domingo, 16 de fevereiro de 2014

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos.

Essa semana proponho um desafio. Identificar o protagonista da história que segue. Uma história bonita e inusitada. Boa leitura.

* * *

O sonho de Zezinho é jogar bola.

Talento ele sabe que tem. Isso sempre fica claro nas peladas de sua Bangu, em que é destaque, artilheiro, craque e estrela dos times em que joga.

Igualmente há o prazer. Zezinho se sente flutuando com uma bola nos pés, é capaz de passar horas e horas e horas perdido na mais remota pelada. Os cansativos exercícios de aprimoramento (chute na parede, embaixadas) também o divertem inapelavelmente.

E os devaneios de menino... A terra batida do subúrbio se traveste de um Maracanã, um Wembley. O trapo rasgado de Zezinho se torna a dez da Seleção, do Flamengo. Cada gol, cada aplauso entusiasmado da barulhenta malta de moleques lhe chega aos ouvidos como o urro de uma nação enlouquecida a seus pés. Zezinho se perde, Zezinho divaga, Zezinho se sente irremediavelmente imerso naquela realidade que lhe é tão distante.

Distante como o Flamengo, ou mesmo os outros grandes da cidade. Zezinho vai ter que tentar a sorte em um recanto mais próximo, dentro do que permite sua realidade de menino pobre.

E Zezinho vai tentar a sorte no Campo Grande, o Campusca, conhecido celeiro de craques. Logo se destaca, não tem dificuldades para ser efetivado no infantil. Habilidoso e muito rápido, a bola lhe gruda aos pés. Visão de jogo cerebral, possui incrível facilidade para encontrar um companheiro livre. Bom finalizador, erige um vasto cartel de gols marcados de todas as formas. Não demora, Zezinho ganha a camisa 10 e vira uma das joias das divisões de base do alvinegro suburbano. Começa a disputar campeonatos. Seu nome transborda as fronteiras do escaldante subúrbio. Vira revelação.

É quando aparece o Botafogo.

E Zezinho desembarca seu talento, agora em uma equipe de expressão.

Mesmo com a concorrência (nem sempre leal), os holofotes mais acesos, a marcação mais cerrada, a pressão, Zezinho se sai bem no primeiro ano. Consegue se manter titular do time de sua categoria de base, mostra bom futebol, e seu desempenho já anima alguns olheiros que o veem, em alguns anos, vestindo a camisa dez botafoguense. A ajuda de custo que recebe também permite a Zezinho melhorar de vida, guardar alguns caraminguás. O horizonte parece amplamente promissor para o menino que sonhou jogar bola.

Mas vem a água gelada.

Ao subir de categoria, Zezinho se depara com um treinador que cisma com seu biotipo. De fato, Zezinho tem dificuldade de ganhar massa muscular, é baixinho, quase franzino. Com 1.53 m de altura não há como prosperar no futebol profissional. Não há lugar para um jogador com corpo de garoto no meio da cerrada selva do futebol adulto. Esse Zezinho até tem bom jogo, mas assim não serve. Está dispensado.

E, olhos entumescidos da raivosa lágrima de quem tem seus sonhos estilhaçados, Zezinho lentamente junta seus trapos e vai ganhar o amargo rumo do frustrado retorno dos que não vencem.

Não por muito tempo.

Alguém toma conhecimento da situação de Zezinho. Vai atrás do garoto. Você tem alguma coisa em mente? Não, talvez voltar pro Campusca, ou sair disso, sei lá. Olha, eu tenho uma proposta, tenho como lhe arranjar um teste no Flamengo, NO FLAMENGO? Sim, os olheiros de lá falaram bem de você, acho que você passa, o que acha? Claro que topo, só me dizer quando.

E é com o sangue fervendo, olhos em brasa, a pele febril de entusiasmo que Zezinho literalmente esmerilha a bola no seu teste na Gávea. Faz coisas celestiais, diabólicas, joga com uma fome de torcedor, a ânsia dos que sabem que ali, e somente ali, está a resposta para seu futuro. Sua vida. O paraíso ou o inferno dos relegados. Não há meio-termo.

