domingo, 12 de janeiro de 2014

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos,

Outro dia comecei a assistir ao documentário “Fla-Flu, 40 Minutos Antes do Nada”, muito bem produzido, por sinal. E o filme voltou a me suscitar uma questão singela, “e se o Flamengo de Zico enfrentasse o Fluminense de Assis?”, assunto potencial para intermináveis rodas de bar.

No entanto, esse jogo aconteceu. E valendo taça.

E é essa história que deixo aqui, abrindo a temporada de 2014. Boa leitura.

* * *

1987. Um dos mais confusos e esvaziados Estaduais dos últimos anos chega enfim ao seu Terceiro Turno. Inchado com 14 equipes, a competição sofre com uma tabela confusa, jogos de péssima qualidade técnica, o início da escalada da violência das torcidas organizadas (com vários jogos paralisados por conta disso) e com interrupções frequentes, por conta de excursões e amistosos das equipes mais fortes. Um campeonato cujo ápice de incompetência empresarial é demonstrado por ocasião do Fla-Flu da Taça Rio, que assinala o retorno de Zico aos gramados após quase um ano de ausência, partida de enorme potencial de lucro que inexplicavelmente é disputada num domingo de manhã no acanhado estádio de Caio Martins, em Niterói.

Mas a confusão ainda está longe de terminar.

É que, em um amistoso em Porto Velho-RO, o polêmico lateral Eduardo, do Fluminense, agride um auxiliar e é suspenso por 60 dias pelo STJD. No entanto, antes de julgado o recurso, o clube consegue uma liminar na Justiça Comum e escala o jogador para enfrentar o Bangu. Assim, perde cinco pontos. O tricolor recorre novamente à Justiça e obtém outra liminar, cancelando a punição. Mas o STJD ratifica a suspensão do jogador e a perda de pontos da equipe. Para piorar, a Justiça julga o mérito da ação em poucos dias e se põe a favor da punição às Laranjeiras. Inconformado, o Fluminense consegue, num artifício de legalidade duvidosa, outra liminar com outro Juiz antes que este seja informado da decisão judicial. Tudo isso na véspera do Fla-Flu que decidirá o turno.

Enquanto a confusão se desenrola nos tribunais, em campo o Terceiro Turno (que é rápido, disputado apenas pelos quatro melhores do campeonato) chega à última rodada liderado pelo próprio Fluminense (sem contar os pontos que serão perdidos), que venceu o Vasco (2-0) e empatou com o Bangu (1-1). O Flamengo também tem chances, vindo de empate com o Vasco (0-0, quinto em seis clássicos, o que diz muito sobre o futebol da época) e de uma sensacional reação contra o Bangu (um 2-2 arrancado no final, após sofrer dois gols).

Assim, a única forma de se salvar o campeonato é uma vitória do Flamengo, que conquistará assim o turno (lembrando que a vitória aqui vale dois pontos) no campo. Outro resultado fará com que a competição fique a mercê dos tribunais,o que não seria um desfecho inesperado, dado o nível do torneio.

O Flamengo vive um momento de transição. Os grandes nomes da Era Zico aos poucos vão deixando de luzir, substituídos por uma vasta legião de jovens de boa qualidade, reforçados por outros jogadores já plenamente ambientados ao clube, como Bebeto, Marquinho e Jorginho. É a época da consolidação de jogadores como Zé Carlos, Aldair, Ailton, Zinho, Zé Carlos II. As perdas são Mozer (negociado com o Benfica-POR) e Adílio (lesionado e fora dos planos), mas na reta final da competição a volta de Adalberto (que parece enfim recuperado de sua séria fratura), Renato Gaúcho (contratado com status de estrela) e principalmente Zico são um alento para o treinador Antonio Lopes que, mesmo às voltas com problemas de relacionamento consegue transformar o Flamengo em uma equipe solidária e competitiva.

A equipe do Fluminense já vive nítida decadência. A vitoriosa base do tricampeonato estadual já está envelhecida e a diretoria, sem dinheiro, não consegue encontrar alternativas de mesmo nível. A rigor, apenas Ricardo Gomes, Romerito e Washington seguem jogando em alto nível, nomes importantes como Delei e Branco já saíram, o ídolo Assis segue às voltas com intermináveis lesões e, das peças de reposição, apenas o jovem zagueiro Torres demonstra algum talento. A receita, baseada em forte marcação, contragolpes e bolas aéreas segue seguida à risca, sem espaço para variações.

