quinta-feira, 27 de março de 2014

Alfarrábios do Melo


Saudações flamengas a todos.
Hoje quero deixar uma singela homenagem aos campeões das Américas. Convido-os a visitar 1955. Boa leitura.

* * *
Está bonito o Maracanãzinho.

Empolado de faixas e bandeiras, tingido em negro e vermelho, o ginásio se arruma para a grande festa de logo mais.

Hoje é dia de gritar campeão. Ou melhor, pentacampeão.

Sim, porque o Flamengo, o portentoso Flamengo, equipe mitológica que desde já resta inscrita em letras robustas, cravadas indelevelmente na pedra da história, o Flamengo tetracampeão estadual invicto com um cartel de 87 vitórias (OITENTA E SETE) em 87 jogos, o Flamengo do treinador Kanela, campeão dezesseis vezes nos últimos 20 anos (por clubes diversos), o Flamengo de Algodão, Zé Mário, Godinho, Válter, Artur, Guguta, Alfredo, o imbatível Flamengo cumpre o último compromisso da temporada, contra o Sírio Libanês.

O campeonato é decidido em um triangular, o chamado “super”. Na fase inicial, as equipes foram divididas em duas chaves, cujos campeões (Flamengo e Sírio) se qualificaram junto ao terceiro colocado geral, o Fluminense. Na fase final, o rubro-negro saiu vencedor do Fla-Flu (64-53) e o tricolor se recuperou derrotando o Sírio (81-71). Assim, basta uma vitória para que o Mengão consume mais uma temporada vitoriosa. O adversário é forte, perigoso e está mordido. Só que o Flamengo paira, sobra.

A massa rubro-negra sabe disso, lota o ginásio e faz sua festa, cantando seus heróis, celebrando a quase inverossímil hegemonia. Hoje é dia de mais um espetáculo, de taça, de volta olímpica, de festa, de batucada. Mais uma exibição.

Mas perde.

Perde, e perde aquelas derrotas inapeláveis, insofismáveis, contundentes, onde não há discussão. A superioridade do Sírio é verborrágica, o adversário dá mostras de ter estudado meticulosamente os pontos fortes e fracos do rubro-negro. 63-46. Dezessete pontos. Em nenhum, nem no mais remoto momento o Flamengo sequer ameaça esboçar reação. Perde o jogo, a invencibilidade. E agora o título está por um fio. Empate tríplice.

Outro triangular é marcado. Outro supercampeonato. Dessa vez em turno e returno, para tentar evitar novo empate. Sorteia-se a ordem dos jogos. E logo na primeira rodada, o reencontro.

Flamengo e Sírio.

A acachapante perda da invencibilidade flamenga repercute forte no meio esportivo. Celebrado pela imprensa, o Sírio não se permite tripudiar o adversário temido e respeitado, segue concentrado, treinando forte.

Mas o que impressiona é a reação de Kanela.

Meticuloso ao extremo, dotado de uma personalidade forte, perfil disciplinador e com sérias dificuldades de lidar com o revés, o treinador flamengo revê repetidamente a derrota em sua mente. Tira suas conclusões. Faz seus jogadores treinarem até o limite da exaustão física. Aos gritos, deixa claro aos comandados que não aceitará mais uma derrota. E os faz comprar a ideia.

Chega o dia do jogo.

O ginásio está ainda mais cheio. Agora o Sírio se faz representar por uma ruidosa torcida, que embora não possa competir com a esmagadora maioria flamenga, também marca presença com seus tambores e maracas. Já o Flamengo, que se mostra mobilizado para não perder a hegemonia, aflui com sua massa em peso, nação em brasa.

A crônica se despeja ao Maracanãzinho, em busca da resposta à questão que se impõe, terá o Rio de Janeiro novo dono no basquete? O Flamengo acabou?

