domingo, 14 de setembro de 2014

Alfarrábios do Melo


Saudações flamengas a todos. O texto de hoje é um pequeno tributo, na forma de testemunho. O aniversariante da semana será o único jogador citado nominalmente no texto, como reverência. Boa leitura.

* * *

O calor é sufocante.

Sinto-me derreter em preto e vermelho, espremido entre milhares de almas também negro-rubras, nem todas professando a mesma fé. A aglomeração humana potencializa os efeitos escaldantes de um sol que parece pairar sobre minha cabeça. O cimento ardente ferve-me os membros inferiores, e a um persistente e esperado cheiro de suor, cerveja e mijo se junta a morrinha do lixo. Ainda hoje me parece adentrar as entranhas das minhas narinas aquela brisa nauseabunda e putrefata do aterro sanitário do entorno, a faiscante sensação de viver a experiência de uma partida de futebol literalmente no meio do lixo. E há as moscas, invasivas, intrusivas, impertinentes, pegajosas.

Enquanto isso, vou mantendo um animado papo com meu velho pai, latinha indo e vindo à boca, fazendo escoar feericamente o valioso néctar gelado, seiva que se reveste de fonte de sobrevivência em meio ao senegal de concreto.

O jogo está perto de começar.

Ir ao estádio em companhia paterna é um hábito que, outrora frequente, anda raro. A disseminação de facilidades como a tevê fechada, os jogos em bares, e um processo contínuo de metropolização, que traz em seu bojo efeitos colaterais como trânsito, filas e violência, são fatores que têm contribuído para o abandono de uma prática quase romântica, tal o divertimento.

Mas não poderia me furtar a levar meu pai ao Flamengo, ao menos mais uma vez.

Flamengo cheio de estrelas, que começa bem, mas logo vai patinando no meio da tabela, e daí pro fundo, assumindo um risco real de rebaixamento pela primeira vez desde o início da história do Campeonato Brasileiro. Time forte, que vive séria crise de relacionamento entre seus jogadores (“muita medalha esbarrando uma na outra”, diz o velho), além da ancestral falta de estrutura (salários atrasados, excesso de gente dando pitaco, essas coisas). Treinadores vêm e vão, nada parece reanimar o paciente moribundo. Promoções de um amadorismo caricato, como o “veja o Flamengo vencer ou receba seu dinheiro de volta”, de desfecho óbvio, a chacota e a ridicularização do clube em horário nobre, tornam-se frequentes. O golpe de desespero é trazer o veterano treinador, tido como decadente, mas torcedor fanático e identificado com o clube.

E as coisas funcionam, após um início de ajustes o Flamengo começa a varrer vitórias seguidas, humilha o líder do campeonato com um 4-1 consagrador no Maracanã, encanta crônica e torcida com um futebol compacto e extremamente veloz, e agora vem a Salvador enfrentar um adversário direto na, pasmem, luta pela classificação aos matamatas da Segunda Fase.

O estádio está apinhado. Rubro-negros empurram rubro-negros em busca de um espaço mais compatível com a distribuição de espectadores nas arquibancadas. Não há “ingressos separados” ou “espaço dos visitantes”. É pegar a fila, comprar, chegar, escolher o lugar do estádio e sentar. Uma estimativa pessimista indica as torcidas em meio a meio, mas o cordão policial tenta segregar um quarto do estádio aos visitantes. Empurra aqui, pressiona ali, grita acolá, os policiais cedem ao bom senso e vão espremendo os locais, cedendo à realidade dos fatos.

Mais uma latinha, e aparentemente a salvo da embrulhada (nunca fique perto de PM, sempre me orientou o velho), sigo tentando analisar as perspectivas do Flamengo pro jogo. Atuar em Salvador é sempre difícil, o adversário cresce contra equipes mais fortes, seu presidente andou “temperando” a partida pelas rádios durante a semana (sempre fazem isso), enfim, não vai ser mole. Aliás, na última visita ao campo, alguns meses antes, o time sofreu cinco, uma goleada humilhante. Claro que confio na vitória, mas já me preparo para um jogo sofrido.

