domingo, 2 de novembro de 2014

Alfarrábios do Melo

“Pai, o Zico vai jogar domingo, né?”

A pergunta sai trêmula, vacilante, quase num sussurro, o medo da resposta cortante, o receio de ter ali, no início da madrugada, seus sonhos de menino implodidos. Os olhos molhados denunciam um princípio de choro.

“Não sei, filho. Acho que joga.”

Evasivo, pouco claro, sem a menor convicção. Mas o bastante para inflamar as esperanças do garoto. Não, o Zico tem que jogar. Sem o Zico o Flamengo não é a mesma coisa. Se o Zico tivesse jogado, a gente não teria perdido, tenho certeza. Não, domingo ele tem que jogar. Ele vai jogar.

E o garoto vai vivendo o fragmento de eternidade que o separa do domingo redentor. Mal come, mal estuda, mal brinca. Só pensa no jogão, só respira o dia em que pela primeira vez irá gritar “é campeão” de verdade, com convicção, com força.

Está perto de fazer oito anos. Até o ano passado não era muito afeito às coisas da bola, com as quais somente se relacionava quando se lembrava de perguntar ao pai de manhã cedo, “paiê, o Flamengo ganhou?”, e sorrir diante da resposta que vinha positiva com uma frequência quase religiosa. Não era chegado a futebol, mas sabia que era Flamengo. Aliás, gostava mais do Flamengo que de bola.

Foi só no final do ano passado que a coisa começou. E o milagre se deu através da televisão. “Filho, hoje tem jogo do Flamengo”. A primeira vez foi contra o Vasco. Jogo maluco, Flamengo ganhando de dois, o menino achando que ia ser de muito, daqui a pouco o outro time empata, o garoto pensando no pior, e no final uma cabeçada de um tal de Tito, Tico (Tita, porra, corrige o pai) e o Flamengo ganha. Quando acaba o jogo aparece uma taça, e o garoto descobre que é campeão, meio sem saber.

E não para mais. Vê um time de camisa vermelha levantar o título de campeão brasileiro. Simpatiza rapidamente com a equipe, pois ganhou do Vasco. O garoto sabe que não gosta do Vasco (time esquisito, camisa estranha). O narrador fala “tricampeão”, pai, o que é tricampeão, é porque ganhou três vezes, e o Flamengo ganhou quantas vezes, nenhuma, filho.

E isso não está certo. E o garoto jura pra si mesmo, “isso vai mudar”.

E para alegria do garoto o ano começa com a tevê mostrando um monte de Flamengo. E o menino vê Zico e seus amigos surrarem o modesto Itabaiana, ganhar de um tal de Ferroviário, passar pelo Bangu (num jogo em que pragueja contra o péssimo juiz Wilson). Acompanha cada jogo, cada rodada com afinco e fervor, o Globo Esporte e a Placar são suas bússolas, começa a ir conhecendo os times, os jogadores. A tabela aponta Flamengo e Palmeiras, e o garoto, como num enredo de aventura infantil, prevê a vingança, a justa redenção do mocinho, aliás anunciada pelos jornais e revistas antes mesmo do embate. Estava lá, semanas antes, na frente da tevê quando o desastre aconteceu. Quatro a um. “você não vai chorar, aprenda a perder, seja homem”. Tudo bem, sem choro. Mas vai ter volta, e tem mesmo, de seis, primeiro jogo ouvido no rádio, o pai com cara de menino gritando gol, as manchetes em letras garrafais, “VINGANÇA”, e o riso vindo fácil. E o campeonato seguindo, e o Flamengo sempre vencendo (fora um jogo estranho contra um time da Paraíba, o pai consolando, Flamengo é assim mesmo, às vezes surpreende), agora a vítima abatida é o Santos num domingo de sol, lindo jogo na calma voz do Luciano do Valle, depois vem o Coritiba, estamos na final. Mas o Zico está fora, arrebentou o músculo.

