domingo, 31 de agosto de 2014

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos. Hoje continuo a série que trata dos anti-heróis flamengos, jogadores marcados por passagens polêmicas, a despeito de seu talento. Boa leitura.

OS ANTI-HERÓIS, PARTE II – JAIR DA ROSA PINTO

1949.

A bola chega limpa.

Suave e doce, achega-se aos pés do craque, que avança. Frio, impávido, não parece perceber a febril e alucinada festa de meia São Januário, que urra de uma euforia tão incontrolável quanto inusitada, a outra metade em um aparvalhado silêncio. O amontoado que o Flamengo põe em campo vai protagonizando um verdadeiro baile sobre o Expresso da Vitória vascaíno, de Ademir, Friaça, Chico, Danilo e outros tantos. 2-0 em dez minutos de sonho, adversário envergado, nas cordas, à mercê do golpe de misericórdia.

E Jair avança inteiramente livre, solitário, em silêncio. Com ele, a bola.

Jair, o Jajá de Barra Mansa, um dos “Três Patetas” do Madureira que foram fazer história no Vasco, e que, no auge do sucesso, resolvera trocar, de forma polêmica, o cruzmaltino pelo rival maior, por não aceitar ganhar menos que Ademir. Canelas de passarinho que escondem um chute impiedoso e peçonhento, precursor da “folha seca” de Didi (e para muitos, ainda mais traiçoeiro, por conta da força). Jair, que chega em 1947 ao Flamengo e rapidamente demonstra seu inegável talento, entregando gols e vitórias a uma massa carente de títulos, padecendo com o desmonte da geração do primeiro tri, sofrendo com a inaceitável condição de coadjuvante, acumulando temporadas seguidas longe da disputa pela taça da cidade. Jair, que se torna, ao lado do gênio Zizinho, uma das referências de um time limitado e barato, onde transpiram Gringo, Esquerdinha, Durval e os veteranos Bria, Jaime e Biguá. Jair que vive seu momento de máxima glória ao demolir, com seu tiro mortal, a sólida defesa dos ingleses do Arsenal, na vitória (3-1) que parou o Rio de Janeiro.

Jair avança com tranquilidade. Jair nunca perde a calma. À sua frente, a gigantesca figura de Barbosa, o melhor goleiro do país, que se balança inutilmente. Jair ignora o arqueiro e prepara o golpe. Barbosa se enverga, vítima pronta para a estocada. Vai sair o gol.

Se o futebol de Jair é reconhecidamente de primeira linha, também é notório que Jair não é um jogador propriamente participativo. Com efeito, o center-half (ou ponta-de-lança, ou meia-atacante, ou camisa 10, como se queira) é o tal “arco e flecha”, que ajuda a municiar os homens de frente com seus passes cortantes, ou ele mesmo complementa a jogada, aproveitando-se de seu chute potente. No entanto, por ser fisicamente frágil, evita o choque direto, ocupando normalmente a faixa lateral do campo, onde prefere desenvolver seu jogo. Não gosta de combater a saída de bola dos zagueiros, é daqueles que anseiam pela bola limpa aos pés. Encontre Jair, consiga enxergá-lo, e ele lhe devolverá alegria e festa. Do contrário, será um espectador privilegiado, dentro das quatro linhas. Por conta disso, Jair jamais conseguiu conquistar as almas da Nação Flamenga, que sempre lhe agraciou com um viés desconfiado, palmas e muxoxos oscilando ao sabor do desempenho do time.

Barbosa se encolhe e dá o salto protocolar, desesperado, exatamente como Jair previra. É a hora do tiro final, da estocada que irá sangrar de morte o temido adversário, do lance que irá selar o terceiro gol de vantagem, talvez até abrindo uma inacreditável goleada.

O tiro sai certeiro, cirúrgico, mortal, reto. A bola zune ao lado de Barbosa, ganha o canto. Quica, esbarra numa imperfeição, muda levemente seu percurso, alcança a trave, beija levemente o poste.

E vai pra fora.

Um estádio imerso no mais perfeito silêncio transpira gelado, hirto de tensão. Absolutamente ninguém consegue se refazer de imediato do trágico milagre que se abate sobre o gramado vascaíno. Jair, sem esboçar a mais leve reação, contempla por alguns instantes a trave, vira-se em direção ao seu campo e retorna caminhando lentamente, inerte.

