domingo, 21 de setembro de 2014

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos,

Essa semana eu estava assistindo à partida em que o Flamengo, por conta de algumas falhas individuais e das limitações em algumas posições do elenco, perdeu a oportunidade de aplicar uma goleada histórica sobre o Palmeiras, saindo de campo com um empate amargo, mas compatível com as pretensões da equipe na competição.

Pois bem, um fato me chamou a atenção e me motivou a escrever esse texto. Atentando à medíocre transmissão do PFC (mais uma cobertura clubista, bairrista e dedicada a espancar os fatos com uma visão pateticamente embotada, onde são descritas as coisas que os cronistas gostariam que estivessem acontecendo), pelo menos à parte em que a tevê não esteve no mudo, percebi como o linguajar atual do futebol anda tecnicista e reflete a sensação de que todos são, ou se pretendem, “especialistas” de tudo.

Assim, separei alguns termos que se ouvem por aí, cuja repetição exaustiva já começa a provocar certa sensação de ojeriza, tal o lugar-comum. A eles,


PROPOR O JOGO
Às vezes imagino que um jogo de futebol é um fórum de debates. Uma disputa para saber quem “propõe” mais o jogo. Por que é um tal de “O time A está propondo o jogo”, “o time B tenta propor o jogo mas não consegue”, “entramos em campo propondo, mas após o gol resolvemos recuar”. Humildemente, prefiro a forma mais prosaica. Ou tem a posse de bola, ou não tem. Soa mais honesto e limpinho do que ter que ouvir que “a proposta da equipe é propor o jogo”. Ouvindo isso, rapidamente proponho trocar o canal.

DUAS LINHAS DE QUATRO
Abre a transmissão. O comentarista almofadinha, sotaque carregado e tom propositalmente monocórdio e enjoativo, começa a arenga: “o time A está bem distribuído em campo, disposto com suas duas linhas de quatro...”. Pronto. Está dado o recado, está demonstrada sua brilhante visão tática.
Desde que atacantes mais “antenados”, como Zagalo (Flamengo, Botafogo) e Telê (Fluminense) perceberam que poderiam recuar e ajudar a marcação do meio-campo, isso lá pelos anos 50 e 60, formar “linhas de quatro defensivas” é algo trivial no mundo do futebol. Mas, como o que importa é criar jargões, alguém apareceu com essa “novidade” linguística, que a todos encantou e impressionou. Outro dia alguém andou admirado com a capacidade defensiva das “linhas de quatro” de uma equipe europeia, e esse mesmo alguém, na mesma partida, encantou-se com o adversário, que se “reorganizou” em “linhas de quatro”, tornando-se assim “mais ofensiva”. Afinal, a linha de quatro torna o time mais ofensivo ou defensivo? Mas não se empolguem, caros mortais. Outro dia a Costa Rica apareceu com uma “linha de cinco”. Gostava mais quando o João Saldanha falava de “linha burra”. Era mais divertido.
 
CONQUISTOU A TITULARIDADE
Fulano “conquistou a titularidade”, beltrano está “perdendo a titularidade com o novo treinador”, sicrano pretende “brigar pela titularidade”. Tipo de eufemismo para não deixar empresário tristinho. É que dizer que tá barrado ou foi pro banco soa muito, sei lá, bruto. Jogador é muito sensível.

O FALSO NOVE
Esse caso é clássico, e se recicla com o passar dos anos. Pode perceber que um time moderno tem alguém falso na escalação. Já tivemos a época dos “falsos laterais” (alas), os “falsos meias” (time do Parreira de 94), “falsos pontas” (Flamengo de 1981), “falso zagueiro” (o Jailton na Tropa de Elite do Joel). Agora a onda é o “falso nove”, que a Alemanha e a Espanha andam (ou andaram) utilizando, o que arrancou suspiros, gemidos e uivos dos “analistas” táticos. O falso nove é uma das sensações do momento. Nisso eu creio que o Flamengo está bem, porque não há nada mais falso do que o nosso nove, o Alecsandro. Que aliás me parece ser um falso jogador.

