Saudações flamengas a todos.
Hoje quero deixar uma singela homenagem aos campeões das Américas. Convido-os a visitar 1955. Boa leitura.
* * *
Está
bonito o Maracanãzinho.
Empolado
de faixas e bandeiras, tingido em negro e vermelho, o ginásio se arruma para a
grande festa de logo mais.
Hoje é
dia de gritar campeão. Ou melhor, pentacampeão.
Sim, porque
o Flamengo, o portentoso Flamengo, equipe mitológica que desde já resta
inscrita em letras robustas, cravadas indelevelmente na pedra da história, o
Flamengo tetracampeão estadual invicto com um cartel de 87 vitórias (OITENTA E SETE)
em 87 jogos, o Flamengo do treinador Kanela, campeão dezesseis vezes nos
últimos 20 anos (por clubes diversos), o Flamengo de Algodão, Zé Mário,
Godinho, Válter, Artur, Guguta, Alfredo, o imbatível Flamengo cumpre o último
compromisso da temporada, contra o Sírio Libanês.
O
campeonato é decidido em um triangular, o chamado “super”. Na fase inicial, as
equipes foram divididas em duas chaves, cujos campeões (Flamengo e Sírio) se
qualificaram junto ao terceiro colocado geral, o Fluminense. Na fase final, o
rubro-negro saiu vencedor do Fla-Flu (64-53) e o tricolor se recuperou
derrotando o Sírio (81-71). Assim, basta uma vitória para que o Mengão consume
mais uma temporada vitoriosa. O adversário é forte, perigoso e está mordido. Só
que o Flamengo paira, sobra.
A massa
rubro-negra sabe disso, lota o ginásio e faz sua festa, cantando seus heróis,
celebrando a quase inverossímil hegemonia. Hoje é dia de mais um espetáculo, de
taça, de volta olímpica, de festa, de batucada. Mais uma exibição.
Mas
perde.
Perde, e
perde aquelas derrotas inapeláveis, insofismáveis, contundentes, onde não há
discussão. A superioridade do Sírio é verborrágica, o adversário dá mostras de
ter estudado meticulosamente os pontos fortes e fracos do rubro-negro. 63-46.
Dezessete pontos. Em nenhum, nem no mais remoto momento o Flamengo sequer
ameaça esboçar reação. Perde o jogo, a invencibilidade. E agora o título está
por um fio. Empate tríplice.
Outro
triangular é marcado. Outro supercampeonato. Dessa vez em turno e returno, para
tentar evitar novo empate. Sorteia-se a ordem dos jogos. E logo na primeira
rodada, o reencontro.
Flamengo
e Sírio.
A
acachapante perda da invencibilidade flamenga repercute forte no meio
esportivo. Celebrado pela imprensa, o Sírio não se permite tripudiar o
adversário temido e respeitado, segue concentrado, treinando forte.
Mas o que
impressiona é a reação de Kanela.
Meticuloso
ao extremo, dotado de uma personalidade forte, perfil disciplinador e com
sérias dificuldades de lidar com o revés, o treinador flamengo revê
repetidamente a derrota em sua mente. Tira suas conclusões. Faz seus jogadores
treinarem até o limite da exaustão física. Aos gritos, deixa claro aos
comandados que não aceitará mais uma derrota. E os faz comprar a ideia.
Chega o
dia do jogo.
O ginásio
está ainda mais cheio. Agora o Sírio se faz representar por uma ruidosa
torcida, que embora não possa competir com a esmagadora maioria flamenga,
também marca presença com seus tambores e maracas. Já o Flamengo, que se mostra
mobilizado para não perder a hegemonia, aflui com sua massa em peso, nação em
brasa.
A crônica
se despeja ao Maracanãzinho, em busca da resposta à questão que se impõe, terá
o Rio de Janeiro novo dono no basquete? O Flamengo acabou?
