Saudações flamengas a todos,
Enfim pude ter acesso a
uma obra perseguida há anos, o livro “Histórias do Flamengo”, de Mário Filho,
recentemente relançado. Ainda estou desfrutando de suas linhas, mas a sua
primeira parte já me chamou fortemente a atenção. Porque há muitos textos
conhecidos que exaltam e enaltecem os atributos flamengos, que são frequentemente
citados, da lavra de Nelson Rodrigues, Ruy Castro, José Lins do Rego, entre
outros eminentes autores.
Pois hoje, no último
texto desse ano, trago uma parte do abre-alas de Mário Filho, que considero, a
despeito de sua enganosa simplicidade, um trecho extremamente forte e que ajuda
a exprimir e entender do que somos feitos, o que é o Flamengo em essência. Foi
escrito em 1945, usando como contraponto o aristocrático Fluminense.
Desfrutem.
UM
CLUBE GRANDE POR FORA
Para sentir a grandeza
do Fluminense, a gente tem de ir a Álvaro Chaves. Lá estão a sede, o estádio,
com o campo de futebol, a pista de atletismo, de carvão moído, o estadinho de
tênis, as quadras, a piscina, o ginásio, o estande de tiro, bem pegado ao muro
do Palácio, as alamedas, os jardins, as praças, todo o Fluminense. O Fluminense
está ali, é fácil mostrá-lo a quem vem de fora. É mais difícil mostrar o
Flamengo. Um pedaço do Flamengo fica na praia, outro no Morro da Viúva, outro
na Gávea. Toma-se um carro, de duzentos em duzentos metros o relógio do táxi
marca mais trinta centavos, vai-se de um lado para o outro, e quando acaba não
se viu o Flamengo. Nada daquilo dá uma ideia da grandeza do Flamengo. Vê-se o
estádio, não é o estádio ainda, vê-se a sede, não é a sede, vai ser
completamente diferente.
*
As fronteiras do
Fluminense são a Rua Guanabara, a Rua Álvaro Chaves, os muros do Palácio, o
morro. O Fluminense fica encerrado lá dentro. O Flamengo não tem limites.
Pode-se entrar pela lagoa, cobrir a lagoa de terra, até a ilha defronte da
garagem. É a praia, o Morro da Viúva, a Gávea. O Fluminense é um pedaço de
Laranjeiras. Sabe-se onde ele começa e onde ele acaba. Passa-se pela Rua
Guanabara, dobra-se a esquina, segue-se pela Rua Álvaro Chaves, tudo é Fluminense.
A grandeza do Fluminense, porém, não se mostra nas linhas de uma fachada, nos
altos muros de um estádio. Só se mostra lá dentro. Entrando, a gente pode ver,
pode sentir a grandeza do Fluminense.
*
Em dia de jogo a gente não
vê o Fluminense direito. O estádio como que desaparece, tapado pela multidão. A
multidão cobre tudo, não deixa ver nada. E todos os olhos se alongam para o
campo, os jogadores atrás de uma bola, não se vê, não se pensa em outra coisa,
só no jogo. O Fluminense é um team, onze jogadores, onze camisas, a alegria da
vitória, a amargura da derrota. Mesmo depois do match ninguém se detém para ver
o Fluminense. As ruas vazias se enchem, se esvaziam. E o Fluminense fica atrás
dos muros altos das arquibancadas. Acabou o jogo, se o Fluminense venceu há
alegria, se perdeu há tristeza em Álvaro Chaves. Em dia de jogo não se pode ter
uma ideia do Fluminense, pode-se ter uma ideia do Flamengo. O Flamengo não fica
no estádio quando o jogo acaba, sai, é a própria multidão que se perde em mil
ruas, levando para cada canto a presença do Flamengo.
*
Os outros clubes não quiseram
saber de guardar papeis, recortes de jornais, fotografias batidas com aquelas
máquinas de pano preto enormes, que se levavam para os campos carregadas nas
costas. O Fluminense guardou tudo, foi o único que guardou. Por isso, quando um
clube quer saber de sua vida, reconstituir o seu passado, vai ao Fluminense.
Abre-se a casa-forte do arquivo, folheia-se um álbum grosso, pesado. Nunca se
deixa de encontrar o que o outro clube procura. (...) Parece que o Fluminense
nasceu do arquivo. Aquele cuidado de guardar tudo, de não deixar passar nada,
de classificar, de catalogar, de organizar, explica o Fluminense.
*
O Fluminense só pode
ser visto por dentro. O Flamengo, não. Por dentro não é o Flamengo. Pelo menos
a gente, dentro do Flamengo, perde a medida de sua grandeza, não a encontra. A
sede é acanhada, fica espremida entre dois hotéis. A garagem da sede guarda
apenas os barcos de passeio, as ioles das regatas na baía, em Santa Luzia ou na
enseada de Botafogo. Não se vê um só out-rigger. Os out-riggers estão na Gávea.
Na Gávea a garagem é um barracão, coberto de zinco, em forma de hangar. Há o
campo largo, há um pedaço de arquibancada de trinta e três metros de altura.
Foi o que se construiu do estádio.
*
Quem vai à Gávea não sente
a grandeza do Flamengo. E, muito menos, quem vai à praia e vê a sede, lá atrás,
baixa, estreita, com um andar só. Sente-se a grandeza do Flamengo cá fora, nas
ruas, nas paredes que viram placares de vitórias do rubro-negro. E nos
estádios, do lado das arquibancadas, das gerais. A multidão grita Flamengo e o
grito da multidão dá ideia do que é o Flamengo, uma medida de sua grandeza. O
Flamengo não está na Gávea, na praia, no Morro da Viúva, está em toda parte. É
grande por fora. Nisto consiste a diferença entre ele e o Fluminense, que é
grande por dentro.
(Os Alfarrábios do Melo
retornam em 18 de janeiro. Um Feliz Natal e um vitorioso 2015 a todos)