O menino preferia enfrentar o time de camisa vermelha. Não por medo, mas porque gostava mais daquele time do ótimo jogador Falcão. O outro time, o de camisa listrada, tinha alguma coisa que lembrava o Vasco, jogadores de cara fechada, reclamando de tudo, batendo muito. Havia visto um amistoso na tevê, estreia de um tal de Palhinha, os listrados descendo a porrada no Corinthians de Sócrates, “se fazem isso num jogo bobo, imagine valendo”. Mas de qualquer forma, eles aproveitaram que os vermelhos estavam sem o Falcão e fizeram três a zero, e foi no Sul, um jogador espigado, Terezo, Crezo (Cerezo, porra, entra o pai), jogando elegante, vistoso, bonito até.

“Pai, não entendi o que o cara da tevê falou. Afinal, o Zico joga ou não joga?”

O menino ainda vai demorar um pouco para entender certas nuances do mundo da bola. Ainda vai passar um certo tempo até que ele entenda que, quando um jogador importante está machucado perto de um jogo decisivo, o mistério só se resolve na hora da partida, pois o adversário precisa ficar em dúvida. Mas, mesmo sem esse tipo de malícia, a convicção de que seu craque maior estará em campo aumenta, pois as respostas do pai vão se tornando menos lacônicas, mais afirmativas.

E vai precisar mesmo. Não saem da cabeça do menino as imagens do açougue do primeiro jogo. Briga, porrada, Flamengo valente sem se intimidar, devolvendo cada soco, cada dedo na cara, cada mão na bunda. Flamengo também criando chance, não se deixando dominar. Mas uma falha, um erro crasso, um gol idiota, quase pondo tudo a perder, porque depois disso o time se abateu e os listrados empilharam um gol perdido atrás do outro, teve bola na trave, gol perdido sem goleiro, enfim. O menino tem certeza que se o Zico estivesse lá o Flamengo teria empatado ou vencido. Além disso, na sua lógica infantil de mocinho x vilão, o garoto raciocina: “eles ganharam do Inter sem o Falcão e da gente sem o Zico. Não tá justo eles ganharem dos times mais fortes que eles sem os craques.”

“ZICO JOGA!”

O grito do repórter na beira do gramado explode a alma do garoto, que pulsa numa expectativa quase febril. O corpo lívido, todo tomado por uma sensação gelada, um frio que teima em não passar, a despeito da temperatura agradável. Apenas os olhos ardendo em brasa, famintos de glória, sequiosos pelo final feliz.

O ruído ensurdece, mal se ouve a voz do narrador. Flamengo entra fogoso, vibrante, “hoje sim”, pensa o garoto. Demora nada, Zico pega uma bola. Lança, o narrador grita antevendo o gol, o menino vai junto, não pisca, não levanta, não se mexe. O goleador cabeludo recebe e rola macio, a bola deslizando, pererecando levemente pro fundo do gol. O salto, seguido de um urro seguramente não humano, a sensação de plenitude e abandono ao tempo e espaço, o menino despregado de sua existência, apenas gritando, e gritando, e nesse grito se desprendendo de todas as sensações ruins, o corpo totalmente teso, olhos esbugalhando sangue, língua seca, pele trêmula, e a alma completamente leve, pairando, levitando na mais redentora das sensações. Ao final, quase fenece num desmaio.
Enquanto ainda treme e bebe a água com açúcar que a assustada mãe lhe traz, vê os listrados empatarem enquanto o pai xinga a última geração do tal de Manguito. Não importa, pensa o menino. Agora guarda a certeza absoluta de que esse jogo está ganho. Como numa história em quadrinhos ou num desenho animado, haverá suspense, haverá emoção, haverá algum mistério. Mas o mocinho haverá de triunfar. Porque Zico está em campo. Está em campo mais do que um grande jogador, mais do que um craque, mais do que um gênio, mais do que qualquer outra coisa.

Na minha cabeça de garoto, está em campo o super-herói. E o herói sempre vence no final.