Saudações flamengas a todos,
Essa semana escrevo um texto em homenagem
ao colega Gabriel, que anda disseminando uma pretensa comparação que eu teria
feito entre ídolos do presente e do passado, o que considero descabido, afinal
comparar e encontrar semelhança entre contextos é diferente de emparelhar
jogadores. De qualquer forma, para gáudio do colega (a quem admiro), seguem as
linhas.
Boa semana a todos.
* * *
Contragolpe.
A bola é esticada ao lépido e
jovem atacante, que abre corrida. Mas o zagueiro, sempre com um preciso senso
de cobertura, antecipa-lhe o movimento e lhe toma a frente. É dele a bola, que
se oferece lânguida, sedutora, maliciosa. O zagueiro é fustigado pelo fogoso
fauno, mas não demonstra qualquer sinal de perturbação. Empertiga ligeiramente
o tronco e com um meneio de cabeça checa e já percebe o goleiro posicionado
para receber o passe. Um leve tapa, e estará tudo pronto.
Mas a coisa não sai bem assim.
No exato momento em que vai tocar
a bola, a bandida quica em um morrote e sai de percurso. O zagueiro ainda
consegue aprumar o domínio, mas o passe perde força. Vai pálido, tímido,
sussurrante. O jovem goleador, que traiçoeiramente parecia ter desistido da jogada,
estala como um raio, intercepta o lance, livra-se do esbaforido goleiro com um
leve chapéu e consuma o gol, qual um ofídio.
Nesse lance, acaba o campeonato.
É o fim da carreira de Leandro.


A fulminante adaptação de Leandro
à zaga foi algo impressionante, reforçando a tese de que craque se ajeita em
qualquer lugar. Como lateral-direito, é tido um dos melhores da história. Ainda
sob Carpegiani, chegou a atuar como volante em várias partidas, muitas delas
decisivas (Atlético-MG no Serra Dourada, em que foi o melhor do jogo
interrompido, Cobreloa em Montevideo e a finalíssima com o Vasco, o jogo do
ladrilheiro), sempre esmerilhando a bola. Na zaga, impressionou pela sua
destreza e sua absoluta capacidade de antever o lance, sempre chegando inteiro,
pleno, nas bolas. A refinada sofisticação de seu jogo fez com que muitos o
comparassem a Domingos da Guia, e com efeito é possível que realmente haja
alguns elementos em comum nas duas formas de jogo, uma vez que Leandro era
técnica em ente puro, cristalino. O estado da arte da bola.

Tal um Garrincha oitentista, Leandro
tornou-se jogador de bola desafiando a formação congênita de suas pernas que,
excessivamente arqueadas (o “mal de cowboy”), espremiam os ligamentos dos
joelhos a cada salto, cada pique, cada movimento mais brusco, sacrifício que se
tornava mais árduo com o passar dos jogos, ligamentos se deteriorando, bolsas e
bolsas de gelo e fisioterapia contínua, a ponto dos médicos do CRF manifestarem, lá
pelos idos de 85, 86, que cada partida em que Leandro era colocado em campo era
a materialização de um milagre da medicina esportiva.
Mas agora isso não importa mais.
Nada de desarmes cortantes,
passes milimétricos, projeções minuciosamente sincronizadas à linha de fundo,
cruzamentos precisos, jogadas que trazem o futebol a uma linda brincadeira de
bola. Nada disso é relevante, o que se fala, o que se comenta, o que se grita,
o que se vaticina, é o contragolpe. A falha, o gol, a virtual perda do título.
Um Flamengo com a faca nos dentes, buscando mostrar que a irreversível
decadência do esquema tetracampeão brasileiro é apenas teórica, time mordido
fazendo boa partida, fustigando o adversário, procurando desmanchar do placar
aquele 1-1 tenso. E aí surge o contragolpe. E Leandro falha. O mundo lhe vai à cabeça. De repente, não presta mais.


Leandro, involuntariamente, acaba
sendo pivô da queda de Carlinhos, que o saca do time na última partida das finais de
forma sorrateira, no vestiário. Assume Candinho, que declara abertamente que a
zaga do Flamengo é “lenta”, acenando com a barração de Leandro. Candinho prega
renovação (de fato, o jovem Aldair anda voando e pronto para assumir a
posição), mas, ao pedir a contratação do veterano decadente Darío Pereyra
assina sua sentença de morte, e não resiste muito.

Leandro retorna exibindo sua
habilidade luxuriante, mas, sem ritmo de jogo, não é muito aproveitado na reta
final da temporada de 1989 (o Flamengo brigava para chegar às Finais e
Espinoza receava mexer na defesa). Começa 1990, Leandro, utilizado na sobra de
um esquema com três zagueiros, atua praticamente por toda a Taça Guanabara, tem
boa atuação no empate com o Vasco (1-1, jogo do gol do André Cruz), mas é um
dos piores na desastrosa derrota para o Bangu (1-2) que elimina a equipe. A
seguir, se lesiona e perde o restante do Estadual.
A inatividade relativamente longa
suscita a lembrança de um dos mais implacáveis adágios dessas coisas do mundo
da bola. No futebol, infelizmente, na montagem de uma equipe que se pretende
competitiva e vencedora, não é possível alinhar o jogador pelo que foi. Não
importa se o atleta foi o melhor, ou um dos melhores. O que se faz relevante é
a contribuição de hoje, o que o jogador ainda pode produzir, seja pelo futebol
bruto, seja pela capacidade de liderar, e se isso se torna de alguma forma
útil. É cru. É frio. Mas é o que é.
E assim, sem alarde, no meio da
Copa do Mundo, com todos voltados para o futebol vigoroso e medíocre praticado,
sem a mais esquálida exceção, pelos 24 participantes, Leandro avisa que está
parando, aos 30 anos. Sai da vida para entrar na história, eleva-se da mundana qualidade de
boleiro e erige-se ao altar dos mitos, dos monstros sagrados, daqueles que,
para toda a eternidade flamenga, serão adorados como os maiores.
Felizes os que se deliciaram com sua arte.