Há momentos em que se crava o destino de uma partida de futebol. Um átimo, um instante a partir do qual tudo parece estar escrito, estar previsto em um desígnio. O gol perdido por Jair infla o Vasco, que reacende seu ótimo time e parte para a esperada vitória. Um, dois, cinco gols, saem com absoluta naturalidade diante de um rubro-negro que simplesmente parece ter se abandonado em campo. A reação contemplativa da equipe, e a forma como se deixa derrotar, terá consequências graves, o Flamengo não está ambientado com a aceitação do revés. Cabeças logo virão a prêmio.

“QUEIMEM A CAMISA DESSE COVARDE!”

O mantra repetido aos gritos nas rádios pelo fundamentalista flamengo Ari Barroso é o estopim. O culpado já está indicado, escolhido, eleito e homologado. É Jair, que enfim recebe as manifestações definitivas de hostilidade de uma torcida já farta de seu temperamento evasivo. “Perdeu o gol porque tremeu”, “abaixou a cabeça e foi engolido”, “teve medo de Barbosa”, “frouxo”, são gritos que começam a pipocar, a espocar aqui e ali, tendo como alvo a quebradiça figura de Jajá.

Ari Barroso, que também é conselheiro e corneteiro ativo das coisas flamengas, está particularmente irritado com uma conversa que tivera na manhã da partida com o próprio Jair, na concentração rubro-negra, “e aí Jair, vamos vencer hoje?”, “é, talvez, se Deus quiser, mas vai ser difícil”, naquele peculiar tom arredio e longínquo que transmite de vez a Ari uma convicção de que “esse rapaz não tem flama, não tem denodo para envergar o manto flamengo”. Ademais, Jair, na véspera, aproveitara sua folga para jantar com um amigo antigo, membro da diretoria do Vasco da Gama, fato corriqueiro que Ari também explora em sua arenga ao microfone, “nunca deixou de lado suas raízes vascaínas!” (em que pese seu início no Madureira). Ari personifica a voz de uma nação ferida, machucada, inconformada, e que quer mudanças. Imediatas.

“QUEIMEM, QUEIMEM-LHE A CAMISA!”

Um grupo aborda Jair no vestiário. Quer explicações, aos gritos e dedo na cara. Tenso, não se intimida. Inicia-se um rebu, uma confusão, um rabo de arraia ali, um sopapo acolá. Mas ninguém se machuca seriamente. Somente um Manto. Uma camisa do Flamengo é ferida de morte, ao ser imolada por algum mais enfurecido. O pano, muitos dizem ser do próprio Jair, outros alegam ser de um torcedor comum, isso não importa. O Manto está lá, ardendo em chamas de sangue, rutilando sob as incandescentes a vorazes lambidas de dor, que o tornarão nada mais que cinzas. E daquela poeira escurecida e esquecida ao chão emergirá um símbolo sagrado, ainda mais forte, mais temido. E, tempos mais tarde, ao relembrar o episódio, a Nação flamenga, do alto de sua hegemonia, sussurrará num leve esgar, discreto sorriso à face. Percalço, eventual revés. Na lembrança, nada de detalhes, apenas o nome com que se tornou conhecido o polêmico episódio.

O jogo da camisa queimada.

* * *

O Flamengo ainda demorará algum tempo para retomar o caminho do protagonismo ao qual foi destinado. Com a contratação do treinador paraguaio Fleitas Solich e a reestruturação de sua política de garimpo de jovens talentos, o rubro-negro conseguirá montar uma equipe forte e poderosa, cuja base conquistará um tricampeonato estadual, um Torneio Rio-São Paulo e duas competições sul-americanas, entre outros títulos.

O jogo da camisa queimada foi o último de Jair da Rosa Pinto pelo Flamengo. Responsabilizado diretamente pela derrota, Jair acabou negociado com o Palmeiras, iniciando uma vitoriosa passagem pelo futebol paulista, onde conquistou vários títulos pelo alviverde e depois pelo Santos. Mas, apesar de ter sido um dos grandes jogadores de sua época (anos 1940 e 1950) e sempre titular incontestável, jamais foi ídolo nessas equipes.

Jair ainda disputou a Copa do Mundo de 1950 pela Seleção Brasileira, como titular.