domingo, 21 de dezembro de 2014

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos,

Enfim pude ter acesso a uma obra perseguida há anos, o livro “Histórias do Flamengo”, de Mário Filho, recentemente relançado. Ainda estou desfrutando de suas linhas, mas a sua primeira parte já me chamou fortemente a atenção. Porque há muitos textos conhecidos que exaltam e enaltecem os atributos flamengos, que são frequentemente citados, da lavra de Nelson Rodrigues, Ruy Castro, José Lins do Rego, entre outros eminentes autores.

Pois hoje, no último texto desse ano, trago uma parte do abre-alas de Mário Filho, que considero, a despeito de sua enganosa simplicidade, um trecho extremamente forte e que ajuda a exprimir e entender do que somos feitos, o que é o Flamengo em essência. Foi escrito em 1945, usando como contraponto o aristocrático Fluminense.

Desfrutem.

UM CLUBE GRANDE POR FORA

Para sentir a grandeza do Fluminense, a gente tem de ir a Álvaro Chaves. Lá estão a sede, o estádio, com o campo de futebol, a pista de atletismo, de carvão moído, o estadinho de tênis, as quadras, a piscina, o ginásio, o estande de tiro, bem pegado ao muro do Palácio, as alamedas, os jardins, as praças, todo o Fluminense. O Fluminense está ali, é fácil mostrá-lo a quem vem de fora. É mais difícil mostrar o Flamengo. Um pedaço do Flamengo fica na praia, outro no Morro da Viúva, outro na Gávea. Toma-se um carro, de duzentos em duzentos metros o relógio do táxi marca mais trinta centavos, vai-se de um lado para o outro, e quando acaba não se viu o Flamengo. Nada daquilo dá uma ideia da grandeza do Flamengo. Vê-se o estádio, não é o estádio ainda, vê-se a sede, não é a sede, vai ser completamente diferente.

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As fronteiras do Fluminense são a Rua Guanabara, a Rua Álvaro Chaves, os muros do Palácio, o morro. O Fluminense fica encerrado lá dentro. O Flamengo não tem limites. Pode-se entrar pela lagoa, cobrir a lagoa de terra, até a ilha defronte da garagem. É a praia, o Morro da Viúva, a Gávea. O Fluminense é um pedaço de Laranjeiras. Sabe-se onde ele começa e onde ele acaba. Passa-se pela Rua Guanabara, dobra-se a esquina, segue-se pela Rua Álvaro Chaves, tudo é Fluminense. A grandeza do Fluminense, porém, não se mostra nas linhas de uma fachada, nos altos muros de um estádio. Só se mostra lá dentro. Entrando, a gente pode ver, pode sentir a grandeza do Fluminense.

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Em dia de jogo a gente não vê o Fluminense direito. O estádio como que desaparece, tapado pela multidão. A multidão cobre tudo, não deixa ver nada. E todos os olhos se alongam para o campo, os jogadores atrás de uma bola, não se vê, não se pensa em outra coisa, só no jogo. O Fluminense é um team, onze jogadores, onze camisas, a alegria da vitória, a amargura da derrota. Mesmo depois do match ninguém se detém para ver o Fluminense. As ruas vazias se enchem, se esvaziam. E o Fluminense fica atrás dos muros altos das arquibancadas. Acabou o jogo, se o Fluminense venceu há alegria, se perdeu há tristeza em Álvaro Chaves. Em dia de jogo não se pode ter uma ideia do Fluminense, pode-se ter uma ideia do Flamengo. O Flamengo não fica no estádio quando o jogo acaba, sai, é a própria multidão que se perde em mil ruas, levando para cada canto a presença do Flamengo.

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Os outros clubes não quiseram saber de guardar papeis, recortes de jornais, fotografias batidas com aquelas máquinas de pano preto enormes, que se levavam para os campos carregadas nas costas. O Fluminense guardou tudo, foi o único que guardou. Por isso, quando um clube quer saber de sua vida, reconstituir o seu passado, vai ao Fluminense. Abre-se a casa-forte do arquivo, folheia-se um álbum grosso, pesado. Nunca se deixa de encontrar o que o outro clube procura. (...) Parece que o Fluminense nasceu do arquivo. Aquele cuidado de guardar tudo, de não deixar passar nada, de classificar, de catalogar, de organizar, explica o Fluminense.

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O Fluminense só pode ser visto por dentro. O Flamengo, não. Por dentro não é o Flamengo. Pelo menos a gente, dentro do Flamengo, perde a medida de sua grandeza, não a encontra. A sede é acanhada, fica espremida entre dois hotéis. A garagem da sede guarda apenas os barcos de passeio, as ioles das regatas na baía, em Santa Luzia ou na enseada de Botafogo. Não se vê um só out-rigger. Os out-riggers estão na Gávea. Na Gávea a garagem é um barracão, coberto de zinco, em forma de hangar. Há o campo largo, há um pedaço de arquibancada de trinta e três metros de altura. Foi o que se construiu do estádio.

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Quem vai à Gávea não sente a grandeza do Flamengo. E, muito menos, quem vai à praia e vê a sede, lá atrás, baixa, estreita, com um andar só. Sente-se a grandeza do Flamengo cá fora, nas ruas, nas paredes que viram placares de vitórias do rubro-negro. E nos estádios, do lado das arquibancadas, das gerais. A multidão grita Flamengo e o grito da multidão dá ideia do que é o Flamengo, uma medida de sua grandeza. O Flamengo não está na Gávea, na praia, no Morro da Viúva, está em toda parte. É grande por fora. Nisto consiste a diferença entre ele e o Fluminense, que é grande por dentro.


(Os Alfarrábios do Melo retornam em 18 de janeiro. Um Feliz Natal e um vitorioso 2015 a todos)