quinta-feira, 17 de abril de 2014

Alfarrábios do Melo


Meu pequeno vascaíno,

O que há? Ainda tá assim?

Venha cá, larga esse lenço. Já tem quatro dias, chega de lamúria. Senta ali, vamos bater um papo, você já é um homenzinho. Isso, beleza. Limpa essa cara.

O que houve?

Flamengo? Só ganha roubado? Vasco só perde no apito? Então, tá.

Tá na hora de você ouvir umas coisas. Umas verdades.

Eu já perdi campeonato roubado, sabia? Já fui eliminado no apito, também. Perdi título com gol impedido (1995), com gol de jogador empurrando (1989), saí da Copa do Brasil com gol irregular (1999), da Libertadores com juiz que não deu pênalti (2007). Tudo isso e muito mais, se apertar um pouco.

Mas não é do Flamengo que eu quero falar, embora seja seu assunto preferido.

Vocês, vascaínos, adoram falar em ética e se vitimizarem. Não faz essa cara que é verdade. Vivem se intitulando guardiões da moral e dos bons costumes, sempre o coitadinho que precisa enfrentar esse mundo mau.

Vou te lembrar uma historinha. Você sabe o que aconteceu em 1974? Isso, isso, campeão brasileiro, né? Que orgulho, que conquista maiúscula...

Pois naquele ano o campeonato foi decidido num quadrangular, lembra? E que o Vasco tinha a pior campanha dos quatro. E que por isso tinha que fazer seus três jogos fora de casa. Mas estranhamente acabou fazendo dois jogos no Maracanã. Por conta disso, chegou ao fim empatado com o Cruzeiro (que era o melhor time do campeonato, melhor campanha) em pontos. E, por isso, deveria haver um jogo extra.

No Mineirão.

Mas o Vasco conseguiu levar o jogo pro Maracanã, lembra? Alegou que dirigentes do Cruzeiro invadiram o gramado (nem vou falar do pênalti escandaloso que não marcaram contra o Vasco nesse jogo, o que gerou a confusão) e por isso tinha que perder o mando de campo. E assim foi feito, na canetada, sem nem passar pelo STJD.

Você dirá, “ah, mas estava no regulamento”. Certo. Voltaremos a essa parte.

E aí a CBD do vascaíno Heleno Nunes marca o jogo para o Maracanã, com arbitragem do carioca Armando Marques. O jogo é bom, disputado, o Vasco marca dois gols em lances duvidosos, um anulado, o outro não, e vai vencendo por 2-1. Aí, aos 42 do segundo tempo o Cruzeiro empata, num gol de cabeça de Zé Carlos (mania que vocês têm de perder taça no finalzinho). Gol limpinho, purinho, legítimo, do bom. Só que o diligente e prestativo Armando Marques anula...

E o Vasco ganha o título. Olha o que sai nos jornais da época:

O Campeonato Nacional terminou, não vai deixar saudades, o Vasco é o campeão e isso é o que vai ficar registrado. Daqui a alguns anos, ninguém mais irá se lembrar de tudo o que se fez para ele chegar a esse título. A história do futebol tem poucos registros de jogadas de bastidores. Essa bola que não para de correr não dá tempo para pensar no passado. Viva o futebol.” (Folha de São Paulo).

E então, vamos falar de “ética” e “lisura”? De “Vasco sempre perseguido”?

Mas você falava do regulamento, que o art 59 do regulamento previa a inversão do mando, que regulamentos precisam ser cumpridos à risca e tal.

De fato, esse argumento do regulamento talvez resolva parte do seu problema em 1974. Mas já que é pra falar de regulamento. O regulamento da Copa João Havelange, em 2000. Lembra? Lá dizia que, caso uma partida fosse interrompida ou encerrada, se o clube mandante desse causa à anomalia, perderia os pontos do jogo.

Isso aconteceu logo na Final, olha que chato. Vasco x São Caetano, alambrado arrebenta por irresponsabilidade do mandante, que permitiu a superlotação (estima-se cerca de 50 mil num estádio que cabiam 40 mil). Pelo regulamento, o São Caetano deveria ganhar os pontos do jogo e ser o campeão. Afinal, regulamentos devem ser cumpridos.

Mas isso não aconteceu. Marcou-se nova partida. Nem o mando de campo o Vasco perdeu, o jogo ficou no Rio de Janeiro, no Maracanã. O Vasco venceu o jogo remarcado (3-1) e ficou com o título.

Agora você me deixou confuso. É pra cumprir ou não é pra cumprir o regulamento? Porque nos casos de 1974 e 2000 o único ponto que liga as duas histórias de forma coerente é o fato de que o Vasco saiu beneficiado em ambos os casos.

“Vasco, sempre prejudicado”.

“Sempre ganhamos no campo”. De fato, o Vasco é um clube que jamais recorreu a manobras espúrias de bastidores, sempre seguiu religiosamente as regras do jogo, nunca tentou levar qualquer tipo de vantagem indevida... Sei.