INTENSIDADE E PROFUNDIDADE
Outro termo bonito, poético. Não basta correr e ter raça, precisa de intensidade. Não basta dar bons passes, finalizar bem, Tem que ter profundidade. O jogador de hoje é intenso ou profundo, ou ambos. Fico imaginando um diálogo em campo, “marca fulano que ele tem profundidade”, “vamos lá pessoal, vamos colocar intensidade nesse jogo!”. A intensidade e a profundidade inclusive são parâmetros fortemente levados em conta no “mapeamento” (epa!) do mercado de jogadores. Gostava mais do tempo em que se valorizava o cara que sabia jogar bola.

ARENA
Mundão do Arruda? Gigante da Beira-Rio? A Vila mais Famosa do Brasil? O Maraca Maior do Mundo? Nada disso. Futebol hoje é jogado em Arena. Ponto. Tudo é Arena disso, Arena daquilo. É muito chique, muito europeu. Tem a Amsterdam Arena, a Allianz Arena, então vamos fazer do futebol brasileiro um verdadeiro arenário, cheio de gladiadores e guerreiros. Se bem que, do jeito que o futebol daqui anda, se tirarem a bola de dentro do campo poucos perceberão.

ACREDITAR NO PROJETO
Essa é impagável pelo cinismo nela embarcado. Fulano de tal, depois do leilão protocolar, resolve escolher determinada equipe porque “acreditou no projeto”. “O projeto da equipe me atraiu, eu me identifiquei”. Arrã. Nesse caso projeto consiste em salário mais alto e/ou contrato mais longo. Além, naturalmente, de uma mais atrativa comissão para o empresário. Tudo muito bem projetado.

ENCAIXE
O time A não está bem na tabela? É porque o esquema não encaixou. O reforço veio jogando nada? Ainda não se encaixou ao time. A equipe conseguiu uma boa vitória? É porque conseguiu encaixar seu jogo. E assim vão seguindo os comentários do “futebol-lego”. Comentarista “muderno” precisa ver alguma coisa “encaixando” ou “não encaixada”. E se souber encaixar o encaixe na proposta ou no projeto, melhor ainda.

ESPELHAR MARCAÇÃO
Retranqueiros famosos em outros tempos, como Ênio Andrade, iriam gostar desse termo. A “marcação espelhada”, que consiste no famoso “cada um pega o seu”, é pule de dez quando se quer descrever de forma “elegante” um time defensivo e retranqueiro, sem ser depreciativo. Mais ou menos como os portais paulistas se referem ao horroroso time do Corinthians. Com efeito, trajasse o “Timão” outro uniforme e fosse sediado em outra unidade da Federação, seu futebol indigente seria qualificado como “de time pequeno”. Como é “da terra”, joga praticando a “marcação espelhada”.

* * *

Bem, eu poderia dedilhar mais prosa sobre o assunto, que reconheço ser vasto (goleiro ou zagueiro que comemoram defesa, jogador que não comemora gol contra ex-clube etc), mas penso que basta. E por favor, que não se tome as observações acima como as ilações ranzinzas de um idoso incomodado com o passar do tempo. Evidente que o jargão futebolístico, com o tempo, passa por reciclagens e mutações, até porque do contrário ainda estaríamos falando em center-half, denodo, paredro e prélio. Mas ao menos poderiam ser mais imaginativos...

Finalizo constatando que ao menos uma coisa não muda com o tempo. Flamengo ganha, o derrotado sangra. E o motivo da vitória do Flamengo é a Globo, a CBF, a arbitragem, a mídia, o sistema, a Cia, a KGB, o diabo. Nunca o mais óbvio.

Jamais ocorre que, de repente, o Flamengo pode ter sido mesmo superior.


Boa semana a todos.