domingo, 3 de novembro de 2013

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos. Quem acompanhou o recente berreiro dos goianos indignados e buscando subterfúgios para mascarar o simples fato de terem sido brutalizados em casa novamente se deparou com a já conhecida incapacidade dos adversários flamengos desenvolverem luz própria. Isso me faz trazer uma história absolutamente deliciosa, ocorrida na esteira da conquista do Mundial, em 1981. Uma passada de recibo colossal, monumental. Bem, ao texto. Boa leitura.

* * *

O Rio de Janeiro nunca esteve tão lindo.

A cidade sorri, brinca, festeja, celebra os seus heróis que retornam altivos, impávidos, vencedores, campeões.

O Flamengo é o campeão do mundo. O Flamengo é o melhor time do mundo.

Não há uma esquina, uma viela, um beco, uma tasca, que não traje negro e vermelho, que não comente os feitos dos mitológicos gigantes flamengos, que não vista ares de divindade em um Lico, um Tita, um Andrade. O Rio, o Brasil, porejam a delícia estampada na cara de quem sabe a alegria de viver e ser rubro-negro.

Equipes do mundo todo enviam telegramas ansiosos à Gávea buscando a marcação de amistosos. O Barcelona propõe duas partidas, no Rio e na Espanha, mas o Flamengo rejeita, por falta de datas. África, Ásia, Europa, todo o planeta quer ver os Globetrotters da bola de perto. E o Flamengo, num malabarismo de datas, vai agendando o que consegue, na Itália, nos Estados Unidos, na América Latina.

Só se fala Flamengo, só se vive Flamengo, só se festeja Flamengo, uma ilha de prosperidade, eficiência e competência em um país cujo contexto é a eternamente fracassada busca por um futuro que jamais sorri.
Mas há quem se incomode.

Alguns dirigentes esbaforidos, talvez esmagados pela massacrante, verborrágica e despudorada demonstração da grandeza flamenga, começam a trocar telefonemas frenéticos entre si, buscando uma saída, um antídoto, um fiapo tremeluzente de luz que possa lhes acalentar a mais tépida esperança de reação.

Após alguns contatos apressados, enfim conseguem se agarrar a uma ideia. E, por telefone mesmo, chegam à decisão final.

Está criada a FAF (Ops, FAF não pode, a sigla já existe).

(Vamos recomeçar, então. Vai sem sigla mesmo). Está criada a FRENTE ANTI-FLAMENGO.

Todo o arranjo é coordenado pela diretoria do Fluminense, que idealiza a iniciativa. Botafogo, Vasco e depois o América aderem, a princípio com entusiasmo. O mote do movimento é criar um bloco de clubes que atue em conjunto, no sentido de frear a esmagadora hegemonia do Flamengo “dentro e fora de campo”. 

Para isso, irão votar sempre alinhados em qualquer questão relevante em Tribunais e Conselhos Arbitrais, e preferencialmente adotando posição contrária ao que o Flamengo defender (aqui o que importa é desafiar o interesse do Flamengo). Também negociarão somente jogadores entre si, vedando terminantemente qualquer venda de atleta ao Flamengo. Vetarão árbitros, jornalistas e outras personalidades que manifestem, abertamente ou não, qualquer forma de simpatia ao rubro-negro. Enfim, a ideia é tentar alguma forma de, unidos e parelhos, exorcizar a já constrangedora supremacia flamenga que se espraia desde 1978.

Com efeito, o Flamengo, desde então, terá conquistado 18 troféus oficiais em 24 disputados, em âmbito regional, nacional e internacional. Não é fácil, definitivamente, não ser Flamengo.

E os quatro rivais vivem mesmo tempos difíceis. O Fluminense atravessa grave crise por conta do estouro da bolha da administração Horta. O Botafogo está entrando no auge de um profundo processo de caos financeiro e administrativo decorrente da incapacidade de lidar com o fim dos áureos anos 60. O América começa a sentir na carne o apequenamento de sua outrora expressiva torcida. E apenas o Vasco parece ainda dispor de algum fôlego para conseguir amealhar não mais do que um punhado de vicecampeonatos, como o Brasileiro de 1979 e o pentavice estadual.