A preleção no vestiário flamengo é histórica. Dotado de uma capacidade de oratória sem precedentes, Kanela é um general em batalha. Alterna com brilhantismo berros e sussurros, mexe com o brio e a vaidade de seus comandados. Conversa com todos, olhar fixo. Aos mais tímidos e susceptíveis, o afago, a palavra doce, “sinto que você está tinindo hoje, puxa, acho que você vai arrebentar”. Já os mais marrentos são contemplados com um tapa nas costas, “aí, deu no jornal que você jogou nada, que tá acabado, que seleção já era pra ti, e aí? Ficamos assim?”, de forma que, ao final da arenga, o Flamengo são dez feras bufando pra devorar miolos e tripas.
A bola é lançada. Vai começar a decisão.

Possesso e esfomeado, o Flamengo se atira ao ataque, à pressão sufocante, à definição apressada, e domina amplamente a partida. O volume de jogo flamengo incendeia o ginásio, a torcida inflamada a cada cesta. A ideia é abrir uma vantagem folgada e quebrar o adversário. Mas o Sírio já espera essa explosão de determinação, mantêm-se concentrado, não perde a tranquilidade. Não entra na correria adversária, roda a bola, sem pressa, trabalha suas jogadas. Busca manter-se no jogo, não deixar que o rubro-negro não desgarre. E vai conseguindo. A essa altura, o placar marca 21-16 para o Flamengo.

O jogo vai seguindo, a sucessão de faltas começa a fazer com que os elencos rodem, o Flamengo perde ímpeto. Extremamente focado e sem se abalar com a torcida, o Sírio continua com seu jogo de paciência, explorando as falhas e a ansiedade flamengas. Começa a encostar no placar. Agora está a um ponto. O primeiro tempo está no fim. No último ataque, a virada. Flamengo 22-23 Sírio.

Termina o primeiro tempo. Sírio na frente.

Segunda etapa, o equilíbrio se mantém. As equipes vão trocando pontos, o Flamengo, mais calmo, faz um jogo mais racional, defensivo, não se expõe aos erros que lhe custaram a derrota no último jogo. Cozinha a partida até a metade do segundo tempo, quando Kanela, com algumas alterações, muda o panorama e torna seu time mais agressivo e vertical. As mudanças dão certo, o Sírio sente o golpe e o Flamengo agora abre novamente cinco pontos, 39-34. O jogo chega à reta final, e tudo aponta para uma vitória flamenga.

Mas um pedido de tempo recoloca o Sírio no jogo. Sem jamais perder a determinação, o time volta a encostar no marcador. Faltam menos de cinco minutos. A diferença é de um ponto. O ar no ginásio começa a se tornar denso, pesado, escuro. A respiração se torna mais lenta. O calor é infernal.

Os ataques começam a ser superados pelas defesas. Os pontos rareiam, agora há em quadra dez valentes soldados, dispostos à defesa canina de suas metas. Nada passa. De longe, de perto, os tiros são sumariamente rechaçados. Os sistemas de marcação são intransponíveis. O Flamengo vence por 43-42. Resta pouco mais de um minuto.

Súbito, a distração. O lapso. A falha. A infiltração furtiva, quase clandestina. A cesta.

Cesta do Sírio. 44-43. Menos de um minuto.

Kanela, enlouquecido, pede tempo. O relógio para, junto com cada pulsar. Não se ouve nada além dos surdos gritos dos treinadores. O comandante exibe, repete e repete de novo o que quer. Olhos esbugalhados, nem pisca. Os semblantes sérios, graves.

Vai sair a bola. É o derradeiro ataque.

O Flamengo roda a bola. O relógio corre. Tal como criteriosamente instruído por Kanela, o lance transcorre. Como previsto, o time encontra a brecha. O buraco identificado pelos atentos olhos do arguto comandante. Agora, o desfecho. A cesta redentora.

Mas algo dá errado. O arremesso sai seco, cortante. E fora.

O Sírio fica com a bola. Gira lá e cá, até o inevitável tapa. Falta.