A
preleção no vestiário flamengo é histórica. Dotado de uma capacidade de
oratória sem precedentes, Kanela é um general em batalha. Alterna com
brilhantismo berros e sussurros, mexe com o brio e a vaidade de seus
comandados. Conversa com todos, olhar fixo. Aos mais tímidos e susceptíveis, o
afago, a palavra doce, “sinto que você está tinindo hoje, puxa, acho que você
vai arrebentar”. Já os mais marrentos são contemplados com um tapa nas costas,
“aí, deu no jornal que você jogou nada, que tá acabado, que seleção já era pra
ti, e aí? Ficamos assim?”, de forma que, ao final da arenga, o Flamengo são dez
feras bufando pra devorar miolos e tripas.
A bola é
lançada. Vai começar a decisão.
Possesso
e esfomeado, o Flamengo se atira ao ataque, à pressão sufocante, à definição
apressada, e domina amplamente a partida. O volume de jogo flamengo incendeia o
ginásio, a torcida inflamada a cada cesta. A ideia é abrir uma vantagem folgada
e quebrar o adversário. Mas o Sírio já espera essa explosão de determinação,
mantêm-se concentrado, não perde a tranquilidade. Não entra na correria
adversária, roda a bola, sem pressa, trabalha suas jogadas. Busca manter-se no
jogo, não deixar que o rubro-negro não desgarre. E vai conseguindo. A essa
altura, o placar marca 21-16 para o Flamengo.
O jogo
vai seguindo, a sucessão de faltas começa a fazer com que os elencos rodem, o
Flamengo perde ímpeto. Extremamente focado e sem se abalar com a torcida, o
Sírio continua com seu jogo de paciência, explorando as falhas e a ansiedade
flamengas. Começa a encostar no placar. Agora está a um ponto. O primeiro tempo
está no fim. No último ataque, a virada. Flamengo 22-23 Sírio.
Termina o
primeiro tempo. Sírio na frente.
Segunda
etapa, o equilíbrio se mantém. As equipes vão trocando pontos, o Flamengo, mais
calmo, faz um jogo mais racional, defensivo, não se expõe aos erros que lhe
custaram a derrota no último jogo. Cozinha a partida até a metade do segundo
tempo, quando Kanela, com algumas alterações, muda o panorama e torna seu time
mais agressivo e vertical. As mudanças dão certo, o Sírio sente o golpe e o
Flamengo agora abre novamente cinco pontos, 39-34. O jogo chega à reta final, e
tudo aponta para uma vitória flamenga.
Mas um
pedido de tempo recoloca o Sírio no jogo. Sem jamais perder a determinação, o
time volta a encostar no marcador. Faltam menos de cinco minutos. A diferença é
de um ponto. O ar no ginásio começa a se tornar denso, pesado, escuro. A
respiração se torna mais lenta. O calor é infernal.
Os
ataques começam a ser superados pelas defesas. Os pontos rareiam, agora há em
quadra dez valentes soldados, dispostos à defesa canina de suas metas. Nada
passa. De longe, de perto, os tiros são sumariamente rechaçados. Os sistemas de
marcação são intransponíveis. O Flamengo vence por 43-42. Resta pouco mais de
um minuto.
Súbito, a
distração. O lapso. A falha. A infiltração furtiva, quase clandestina. A cesta.
Cesta do
Sírio. 44-43. Menos de um minuto.
Kanela,
enlouquecido, pede tempo. O relógio para, junto com cada pulsar. Não se ouve
nada além dos surdos gritos dos treinadores. O comandante exibe, repete e
repete de novo o que quer. Olhos esbugalhados, nem pisca. Os semblantes sérios,
graves.
Vai sair
a bola. É o derradeiro ataque.
O
Flamengo roda a bola. O relógio corre. Tal como criteriosamente instruído por
Kanela, o lance transcorre. Como previsto, o time encontra a brecha. O buraco
identificado pelos atentos olhos do arguto comandante. Agora, o desfecho. A
cesta redentora.
Mas algo
dá errado. O arremesso sai seco, cortante. E fora.
O Sírio
fica com a bola. Gira lá e cá, até o inevitável tapa. Falta.