O momento é agora, não dá mais para esperar.

A primeira reunião é marcada, a ideia é divulgar e definir os ideais do grupo. O Flamengo é expressamente citado no ato da convocação, é a razão plena de ser da criação da Frente.

Mas algo dá errado.

Os dirigentes, perto do horário marcado para a reunião, batem cabeça e simplesmente não conseguem confirmar suas presenças. Um deles alega “cansaço de viagem”, outro se demora demais em uma reunião com jogadores, outro “se lembra” que justo no horário da reunião tinha que participar de um comício. E a reunião, sem ser sequer desmarcada, simplesmente não acontece.

Mesmo assim, não desistem.

Resolve-se esquecer isso de reunião. Preferem agora tratar das trocas de jogadores entre si, para “reforçar mutuamente as equipes, eliminando-lhes os pontos fracos e assim criando condições de se montar esquadras mais fortes e capazes de fazer frente ao Flamengo.”

E começam as tratativas. O Fluminense topa negociar qualquer um, menos a estrela da companhia, Edinho, que já tem amarrada sua venda para a Itália depois da Copa. O Vasco possui alguns nomes incompatibilizados com o treinador Antonio Lopes (como Silvinho, João Luís e Renato Sá), mas só quer trazer jogador que tenha condição de ser titular (de preferência, ex-Flamengo). O América tem no seu goleiro Ernani e no zagueiro Heraldo suas principais moedas de troca. E o Botafogo, bem, o Botafogo aceita comprar e vender quem aparecer pela frente, desde que não tenha que pagar nada.

E nem isso prospera.

Ao se iniciarem as tratativas, logo os dirigentes descobrem que não será possível realizar as trocas. Descobrem, consternados, que o Fluminense, apesar de cinco anos absolutamente pífios (salvo o hiato de 1980), ainda paga os maiores salários do Rio de Janeiro aos seus jogadores (quando paga). Que um titular do Botafogo recebe menos do que um tricolor recém-promovido da base. Evidentemente, os jogadores tricolores consultados para uma eventual troca mostram-se frontalmente contrários à ideia, bem como os clubes não aceitam nivelar salários tão artificialmente inflados. Além disso, Botafogo e América já vinham com negociações adiantadas com clubes de fora do Rio, e não querem perder o fechamento dessas transações. E o Vasco parece mais preocupado em conseguir a contratação do ex-Flamengo Rondinelli, que vem de passagem apagada pelo Corinthians.

Assim, de forma quase tão anônima como surgiu, a Frente Anti-Flamengo é extinta, tendo durado pouco mais de três dias, tempo de vida que talvez ilustre a sagacidade, a firmeza de propósitos e a efetividade dos seus membros, provavelmente sendo refletido, portanto, no desempenho de suas equipes nos últimos anos.
Enquanto isso, na Gávea, o alto comando Flamengo, ao ter conhecimento da ideia, explode em gargalhadas, e também resolve dar sua contribuição.

“Acho que eles deveriam se fundir. Todos eles, os quatro. Talvez assim o Flamengo tenha um adversário com condições de exercer uma resistência mínima. Se bem que não creio nisso. Estivemos, estamos e sempre estaremos na frente deles, juntos ou separados.”

O único resultado prático da fracassada Frente é a transferência do atacante Cláudio Adão para o Vasco. Ironicamente, no segundo semestre, o clube, com problemas de caixa, venderá o arisco ponta-direita Wilsinho, um de seus principais jogadores, para o... Flamengo, que também tirará do Fluminense o ponta-esquerda Zezé e, pouco mais tarde, o seu craque restante, o ponta-direita Robertinho.

Sim, a esmagadora, sufocante e quase inverossímil ciranda de títulos flamengos será levada a termo em alguns anos, voltando a um ritmo mais, digamos, normal. No entanto, os efeitos já estarão indelevelmente marcados, cravados e estampados no âmago da existência de todos os clubes não-flamengos, suprimindo-lhes de forma definitiva e irreversível todo e qualquer resquício de altivez, orgulho e expressão própria.


Terão se tornado, de forma ou outra, meros satélites.