“Acho que o Flamengo vai ganhar bem, talvez até de goleada”, crava meu velho, o que me espanta, dado o seu histórico ceticismo. E ele não está bebendo.

O sol ensaia um armistício, mas o fedor permanece, talvez até mais forte. Times entram em campo, Flamengo de branco, jogando completo, força máxima. O time da casa tem um desfalque aqui e ali, mas os principais nomes estão em campo. Especialmente o seu Camisa 10.

O jogo começa e o Flamengo, para surpresa de muitos (não de meu pai), toma a iniciativa desde o início, desconhece o adversário, pressiona, põe nas cordas e abre o placar, gol do goleador baixinho.
Continua atacando, e atacando, e atacando mais, porém perde um gol atrás do outro, e para alívio e irritação da torcida local a primeira etapa termina apenas com um magro 1-0 a favor do rubro-negro legítimo.

“Esse cara é craque”, sai do silêncio o velho.

“Quem, o Baixinho?”, indago, já de posse de outra latinha.

“Não, porra! Não é dele que eu tô falando, do baixinho não precisa falar mais nada. É o Camisa 10 deles. É craque de bola. Gênio.”

Pondero alguma coisa, enquanto vou organizando as idéias, dentro do possível. Essa deve ser a quarta ou a quinta vez que vejo o Camisa 10 ao vivo, andei acompanhando algumas partidas “in loco” nos últimos meses. Desde que o vi marcar um gol de falta “à Zico” logo em sua estreia seu futebol me encantou. Mas, ironicamente, hoje ele vai fazendo talvez seu mais fraco jogo diante dos meus olhos, muito marcado pela bem armada defesa flamenga. Mesmo assim, meu pai, que nunca o vira ao vivo, parece encantado.

“Joga muito, é jogador daqueles antigos, que eu achava que não existiam mais. Já valeu a pena eu ter vindo.”

“Não é exagero?”

“Nada. É ali dentro que a gente vê se o cara é craque ou não. Tem que ver aqui, na nossa frente, não pela televisão. A tevê engana.”

A exaltação parece ter um efeito premonitório. Com efeito, os dois times retornam francamente diferentes do intervalo. Um desavisado pensaria terem trocado as camisas. O time da casa perde o medo, solta as amarras e cai pra dentro. O Flamengo se retrai em busca de contragolpes, que, ao serem negados, o encurralam. E o Camisa 10 volta jogando o diabo. Dribla um, dois, três, inverte bolas, distribui passes adocicados, cria, inventa, recita. E o torcedor vai junto, tornando o acanhado estádio em um alçapão ruidoso e pestilento.

Falta na entrada da área. Pra eles. Adivinha quem vai bater.


O Camisa 10 se posiciona, postura algo marrenta, algo indolente. Ajeita a bola. Bate com efeito. A bola sobe, sobe, desvia e passa por cima da barreira e começa a descair. Parece que irá fora, mas aos poucos vai ganhando outro rumo. Uma curva traiçoeira, que não parece obra humana. Mas, ao contrário do planejado, a bola perde força rapidamente e a guinada para dentro do gol é muito acentuada. Ao invés do pretendido ângulo superior, acaba indo para o centro da meta, ao encontro das mãos do goleiro flamengo. Que, confiante, já calcula a reposição enquanto a pelota lhe vai chegando ao alcance. É seu erro. Não há mais a força, mas ainda subsiste o gingado, o efeito. E, num rodopio, a bola recusa-se a se aninhar sob as luvas do inocente arqueiro e, aos risos, escapa-lhe furtivamente, qual uma punguista. Cruza a linha branca e enfim fenece. É o empate.

A partir dali o Flamengo vive coisa de dez, quinze minutos de intensa pressão. Como um filibusteiro, o Camisa 10 amarra a camisa à testa, põe a adaga entre os dentes e ordena o saque. O treinador flamengo antevê o desastre e reage rápido, resolve adotar uma estratégia ousada, saca um meia e coloca um centroavante. Manda o time abrir. Vai pro pau. Agora quem tiver mais bola vence.