O Sírio tem a vantagem. 44-43. Tem dois lances livres. Faltam cinco segundos. Vai matar o jogo (não há cestas de três pontos). É o fim.

Agora o desânimo no ginásio é evidente. Alguns parecem soçobrar. Até que se lembram que são Flamengo. E que o Flamengo nunca está derrotado, nem quando o jogo termina. E, ao invés do esperado silêncio, o Maracanãzinho enlouquece em cantos, gritos e assobios. “Flamengo, Flamengo”, berra cada torcedor, cada alma rubro-negra, cada membro da nação.

O Sírio vai cobrar os lances livres. Olivieri se prepara, concentra-se, atira a primeira bola.

E erra.

Erra, e é engolido por um ginásio em chamas, um ginásio que agora percebe que, mais do que nunca, está no jogo, está marcando, precisa empurrar, lançar, arremessar.

Olivieri vai para o lance final. Bate calma e lentamente a bola, é afagado pelos companheiros, fecha os olhos, tenta se manter inerte ao incêndio. Empertiga-se, arruma o tronco, ergue os braços, atira.

A bola agora é certeira, reta. Descai no momento certo. Pousa no aro. Rodopia lentamente. Ninguém ousa respirar. Calmamente, a bola caminha, vaidosa, equilibrista, sem pressa. E cai. Fora.

Explosão, gritos, mas não há tempo. Menos de cinco segundos. Quatro... três...

A sobra cai nas mãos de Algodão, daí a Alfredo. Três... dois... De Alfredo para Guguta. Dois... um... Não há mais tempo, acabou a tática, acabou tudo. Guguta solta a bola no momento final. A sirene grita, inclemente. É o final do jogo, cujo desfecho agora depende apenas do caminho que a bola de Guguta resolverá seguir. O tiro de Guguta, mais que um desajeitado arremesso, é o estertor de uma nação por um fio, um fio de esperança, de crença, de fé. De saber que, quando tudo parece se extinguir, o Flamengo irrompe, renasce, alimenta-se de suas próprias cinzas e emerge, ainda mais forte, mais gigante.

A bola alça voo. Olhares secos, febris, suplicantes, esperançosos. Olhares que se erguem, que se tornam mais fixos, que sopram, empurram. Olhares que gritam, olhares eufóricos e incrédulos, olhares em festa, olhares em fogo. Olhares que testemunham uma trajetória diabolicamente divina, bola que mergulha e arromba a cesta, bola que destroi o adversário, bola que prefere a vitória, que se declara Flamengo.

Fim do jogo. Flamengo 45-44 Sírio.

O ginásio se derrama para a quadra, agora torcedores e jogadores materializam sua união, uma só fé, um só corpo. Sereno, o presidente Gilberto Cardoso sorri das tribunas. É cumprimentado, elogiado. Algo ofegante, desce ao estacionamento, entra em seu carro. Agora arfa. Põe o veículo em movimento. Dirige alguns metros. Sente dores, dormência. Algo parece errado. Antevendo o pior, consegue chegar a um hospital. Rapidamente é atendido. Emergência. Mas súbito sente-se leve, entra em torpor, percebe-se flutuando em uma suave bruma, vê gols, cestas, gritos, festa, um turbilhão que rodopia e redemoinha até chegar aos pés descalços do garoto de rua, que quase sem dentes balbucia “Mengô”. E expira. Expira a mais intensa, a mais forte, a mais poética, a mais linda das mortes.


A morte de ser Flamengo.



O Flamengo vencerá os três jogos restantes do triangular e se sagrará pentacampeão, mantendo uma hegemonia que seguirá até 1960, com a conquista do decacampeonato. O título de 1955 no basquete, tal como o tricampeonato do futebol, conquistado meses mais tarde, serão dedicados a Gilberto Cardoso, que no futuro dará o nome oficial ao Maracanãzinho, onde assistiu ao jogo que lhe custou a vida.