sete anos no Campeonato Carioca.

Com uma dedicação similar à de um devoto religioso, ele iniciou um trabalho profícuo, que culminou com a conquista do Tricampeonato Carioca de 1953/54/55, e com a consolidação do Flamengo como a maior potência olímpica do Brasil e da América Latina.

Para homenagear pessoa tão expressiva, reuni dois textos: um de Mario Filho (sempre ele), o outro de Edigar de Alencar (outro grande biógrafo rubro-negro). O primeiro foca na relação alucinada de Gilberto Cardoso com o Flamengo; o segundo, na religiosidade típica do torcedor rubro-negro, capaz de realizar as maiores loucuras por puro amor ao Mengo.

Apenas peço, com muita humildade e respeito, que os amigos leiam os dois textos com coração puro e alma rubro-negra, como certamente seria do agrado de Gilberto Cardoso.

Sem mais delongas, apresento-lhes, pelas mãos de Mario Filho e de Edigar de Alencar, Gilberto Cardoso.
...


“Imagine-se, noutro clube, Gilberto Cardoso. Estaria vivo até hoje mas não teria vivido, mais intensamente do que qualquer amante, aquela lua-de-mel furiosa, de dia e de noite, com o Flamengo. 

Entregaram-lhe o Flamengo para que o amasse à vontade. E Gilberto Cardoso amou o Flamengo, minuto a minuto, sabendo, que o sabia, que aquele amor o ia consumir, como uma chama ardendo sem parar.

Não largava o Flamengo, atrás dele, acompanhando-o, passo a passo, sendo feliz e desgraçado com ele. E para estar mais vezes perto dele, como se lhe segurasse a mão e lhe ouvisse as batidas do coração, ampliou as atividades do Flamengo. O Flamengo tinha de disputar todos os campeonatos, todos os torneios, todas as competições, onipresente, e ele junto.

Não faltava a um só match, a uma só prova do Flamengo. E vibrava tanto num gol como numa cortada ou numa cesta. Ou numa chegada de remo ou de atletismo, a quilha de um out-rigger cruzando a meta, o peito de um atleta rompendo o cordão de lã.

Era grato, de uma gratidão enternecida, por todos que lutavam pelo Flamengo, que davam uma vitória ao Flamengo. Não sabia como pagar o momento de prazer, pois era prazer mesmo, que recebera, como uma dádiva. Ou como uma carícia de mulher. Daí a peregrinação quase religiosa que fazia ao Palácio do Catete, ao Palácio Guanabara, aos Institutos, em busca de um emprego público para um atleta. Era como um romeiro visitando igrejas. Ou subindo escadas da Penha.

Tornara-se o médico de família, o velho médico quase desaparecido, de quem vestia a camisa rubro-negra. Não cobrava nada, podiam chamá-lo a qualquer hora, ia mesmo sem ser chamado para ver como estava passando o doente, e levava-lhe remédios.

Por isso, teve que abandonar o consultório, onde não era encontrado nunca, a não ser quando alguém do Flamengo lhe pedia uma consulta. Só atendia a atletas ou parentes de atletas do Flamengo. Era preciso um caso especialíssimo, de amigo ou de cliente antigo, para abrir uma exceção.

Vivia exclusivamente para o Flamengo. Ou de Flamengo, para ser mais exato.

Só achava tempo para o Flamengo. Então alongava o dia, ia buscar, por exemplo, um Teles da Conceição, altas horas da noite, na véspera de um campeonato de atletismo. Estavam tocando rádio aos berros na casa de um vizinho, Teles da Conceição não podia dormir.

E lá saía Gilberto Cardoso, sem jantar, que jantava tarde, às vezes um sanduíche, para apanhar o campeão do Flamengo num subúrbio distante. Trazia-o para o Hotel Leblon, onde morava só, num quarto que quase nunca se arrumava. Teles da Conceição, uma palmeira imperial de homem, não chegava na cama, as pernas longas de saltador em altura ficando de fora, sobrando penduradas. Gilberto Cardoso mandava juntar duas camas, trazer mais outro colchão. Só ficava descansado, como uma mãe velando um filho, vendo Teles da Conceição dormindo um sono de menino.

Não lhe bastava ainda. Sonhava com o Flamengo se espalhando mais e mais, com uma sede em cada bairro. Foi logo tratando de alugar um andar na Rua do Ouvidor. Era a sede do Flamengo da cidade. E anunciava outras que ficaram em sonho, o sonho de multiplicar o Flamengo, colocando-o bem à mão de todos os que o amassem.

Mas os dias só eram de vinte e quatro horas e Gilberto Cardoso tinha de ir para o Maracanã, para o Maracanãzinho, para a Sociedade Hípica, para a Gávea, o campo e a Casa Grande, para o palácio do Morro da Viúva, para a sede velha, para os campos, para as quadras, para as pistas. O Flamengo já estava em todo o lugar.