Nesse contexto, é marcada a decisão, o Fla-Flu do ano, o clássico que irá eliminar uma das equipes (Vasco e Bangu já estão nas finais) para uma... segunda-feira à noite.

Mesmo assim, seja pela presença de Zico, seja pelo Flamengo em jogo de taça, seja pelo que for, a torcida do Flamengo surpreende e se despeja em massa para o Maracanã. 96 mil pagantes proporcionam a maior arrecadação do ano. O estádio está lindo. Canta, dança e brilha. Tudo indica que, ao menos por um átimo, haverá uma bela noite de futebol, plena de arte e emoção.

Emoção haverá. Arte também, mas por uns poucos pés.

O Fluminense está muito motivado com a presença de Assis, de volta após mais uma lesão. Os tricolores cantam seu ídolo e, animado, o time abandona suas características e tenta agredir o adversário. Numa boa trama, Romerito aciona o lateral Aldo, que passa por Marquinho e cruza. Washington e Guto dividem pelo alto, na sobra Assis ajeita e emenda, mas a bola desvia em um zagueiro flamengo e sai. Romerito cobra o escanteio rasteiro, ensaiado, Leomir manda a bomba, Zé Carlos mergulha e espalma, difícil defesa. Palmas e gritos.

Novamente os tricolores. O atacante Zé Maria (que substitui Tato) recebe e arranca, serve Assis, que bate forte e rasteiro, mas Zé Carlos defende com segurança. O Fluminense começa bem.

A partir daí, o Flamengo intensifica seu sistema defensivo e a partida se torna truncada e faltosa. O Fluminense, de forma surpreendente, tenta o ataque, com o Flamengo buscando sair em velocidade, aproveitando Renato e Bebeto. Mas o domínio territorial tricolor vai ameaçando se acentuar.

Até que o Fluminense cai na armadilha.

Ataque tricolor, Jorginho faz o desarme e põe a bola entre as pernas de Romerito, acendendo a torcida. Daí a Zico, depois Andrade, então Marquinho, que estica a Adalberto. O lateral cisca e vai entrar na área, mas antes é derrubado por Aldo. “Minicórner.”

Chega a hora de Zico.

O Galinho ajeita com carinho e levanta aveludado no primeiro pau. Marquinho fecha e, lembrando jogada não agradável aos flamengos, a repete com primorosa exatidão. Mas, ao contrário de 1982, dessa vez a cabeçada de raspão que vai às redes faz a Nação Flamenga berrar de felicidade e alegria. É gol, gol do Flamengo, gol de Marquinho. Flamengo 1, Fluminense 0.

O Maracanã enlouquece e explode. A porca rubro-negra da geral dança e salta de mão em mão, e no embalo o Flamengo solta a cavalaria. Renato e Bebeto trocam passes, a bola vai a Adalberto, que aciona Zico na área. O Galinho dá belo giro, mas antes do chute é travado. Seria o segundo gol. A festa vai ao clímax.

“Flu, Flu, Flu, vai tomar...”

Mas o tricolor tem Romerito, o único lúcido. O paraguaio zanza pela quina da área e é derrubado por Júlio César. Na cobrança da falta, Jandir alça no bolo. Assis puxa a camisa de Jorginho, também é puxado, mas consegue cabecear para o gol. No entanto, o empate é corretamente impugnado por Aloísio Felisberto, que marca a falta de Assis. Indignados, os onze laranjeiras caem pra dentro do árbitro, cheios de verdades e razão. Renato aproveita a ocasião e troca sopapos com um adversário, mas o entrevero é ignorado por Felisberto.

E pouco mais acontece, salvo uma voadora de Vica em Marquinho, ignorada pela arbitragem. Intervalo.

O Fluminense volta disposto a arriscar tudo. Logo a 2', Washington cobra falta com perfeição, na gaveta, mas no último momento Zé Carlos voa e espalma a escanteio. Uma defesa sensacional, que arranca aplausos e cumprimentos de vários jogadores. A seguir, Torres lança, Washington apara de calcanhar e a sobra vai a Romerito, que dá um belo toque por cobertura. Mas a bola beija a quina da trave e sai.

