Saudações flamengas a
todos,
Outro dia
comecei a assistir ao documentário “Fla-Flu, 40 Minutos Antes do
Nada”, muito bem produzido, por sinal. E o filme voltou a me
suscitar uma questão singela, “e se o Flamengo de Zico enfrentasse
o Fluminense de Assis?”, assunto potencial para intermináveis
rodas de bar.
No
entanto, esse jogo aconteceu. E valendo taça.
E é essa
história que deixo aqui, abrindo a temporada de 2014. Boa leitura.
* * *
1987. Um
dos mais confusos e esvaziados Estaduais dos últimos anos chega
enfim ao seu Terceiro Turno. Inchado com 14 equipes, a competição
sofre com uma tabela confusa, jogos de péssima qualidade técnica, o
início da escalada da violência das torcidas organizadas (com
vários jogos paralisados por conta disso) e com interrupções
frequentes, por conta de excursões e amistosos das equipes mais
fortes. Um campeonato cujo ápice de incompetência empresarial é
demonstrado por ocasião do Fla-Flu da Taça Rio, que assinala o
retorno de Zico aos gramados após quase um ano de ausência, partida
de enorme potencial de lucro que inexplicavelmente é disputada num
domingo de manhã no acanhado estádio de Caio Martins, em Niterói.
Mas a
confusão ainda está longe de terminar.
É que,
em um amistoso em Porto Velho-RO, o polêmico lateral Eduardo, do
Fluminense, agride um auxiliar e é suspenso por 60 dias pelo STJD.
No entanto, antes de julgado o recurso, o clube consegue uma liminar
na Justiça Comum e escala o jogador para enfrentar o Bangu. Assim,
perde cinco pontos. O tricolor recorre novamente à Justiça e obtém
outra liminar, cancelando a punição. Mas o STJD ratifica a
suspensão do jogador e a perda de pontos da equipe. Para piorar, a
Justiça julga o mérito da ação em poucos dias e se põe a favor
da punição às Laranjeiras. Inconformado, o Fluminense consegue,
num artifício de legalidade duvidosa, outra liminar com outro Juiz
antes que este seja informado da decisão judicial. Tudo isso na
véspera do Fla-Flu que decidirá o turno.
Enquanto
a confusão se desenrola nos tribunais, em campo o Terceiro Turno
(que é rápido, disputado apenas pelos quatro melhores do
campeonato) chega à última rodada liderado pelo próprio Fluminense
(sem contar os pontos que serão perdidos), que venceu o Vasco (2-0)
e empatou com o Bangu (1-1). O Flamengo também tem chances, vindo de
empate com o Vasco (0-0, quinto em seis clássicos, o que diz muito
sobre o futebol da época) e de uma sensacional reação contra o
Bangu (um 2-2 arrancado no final, após sofrer dois gols).
Assim, a
única forma de se salvar o campeonato é uma vitória do Flamengo,
que conquistará assim o turno (lembrando que a vitória aqui vale
dois pontos) no campo. Outro resultado fará com que a competição
fique a mercê dos tribunais,o que não seria um desfecho inesperado,
dado o nível do torneio.