Sabia que, um dia, o coração não ia aguentar. De um certo modo, suicidava-se, conscientemente, de olhos abertos, pelo Flamengo. Quem poderia impedir esse suicídio de amor?

Um dia, no Maracanãzinho, num Fla-Flu de vôlei de moças, vi Gilberto Cardoso, acabado um set, carregando para o outro banco os agasalhos das meninas, como as chamava.

De repente parou, bem na minha frente, sem me ver, e cambaleou. Estava pálido, respirando fundo, desamparado. Pareceu-me que levava a piteira à boca, para disfarçar. Percebi que não queria que ninguém desconfiasse de nada. Não era a piteira, era uma ampôla de trinitrina que ele aspirava, sofregamente, quando o coração se apertava e lhe faltava o ar.

Se morresse num campo de futebol, depois de um gol do Flamengo, ninguém se espantaria. O que não se esperava é que fosse depois de um jogo de basquete, o Flamengo ganhando por um ponto, fazendo a cesta junto com o último apito do juiz.

Só os que conheciam bem Gilberto Cardoso sabiam que tinha de morrer assim, em qualquer jogo ou em qualquer prova, numa emoção mais forte, o coração arrebentando num espasmo de amor.”

Autor: Mario Filho, Histórias do Flamengo.



...

“A conquista do tri-campeonato de 1953-54-55 (o segundo do Flamengo e ambos no regime profissional), como não poderia deixar de acontecer, convulsionou a cidade, que viveu um dos seus carnavais de quaresma.

Nem tudo, porém, foi carnaval. A apaixonada torcida rubro-negra é mística acima de tudo, e no auge das comemorações ruidosas, do espocar de foguetes, do espumar de cervejas, do retumbar de hinos e brindes, muitos torcedores não esqueceram o grande condutor das vitórias que culminaram no extraordinário feito – Gilberto Cardoso.

O dinâmico e valoroso presidente não resistira a um impacto de outra grande conquista – o campeonato de basquete de 1955. Partiu sem poder participar do regozijo geral pelo levantamento do tri-campeonato almejadíssimo que tanto ajudara a conquistar.

Em meio à algazarra, às demonstrações de júbilo coletivo que avançavam pela noite adentro, ouviam-se de quando a quando os acordes da marchinha acelerada, cujo estribilho era uma nênia mais uma vez dedicada a um ausente querido:

Zum-zum-zum
Zum-zum
Está faltando um...

A dado momento, um bloco de manifestantes se destaca e propõe:

- Vamos ao Cemitério São João Batista, homenagear Gilberto Cardoso!

A princípio a ideia choca, mas logo se comunica à turma, que, empunhando grande e expressiva faixa e bandeiras trazidas do encontro memorável e até ali desfraldadas em passeata permanente, ruma para a Rua Gen. Polidoro.

Os grandes portões da necrópole estão fechados. O grupo não se detém. Contorna a frente gradeada e, depois de alguns passos, vários dos manifestantes escalam o muro lateral.

É quase meia-noite, hora crucial das manifestações do tipo. De repente surge um vigia de revólver em punho:

- Se pularem eu atiro!

Um do grupo explica:

- Companheiro! O Flamengo levantou o tri-campeonato! Só queremos colocar uma faixa no túmulo de Gilberto Cardoso.

- A essa hora, não! Ninguém pode entrar! É proibido!

A turma é teimosa. E hábil. Novas explicações, em tom quase de súplica:

- Amigo! Nós já estamos aqui! Não somos vagabundos. O Sr. vai conosco.

O vigia, apesar do seu ofício, está emocionado (vão ver, era flamengo). Cede e os acompanha até ao mausoléu do inesquecível presidente.

Lá o grupo se ajoelha. Alguns beijam o túmulo. Um fotógrafo que os acompanha à distância, sorrateiro e vivo, bate chapas.

Sobre o mausoléu fica uma grande faixa rubro-negra com os dizeres:

'O Tri-Campeonato de Gilberto Cardoso'.

Estava cumprida a missão heroica dos torcedores flamengos. Pela primeira vez, como bem acentuou a revista que documentou o fato, tal manifestação seria feita num cemitério, a altas horas, por uma torcida de futebol, festiva e radiante, mas ao mesmo tempo fiel aos seus ideais e aos seus ídolos.

Se o extraordinário presidente, cuja palavra de ordem era 'Vencer, mas vencer em todas' não pudera comparecer à extraordinária conquista e vibrar na festa brava do Flamengo, este pela sua torcida fora até ao seu túmulo para integrá-lo na grande alegria.

A alma rubro-negra mais uma vez exteriorizava e de maneira original e comovente o calor, a paixão e a força da sua mística.”


Autor: Edigar de Alencar, Flamengo, força e alegria do povo.
...

Abraços, bom fim de semana a Saudações Rubro-Negras a todos.

Uma vez Flamengo, sempre Flamengo.