quinta-feira, 3 de abril de 2014

Alfarrábios do Melo

1987.

O cenário é desolador.

Poucas vezes a Gávea terá respirado ares tão confusos e nervosos como o deste princípio de outubro. Há uma embarcação que parece singrar completamente à deriva, sem norte, sem rumo, sem comando, sem nada.

As perspectivas parecem sombrias.

O grupo de jogadores bate cabeça, reflexo de uma campanha pífia e incompatível com a dimensão e o porte do Flamengo. Três derrotas em cinco jogos e uma pontuação que resvala as últimas colocações da competição.

E não se consegue um diagnóstico de consenso.

Defensores acusam abertamente a falta de qualidade nas finalizações ofensivas. “O ataque não conclui as jogadas, não ajuda na marcação”. Outros são ainda mais contundentes, “faltam atacantes de qualidade”. Os atacantes devolvem, “a defesa não marca, o meio-campo só cerca”, os meias acusam todos os outros. Jogadores como Andrade, Renato e Nunes trocam farpas mútuas e públicas, em uma situação que foge ao controle do inexperiente treinador Carlinhos, que, apesar de estar há quase um mês no cargo, ainda não parece ter se livrado das amarras da interinidade.

Além de seu temperamento arredio e introspectivo, Carlinhos, que conta com a aberta desconfiança da crônica e de parte da torcida, ainda padece com as sucessivas lesões que o impedem de formatar o esquema que julga ideal para a equipe, uma emulação do desenho adotado por seu antecessor, Antonio Lopes, no Terceiro Turno do Estadual, com Renato e Bebeto flutuando no ataque sem posições fixas, Zico um pouco atrás na armação e dois meias aguerridos ajudando Andrade no bloqueio do meio-campo. Sem Adalberto (que, indo e voltando, ainda vive o drama da fratura sofrida um ano antes) e Marquinho (negociado com o Atlético-MG), recorre aos garotos Leonardo e Zinho, além de efetivar o raçudo Ailton no lugar de Júlio César. No entanto, várias lesões acabam atrapalhando o trabalho do Violino.

Edinho está fora, recuperando-se dos socos criminosos desferidos por Geovani no jogo contra o Vasco. Leandro (que já não consegue manter uma sequência de jogos) é outro afastado. Bebeto também se machuca, músculo. Leonardo, após boa estreia, cai assustadoramente de rendimento e está ameaçado de barracão. Jorginho anda aborrecido com a sua renovação de contrato que ameaça virar novela.

E há Zico.

Com o joelho enfim estabilizado após dois anos de agonia e duas cirurgias arriscadas, o Galinho agora sofre com as seguidas e sucessivas lesões musculares. Em três meses de atividade, o ídolo flamengo já conviveu com três lesões sérias (apenas uma decorrente de pancada) e, em um momento de desabafo, chega a cogitar abandonar a carreira. Zico ainda lida, pela primeira vez na carreira, com sérias desconfianças e contestações, que partem da imprensa e de conselheiros do Flamengo, refletido na traumática renovação do seu contrato, em que alguns membros da diretoria manifestaram-se abertamente contrários, e foi necessário que o presidente bancasse pessoalmente a operação. Sempre sério, sempre profissional, Zico segue treinando, em busca, pela enésima vez, ganhar condições de jogo para, quem sabe, retornar aos gramados e enfim manter uma sequência de jogos, voltando a ser útil, importante e decisivo.

Mas agora, com o clube afundado em crise, isso parece distante.

Com as contusões, Carlinhos precisa garimpar talentos em um elenco escasso. Volta a recorrer ao veterano Nunes, que exibe em seu futebol visíveis sinais de decadência, além de um temperamento cada vez mais irascível, deteriorando rapidamente seu ambiente no grupo. Outro recrutado é o esquecido Kita, que apenas espera o final do seu contrato para ser negociado. Na defesa, os jovens Zé Carlos II e Aldair voltam a ter chances. Esse é o time que, desfigurado, vai se preparando para a sequência da competição, escorado justamente nos dois jogadores que têm se desentendido em público, Andrade e Renato, os únicos a serem seguidamente elogiados por suas atuações (aliás, Renato é um caso à parte, enfim parece ter reencontrado a forma após seis meses indo e vindo ao Departamento Médico).

A tabela marca o Coritiba, no Maracanã.

Desmotivado, desunido e desfigurado, o Flamengo ainda sofre com mais uma crise, que explode na véspera da partida. Os principais lideres das torcidas organizadas, que há alguns anos se arrogam o direito de falar “em nome da torcida”, avisam que “não se responsabilizarão” caso o time experimente novo insucesso. A mensagem, que nada tem de cifrada, remete aos momentos de terror protagonizados pelos mesmos atores no início do ano em Niterói (jogadores e repórteres apedrejados após uma derrota para o Americano) e Mesquita (novo quebra-quebra após um empate com o time local). Fraca, temerosa e buscando a diplomacia, a diretoria praticamente oferece a cabeça de Carlinhos aos baderneiros, em caso de revés.

O Flamengo está às portas de uma hecatombe.

O Coritiba é um franco-atirador, faz campanha razoável, parece mais satisfeito em ter revelado o talentoso meia Milton (o que renderá importante aporte de recursos no futuro com sua venda). Ironicamente, seu nome mais conhecido é Adílio, que irá enfrentar o clube de coração poucos meses após ter sido de lá escorraçado, em uma manobra covarde em que a responsabilidade pela dispensa recaiu exclusivamente sobre o treinador Antonio Lopes (demitido poucos dias depois).

Maracanã gelado. Começa a partida.

O time, escalado com três atacantes (Renato, Nunes e Kita, que veste a 10), não se entende, a bola queima no pé, vê o Coritiba melhor. Vaias. Palavras de ordem. Fora fulano, fora beltrano. Falta na intermediária flamenga, lado direito. A bola na área, rasteira, Tostão escora e Marildo emenda devagar, colocado, um chute defensável que mesmo assim entra. Coritiba 1-0. Seis minutos de jogo.

Os torcedores (os organizados) se esquecem do jogo, fazem “passeatas”, ensaiam invadir o gramado, praguejam contra a diretoria, contra Carlinhos. O time segue errando tudo. Receosos, alguns já se posicionam perto da saída. Vai ter confusão. O Flamengo parece afundar em crise.

O Flamengo morreu, decretam alguns.

Renato lança Jorginho, que avança pela direita e cruza. A bola sai errada, mas o goleiro Rafael se atrapalha e não chega. O zagueiro Vagner chega para escorar. Vem confiante, está sozinho, a bola parece fácil.

Tudo indica que irá controlar o lance. Tudo indica. Todos os prognósticos. Toda a expectativa. Toda a opinião.

Mas Vagner escora mal. É gol.

Começa a reação do Flamengo. No jogo. No campeonato. Na vida.

Como as coisas são, desde sempre.

 (O Flamengo venceu a partida por 3-1, com direito a um gol de placa do contestado Kita. A vitória foi fundamental para devolver a tranquilidade à equipe que, aos poucos, foi se reorganizando e, numa arrancada fulminante, partiu para a conquista do tetracampeonato brasileiro, comandada por Bebeto, Andrade, Renato. E, principalmente, Zico).