O Flamengo se apruma e compacta suas linhas. O cinturão formado por Andrade, Júlio César e Marquinho começa a ganhar todas as bolas no meio. Sem opção, o Fluminense recorre de forma sistemática às bolas levantadas, mas os zagueiros Guto e Aldair estão seguros, ganham todas. Assis, nitidamente apagado, sente o ritmo de jogo, pouco produz e é alvo fácil dos marcadores.

O Fluminense, desesperado, começa a dar espaços, e com isso enfim Zico e Renato começam a aparecer e a desfilar um vasto repertório de lances geniais. No mais belo, Renato faz um carnaval pela direita, deixa com o Galinho, que devolve de primeira a Renato, que se livra de dois e devolve a Zico, que limpa mas não consegue o chute, ainda sem explosão. O estádio aplaude de pé.

O segundo gol flamengo parece questão de tempo. O rubro-negro, sempre comandado por Zico, começa a empilhar oportunidades perdidas, uma após a outra. Paulo Victor por duas vezes consegue impedir o gol certo aos pés de Bebeto. O Fluminense, refém de suas bolas altas e com Romerito bem marcado, parece entregue.

E mais um golpe na confiança tricolor é dado pelo seu próprio treinador que, em busca de mobilidade, saca o apagadíssimo Assis, colocando o jovem João Santos. Assis deixa o campo caminhando, cabisbaixo. Súbito, o Maracanã novamente ouve o coro. Vítima um ano antes, agora a Nação Rubro-Negra entoa a plenos pulmões sua cruel ironia, vingança servida em prato gelado:

“Bichado, bichado, bichado...”

Enquanto isso, o “bichado” de 86 segue seu recital. Cada vez mais à vontade, Zico recebe de Andrade, dá um come desmoralizante em Jandir, passa por Leomir, dribla Torres e lança Marquinho livre, mas na corrida o atacante é desarmado.

Mas nada vem sem luta, não no Flamengo. Em um lance completamente isolado, Marquinho acerta um pontapé sem bola em Jandir e é expulso. Sai ovacionado, mas o rubro-negro agora está com dez e precisa segurar o abafa.

E, nesse momento de forte pressão, Zico cresce ainda mais na partida. É o senhor absoluto das ações no meio, grita, incentiva, canta o jogo, vai pra intermediária dar carrinho, arrepia torcedores e companheiros com sua dedicação extrema.

E continua judiando do Fluminense. Agora o Galo recebe um lateral na ponta-direita e, com um giro de calcanhar, deita ao chão seu marcador. Cruza. Torres corta, volta a Zico que, de primeira e de chaleira, acha Renato solto na área. Vica mergulha e salva o chute.

O estádio vai abaixo, canta seu amor. “Zico, Zico, Zico...”

A partida vai chegando ao seu final, o Fluminense abandona de vez qualquer cuidado defensivo, mas não consegue sequer se aproximar da área flamenga. Com a determinação dos vencedores, o rubro-negro enxota qualquer vestígio de risco ao gol de Zé Carlos. E dispõe de um largo latifúndio para seus contragolpes, sistematicamente desperdiçados por Bebeto e agora Alcindo (que entrou no lugar do cansado Renato).

Último minuto, Ailton (que substituiu Júlio César) puxa outro contragolpe, é derrubado na linha central do meio-campo. Os garotos flamengos se animam e avançam, mas Zico, aos berros e no esporro, manda todos voltarem. Aponta posicionamento, vai cozinhando o tempo. Mas do nada, num lance de incrível rapidez, enquanto discute, descobre Bebeto completamente livre dentro da área e, qual um réptil, lança açucarado, preciso, no pé. Bebeto avança e rola pra trás, Alcindo vem na corrida e emenda, mas Paulo Victor espalma de forma espetacular.

Há jogadores de futebol. Há craques. Há gênios. E há Zico.

Após o último sussurro divinal de Zico, não resta mais nada. Apito redentor, urro de campeão. O Flamengo vence por 1-0, conquista o Terceiro Turno e está nas finais. Antes, amistosos em Angola.

E assim se encerra a história do jogo em que Zico calou os tribunais, enxotou a pretensa mística do carrasco, pisoteou a lenda de que o rival é sempre superior em finais e ratificou outra escrita, essa sim inapelável, incontestável, indiscutível, porque amparada pela gélida lógica dos números.

Sim, porque Zico jamais perdeu um Fla-Flu com Assis em campo. Aliás, a última derrota para o rival aconteceu em 1981, em um jogo meio periférico.

Depois, nunca mais.