Zezinho passa com louvor. Mas ainda há o problema do biotipo.

O Flamengo reconhece que Zezinho é muito mirrado e precisa se desenvolver, mas acena com uma solução. Um tratamento a base de um medicamento que promete acelerar o metabolismo corporal, intensificando a assimilação de nutrientes e o consequente desenvolvimento corporal e muscular. Preocupado e reticente (com medo de complicações colaterais futuras), Zezinho acaba aceitando se submeter ao tal tratamento.

No entanto, algo sai errado. Uma injeção, duas, dez. E nada, rigorosamente nada acontece.

Com o mesmo corpo de menino, Zezinho se assusta e interrompe o tratamento. Começa a perder espaço para garotos mais jovens e corpulentos, mas o Flamengo não pensa, ao menos ainda, em se desfazer dele, pois seu futebol impressiona, Zezinho evolui e se torna um meia completo. A ideia é tentar o recurso tradicional, usando e abusando das salas de musculação.

Súbito, dá-se o fenômeno.

Do nada, sem qualquer estímulo, qualquer remédio, qualquer regime alimentar diferente daquele que é ministrado para atletas de alto rendimento, o menino começa a crescer. Como em uma farsesca animação infantil, Zezinho literalmente espicha a cada dia, para assombro dos fisicultores que, estarrecidos, vão registrando a evolução diária das dimensões orgânicas do jovem. Em um lapso de poucos meses, Zezinho cresce cerca de TRINTA centímetros. É quando se lembra daquelas injeções lá de trás. Deve ter sido isso, concluem, e não mais se trata do assunto.

Quando enfim se estabiliza em seu novo corpo, Zezinho percebe radicais alterações em seu futebol. Está maior, mais forte, mais alto. E também mais lento. Não consegue mais escorrer-se em velocidade pelas entranhas da defesa adversária, as tabelinhas que lhe saíam fluidas agora são neutralizadas, os deslocamentos não são mais faiscantes. Perde intensidade, contundência. Torna-se facilmente marcável. Ainda estão intactas a habilidade e a visão de jogo, mas agora Zezinho é um meia comum, mediano.

“Você vai ser volante”, decreta o treinador. Mas as dificuldades permanecem. Zezinho não tem velocidade para ir e voltar, trabalhar a cobertura de laterais e zagueiros, ocupar com intensidade cada palmo da acirrada área central do campo. Mas ao menos percebe que agora sua visão de jogo o permite antever as jogadas, antecipar-se aos atacantes, deslocar-se com inteligência, praticar o desarme limpo e sem choques.
“Já entendi. Tenho a solução definitiva para você.”, enfim vaticina o técnico, que o coloca na defesa, posição de onde não mais sairá até irromper nos profissionais dali a poucos anos.

E em toda a sua carreira.

O Maracanã está lindo, em festa, apinhado. O acanhado Zezinho alinha-se com seus dez companheiros. Alguém o leva para a frente da torcida do Flamengo. O feérico espetáculo de rolos de papel e fumaça, as bandeiras que tremulam, as palmas, o seu nome gritado, tudo começa a girar em um caleidoscópio em negro e vermelho onde vão se amalgamando as lembranças de Bangu, Campo Grande, o dedo apontado do treinador-carrasco, a injeção, a fome, a terra batida, a bola de meia, os sonhos de criança, o Maraca... e tudo gira à alucinada velocidade de uma vida de extremos, berrando o sonho e o real em apenas um átimo. O chão foge dos pés. E Zezinho quase desmaia.

No primeiro lance, uma voadora, falta duríssima, cartão. Os mais rodados chegam junto, “calma garoto, não precisa disso, vai mais macio senão você é expulso”, e por sorte o time vai prendendo a bola na frente, Zezinho se recompõe, e mais calmo exibe seu luxuriante futebol até então desconhecido. “Surge um craque”, as letras garrafais darão nos jornais de segunda. Aplaudido e festejado, Zezinho agora se percebe parte integrante daquela vida. Será jogador profissional, será titular, ídolo. E vencerá na vida.


Como sempre sonhou o menino de Bangu.