A equipe
do Fluminense já vive nítida decadência. A vitoriosa base do
tricampeonato estadual já está envelhecida e a diretoria, sem
dinheiro, não consegue encontrar alternativas de mesmo nível. A
rigor, apenas Ricardo Gomes, Romerito e Washington seguem jogando em
alto nível, nomes importantes como Delei e Branco já saíram, o
ídolo Assis segue às voltas com intermináveis lesões e, das
peças de reposição, apenas o jovem zagueiro Torres demonstra algum
talento. A receita, baseada em forte marcação, contragolpes e bolas
aéreas segue seguida à risca, sem espaço para variações.
Nesse
contexto, é marcada a decisão, o Fla-Flu do ano, o clássico que
irá eliminar uma das equipes (Vasco e Bangu já estão nas finais)
para uma... segunda-feira à noite.
Mesmo
assim, seja pela presença de Zico, seja pelo Flamengo em jogo de
taça, seja pelo que for, a torcida do Flamengo surpreende e se
despeja em massa para o Maracanã. 96 mil pagantes proporcionam a
maior arrecadação do ano. O estádio está lindo. Canta, dança e
brilha. Tudo indica que, ao menos por um átimo, haverá uma bela
noite de futebol, plena de arte e emoção.
Emoção
haverá. Arte também, mas por uns poucos pés.
O
Fluminense está muito motivado com a presença de Assis, de volta
após mais uma lesão. Os tricolores cantam seu ídolo e, animado, o
time abandona suas características e tenta agredir o adversário.
Numa boa trama, Romerito aciona o lateral Aldo, que passa por
Marquinho e cruza. Washington e Guto dividem pelo alto, na sobra
Assis ajeita e emenda, mas a bola desvia em um zagueiro flamengo e
sai. Romerito cobra o escanteio rasteiro, ensaiado, Leomir manda a
bomba, Zé Carlos mergulha e espalma, difícil defesa. Palmas e
gritos.
Novamente
os tricolores. O atacante Zé Maria (que substitui Tato) recebe e
arranca, serve Assis, que bate forte e rasteiro, mas Zé Carlos
defende com segurança. O
Fluminense começa bem.
A partir
daí, o Flamengo intensifica seu sistema defensivo e a partida se
torna truncada e faltosa. O Fluminense, de forma surpreendente, tenta
o ataque, com o Flamengo buscando sair em velocidade, aproveitando
Renato e Bebeto. Mas o domínio territorial tricolor vai ameaçando
se acentuar.
Até que
o Fluminense cai na armadilha.
Ataque
tricolor, Jorginho faz o desarme e põe a bola entre as pernas de
Romerito, acendendo a torcida. Daí a Zico, depois Andrade, então
Marquinho, que estica a Adalberto. O lateral cisca e vai entrar na
área, mas antes é derrubado por Aldo. “Minicórner.”
Chega a
hora de Zico.
O Galinho
ajeita com carinho e levanta aveludado no primeiro pau. Marquinho
fecha e, lembrando jogada não agradável aos flamengos, a repete com
primorosa exatidão. Mas, ao contrário de 1982, dessa vez a cabeçada
de raspão que vai às redes faz a Nação Flamenga berrar de
felicidade e alegria. É gol, gol do Flamengo, gol de Marquinho.
Flamengo 1, Fluminense 0.
O
Maracanã enlouquece e explode. A porca rubro-negra da geral dança e
salta de mão em mão, e no embalo o Flamengo solta a cavalaria.
Renato e Bebeto trocam passes, a bola vai a Adalberto, que aciona
Zico na área. O Galinho dá belo giro, mas antes do chute é
travado. Seria o segundo gol. A festa vai ao clímax.
“Flu,
Flu, Flu, vai tomar...”
Mas o
tricolor tem Romerito, o único lúcido. O paraguaio zanza pela quina
da área e é derrubado por Júlio César. Na cobrança da falta,
Jandir alça no bolo. Assis puxa a camisa de Jorginho, também é
puxado, mas consegue cabecear para o gol. No entanto, o empate é
corretamente impugnado por Aloísio Felisberto, que marca a falta de
Assis. Indignados, os onze laranjeiras caem pra dentro do árbitro,
cheios de verdades e razão. Renato aproveita a ocasião e troca
sopapos com um adversário, mas o entrevero é ignorado por
Felisberto.
E pouco
mais acontece, salvo uma voadora de Vica em Marquinho, ignorada pela
arbitragem. Intervalo.
O
Fluminense volta disposto a arriscar tudo. Logo a 2', Washington
cobra falta com perfeição, na gaveta, mas no último momento Zé
Carlos voa e espalma a escanteio. Uma defesa sensacional, que arranca
aplausos e cumprimentos de vários jogadores. A seguir, Torres lança,
Washington apara de calcanhar e a sobra vai a Romerito, que dá um
belo toque por cobertura. Mas a bola beija a quina da trave e sai.
O
Flamengo se apruma e compacta suas linhas. O cinturão formado por
Andrade, Júlio César e Marquinho começa a ganhar todas as bolas no
meio. Sem opção, o Fluminense recorre de forma sistemática às
bolas levantadas, mas os zagueiros Guto e Aldair estão seguros,
ganham todas. Assis, nitidamente apagado, sente o ritmo de jogo,
pouco produz e é alvo fácil dos marcadores.

O segundo
gol flamengo parece questão de tempo. O rubro-negro, sempre
comandado por Zico, começa a empilhar oportunidades perdidas, uma
após a outra. Paulo Victor por duas vezes consegue impedir o gol
certo aos pés de Bebeto. O Fluminense, refém de suas bolas altas e
com Romerito bem marcado, parece entregue.
E mais um
golpe na confiança tricolor é dado pelo seu próprio treinador que,
em busca de mobilidade, saca o apagadíssimo Assis, colocando o jovem
João Santos. Assis deixa o campo caminhando, cabisbaixo. Súbito, o
Maracanã novamente ouve o coro. Vítima um ano antes, agora a Nação
Rubro-Negra entoa a plenos pulmões sua cruel ironia, vingança
servida em prato gelado:
“Bichado,
bichado, bichado...”

Mas nada
vem sem luta, não no Flamengo. Em um lance completamente isolado,
Marquinho acerta um pontapé sem bola em Jandir e é expulso. Sai
ovacionado, mas o rubro-negro agora está com dez e precisa segurar o
abafa.
E, nesse
momento de forte pressão, Zico cresce ainda mais na partida. É o
senhor absoluto das ações no meio, grita, incentiva, canta o jogo,
vai pra intermediária dar carrinho, arrepia torcedores e
companheiros com sua dedicação extrema.
E
continua judiando do Fluminense. Agora o Galo recebe um lateral na
ponta-direita e, com um giro de calcanhar, deita ao chão seu
marcador. Cruza. Torres corta, volta a Zico que, de primeira e de
chaleira, acha Renato solto na área. Vica mergulha e salva o chute.
O
estádio vai abaixo, canta seu amor. “Zico, Zico, Zico...”
A partida
vai chegando ao seu final, o Fluminense abandona de vez qualquer
cuidado defensivo, mas não consegue sequer se aproximar da área
flamenga. Com a determinação dos vencedores, o rubro-negro enxota
qualquer vestígio de risco ao gol de Zé Carlos. E dispõe de um
largo latifúndio para seus contragolpes, sistematicamente
desperdiçados por Bebeto e agora Alcindo (que entrou no lugar do
cansado Renato).

Há
jogadores de futebol. Há craques. Há gênios. E há Zico.
Após o
último sussurro divinal de Zico, não resta mais nada. Apito
redentor, urro de campeão. O Flamengo vence por 1-0, conquista o
Terceiro Turno e está nas finais. Antes, amistosos em Angola.

Sim, porque Zico jamais perdeu um Fla-Flu com Assis em campo. Aliás, a última derrota para o rival aconteceu em 1981, em um jogo meio periférico.
Depois, nunca mais.