Mas é outra alteração que ajuda a definir o jogo.

A atitude do técnico funciona, o Flamengo se apruma, intimida o oponente e já está melhor em campo quando um dos zagueiros locais se contunde. Em seu lugar, entra um grandalhão estabanado, com a incumbência de marcar o baixinho goleador. E o drama vira comédia. O Camisa 10, agora cansado, cede o protagonismo da partida à atarracada estrela, que usa e abusa do seu neófito marcador. E o Flamengo volta à pressão da primeira etapa. Só que, mais focado, mais concentrado, mais disposto a definir logo a pendenga, agora está agudo, incisivo. E os gols aparecem.

O Baixinho escora um cruzamento rasante e marca o segundo. Pouco depois, um bem articulado contragolpe, a saída precipitada do goleiro, o cruzamento à meia-altura e o gol de peito, de futevôlei. 3-1, jogo perto do fim. Olé, olé.

O time da casa, meio nervoso com a feição achocolatada que a partida vai assumindo, começa a perseguir os flamengos aos pontapés, às botinadas. A torcida local, mostrando, como sempre, ser fiel e que acredita até o fim, vai deixando o estádio em grossas hordas, a despeito de ainda restarem pouco menos de dez minutos. Tranquilo, o Flamengo arrefece a pressão mas não recua, povoa o meio e troca passes, escapando das investidas mais violentas. Um local é expulso, mas a essa altura, enfim, a partida já parece definida. É quando, numa belíssima e veloz troca de passes, o Flamengo parte para o último ataque, para a última estocada em um oponente batido, vencido e entregue. Última bola do jogo, Flamengo 4-1.

Meu pai ri aos gargalhos.

Vamos embora cantando, a roupa impregnada de lixo. Já estou rouco, não há voz para mais nada. Mesmo assim, ele pontua:

“Eu disse que era goleada. Mesmo assim, continuo falando que o que me encheu os olhos foi o Camisa 10. Craque de bola, há muito tempo não via um desses.”

Não consigo exprimir ao certo como receber tamanho entusiasmo. A satisfação é natural e óbvia, pois eu já havia antes identificado várias qualidades no jogador. Mas a forma incisiva e contundente com que meu pai, que viu (ou ouviu) todas as Copas do Mundo conquistadas, que acompanhou quatro dos cinco tris, que foi “rato de Maracanã” (não raro assistia a três, quatro jogos por semana), que acompanhou ao vivo todos os monstros sagrados dos anos 50/60, que chegava mais cedo aos jogos para ver o Zico jogar nos aspirantes, e que não se entusiasmava com um jogador desde, sei lá, o próprio Galinho, ou com o Júnior na fase Maestro, o encanto quase infantil que ele demonstrou pelo futebol desse Camisa 10 dos baianos me despertaram um aviso interior, dando conta de que talvez fosse prudente prestar uma atenção maior a esse marrento gringo que andava encantando os nativos da “Boa Terra”.

Com efeito, o craque não durará muito tempo no Brasil, sendo negociado com o futebol italiano, onde permanecerá pouco tempo, por conta de seu temperamento difícil. E, após uma negociação relativamente trabalhosa, retornará ao país, especificamente ao Flamengo, onde assumirá a Camisa 10. E não demorará para cair nas graças da Nação Rubro-Negra.

De quem Dejan Petkovic será ídolo. E verá gravado, para sempre, seu nome no Panteão dos Grandes Heróis.

* * *

Essa não foi a última vez que assisti a um jogo em estádio com meu velho pai. Tornaríamos outras vezes, para jogos da Seleção Brasileira e mais recentemente na Copa do Mundo. Mas não mais retornamos para assistir ao Flamengo.

Hoje seguimos vendo o Mengão pela tevê. Mas não seria prudente perguntar-lhe o que  acha do time atual. O interlocutor provavelmente sairá deprimido.


Ah, e sempre é bom pontuar nesses tempos “politicamente corretos” e sujeitos à patrulha: não voltei dirigindo pra casa naquele dia.