Então não sei o que os moveu para ter arrumado um artifício para escalar o suspenso Edmundo na final do Brasileiro de 1997, ter escalado irregularmente o expulso Marquinho e o suspenso (três cartões amarelos) João Luís na segunda final do Estadual de 1981, e não contente ter repetido a dose na finalíssima escalando de novo o (agora suspenso por expulsão, esse danadinho) João Luís. Do ladrilheiro vocês falam, os jogadores irregulares vocês não mencionam. E que tal o Estadual de 1994, em que o Vasco passou por cima da tabela do Quadrangular Final e ajeitou com a FERJ uma conveniente inversão das duas últimas rodadas, escapando de enfrentar o motivado Fluminense antes do despedaçado Botafogo? Ou os Estaduais de 1997 e 1998, que o Caixa d'Água só soltava as datas dos jogos depois de se reunir com o Dotô Eurico?

“Contra tudo e contra todos”.

Mas, voltando ao nosso caso. Quer dizer que vocês querem anular o jogo? Legal. Qual a alegação? “O Vasco não podia perder”, foi o que falou o advogado. Entendo, tudo muito sólido, tudo amparado em um princípio antigo do Direito, o juris esperneandi.

Não me lembro do Vasco ter tentado anular o jogo que ganhou do poderoso ABC, lá na Copa do Brasil que vocês conquistaram, em 2011. Time perdendo, jogo complicado, eliminação batendo na porta. Aí o juiz aparece com um pênalti camarada, daqueles que é difícil conter o riso. Eu realmente não me recordo de ter ouvido alguém do Vasco invocar ética, moral ou bons costumes. Só me lembro de tê-los visto falar de classificação “heroica” e “dramática”. Naturalmente.

Ou de tentarem anular o jogo que ganharam do Bangu em 1998, gol do Mauro Galvão impedido, o Rubens Lopes (na época presidente do Bangu) querendo bater no juiz, o Eurico dizendo que “árbitros não são infalíveis”, enfim.

Mas isso de querer anular jogo não é novo. Lembra a Taça GB de 1982? Houve um jogo-extra, Flamengo e Vasco. Partida absolutamente normal. Dura, pegada, forte, de decisão. Mas normal e até tranquila, ninguém expulso, nenhum lance polêmico, nada, nada. Nenhum motivo para um ai. O jogo só teve um problema grave: o Flamengo ganhou. No finalzinho (ô, mania!). Pronto, vascaínos, foi o argumento que vocês queriam. Anula, anula! Anula que o Flamengo ganhou. O mote, a revelação de que o árbitro José Roberto Wright apitou com um microfone sob a camisa, o que o regulamento (olha o regulamento de novo...) não permitia nem proibia. Mas tem que anular, tem que anular, o Vasco perdeu. Vocês entraram no tribunal, só pra perder de novo. De goleada.

E houve outra, mais uma Taça GB, agora 1988. Segundo tempo, Flamengo ganhando de 1-0, luz apaga. Espera aqui, espera ali, a luz enfim volta. Mas cadê o Vasco? Já havia escoado para o vestiário, em fuga clandestina. A luz lá, acesa, o Flamengo batendo bola, o público esperando, e o Vasco tomando banho, escondido. “Vamos anular o jogo”, berrava seu vice-presidente. Anula, que o Flamengo ganhou. Anula, que o Vasco não pode perder. Mas perdeu. De novo.

Sempre perseguido, pobre Vasco.

Seu presidente, o Dinamite. Esses pitis, essa histeria, esses escândalos a cada pemba que leva do Flamengo não são coisa nova. Fez em 1983 (queria dar porrada no juiz porque ele cometeu o grave erro de validar um gol legal do Zico), fez em 1986 (expulso por dar pontapés em Andrade assim que o Flamengo empatou a Final da Taça Rio, gol de pênalti, imagina dar um pênalti pro Flamengo, crime de morte).

Sempre coitadinho, pobre Vasco.

Enfim, basta. Só tem mais uma coisa. O América já foi rival do Flamengo, sabia? É, daqueles ferrenhos, de discutir em bar, de jogador ganhar bicho extra, de disputar campeonato ponto a ponto. Entrou numa de coitadismo. Olha onde estão hoje. Acha que o Vasco tá indo muito diferente? 2008 pra cá vocês nos venceram TRÊS vezes. O Resende DUAS, pra se ter uma ideia. Barcelona x Español. Abre o olho.

Há alguma novidade no que foi dito aqui? Não sabia, não lembrava? Memória seletiva? Naturalmente. Afinal de contas, essas histórias não costumam ser requentadas em sites “anti-Vasco”, em dossiês de youtube, em “manifestos”, “panfletos” e coisas do tipo. Não se fica pisando ou repisando as passagens polêmicas da história vascaína.

Não porque elas não tenham existido.

Mas porque isso não importa.


* Agradecimento ao colega Vinícius Norske pela foto da caravela, que ilustra mais um momento edificante da gloriosa história do CR Vasco da Gama, atual vice-campeão estadual.