O Sírio tem
a vantagem. 44-43. Tem dois lances livres. Faltam cinco segundos. Vai matar o
jogo (não há cestas de três pontos). É o fim.
Agora o
desânimo no ginásio é evidente. Alguns parecem soçobrar. Até que se lembram que
são Flamengo. E que o Flamengo nunca está derrotado, nem quando o jogo termina.
E, ao invés do esperado silêncio, o Maracanãzinho enlouquece em cantos, gritos
e assobios. “Flamengo, Flamengo”, berra cada torcedor, cada alma rubro-negra,
cada membro da nação.
O Sírio
vai cobrar os lances livres. Olivieri se prepara, concentra-se, atira a
primeira bola.
E erra.
Erra, e é
engolido por um ginásio em chamas, um ginásio que agora percebe que, mais do
que nunca, está no jogo, está marcando, precisa empurrar, lançar, arremessar.
Olivieri
vai para o lance final. Bate calma e lentamente a bola, é afagado pelos
companheiros, fecha os olhos, tenta se manter inerte ao incêndio. Empertiga-se,
arruma o tronco, ergue os braços, atira.
A bola
agora é certeira, reta. Descai no momento certo. Pousa no aro. Rodopia
lentamente. Ninguém ousa respirar. Calmamente, a bola caminha, vaidosa,
equilibrista, sem pressa. E cai. Fora.
Explosão,
gritos, mas não há tempo. Menos de cinco segundos. Quatro... três...
A sobra
cai nas mãos de Algodão, daí a Alfredo. Três... dois... De Alfredo para Guguta.
Dois... um... Não há mais tempo, acabou a tática, acabou tudo. Guguta solta a
bola no momento final. A sirene grita, inclemente. É o final do jogo, cujo
desfecho agora depende apenas do caminho que a bola de Guguta resolverá seguir.
O tiro de Guguta, mais que um desajeitado arremesso, é o estertor de uma nação
por um fio, um fio de esperança, de crença, de fé. De saber que, quando tudo
parece se extinguir, o Flamengo irrompe, renasce, alimenta-se de suas próprias
cinzas e emerge, ainda mais forte, mais gigante.
A bola
alça voo. Olhares secos, febris, suplicantes, esperançosos. Olhares que se
erguem, que se tornam mais fixos, que sopram, empurram. Olhares que gritam,
olhares eufóricos e incrédulos, olhares em festa, olhares em fogo. Olhares que
testemunham uma trajetória diabolicamente divina, bola que mergulha e arromba a
cesta, bola que destroi o adversário, bola que prefere a vitória, que se
declara Flamengo.
Fim do
jogo. Flamengo 45-44 Sírio.
O ginásio
se derrama para a quadra, agora torcedores e jogadores materializam sua união,
uma só fé, um só corpo. Sereno, o presidente Gilberto Cardoso sorri das
tribunas. É cumprimentado, elogiado. Algo ofegante, desce ao estacionamento,
entra em seu carro. Agora arfa. Põe o veículo em movimento. Dirige alguns
metros. Sente dores, dormência. Algo parece errado. Antevendo o pior, consegue
chegar a um hospital. Rapidamente é atendido. Emergência. Mas súbito sente-se
leve, entra em torpor, percebe-se flutuando em uma suave bruma, vê gols,
cestas, gritos, festa, um turbilhão que rodopia e redemoinha até chegar aos pés
descalços do garoto de rua, que quase sem dentes balbucia “Mengô”. E expira.
Expira a mais intensa, a mais forte, a mais poética, a mais linda das mortes.
A morte
de ser Flamengo.
O Flamengo vencerá os três jogos restantes do triangular e se sagrará pentacampeão, mantendo uma hegemonia que seguirá até 1960, com a conquista do decacampeonato. O título de 1955 no basquete, tal como o tricampeonato do futebol, conquistado meses mais tarde, serão dedicados a Gilberto Cardoso, que no futuro dará o nome oficial ao Maracanãzinho, onde assistiu ao jogo que lhe custou a vida.