domingo, 27 de outubro de 2013

Alfarrábios do Melo

O alarido é infernal.

O Maracanã canta, dança e pula seus heróis, inebriado e encantado com o espetáculo de futebol e gols que vai explodindo aos seus olhos. A verdadeira expressão de um massacre técnico, físico, tático e mental, a perfeita subjugação de um rival cuja expressividade somente se traduz em suas esfiapadas camisas, mera caricatura de um passado cada vez mais desbotado.

Cantarele vai dar a saída, aciona um zagueiro. Zico vem buscar jogo, recebe e liga rápido o meio. Gira o corpo e segue. Súbito, a pancada.

Sem bola, fora do lance, o medíocre Perivaldo expõe a frustração de ser um dos protagonistas de um grupo perdedor e decadente e resolve, ares de jagunço, “acabar com a palhaçada”. Com surpreendente precisão e uma competência que jamais demonstrou no trato com a bola, acerta em cheio um bico no tornozelo de Zico. Pelas costas.

Zico cai, desaba. Urra a dor do gigante abatido. Maca. Está fora. O estádio, apreensivo, silencia.

* * *

Flamengo e Botafogo demonstram grande confiança para o clássico que valerá pela Taça Guanabara de 1982. Ambos, além de dividirem o otimismo por um bom resultado, andam se queixando da Federação, que marca o clássico para uma noite de sábado, priorizando o opaco Vasco e Bangu por conta de uma burocrática soma de pontos. E um jogo que poderia ultrapassar facilmente 100 mil pagantes irá se esconder em um horário ingrato.

É a primeira partida após os históricos 6-0 de novembro.

O Flamengo derrama otimismo, confiança e um excesso de autoestima que resvala para a empáfia. O atual campeão da Guanabara, Estadual, Brasileiro, Sul-Americano e Mundial, reunindo, portanto, a posse de TODOS os troféus oficiais nacionais e internacionais em disputa, um feito sem precedentes e jamais igualado no Brasil, divulga com estardalhaço que abriu convênio com uma escola de idiomas, com o objetivo de habilitar seus jogadores a falarem um inglês básico, por conta dos inúmeros compromissos do Flamengo no exterior. E justo na semana do clássico começam as primeiras aulas.

O time inicia a Taça de forma arrasadora, goleando Campo Grande (5-2) e Portuguesa (4-0). No entanto, um tropeço em Campos (0-1 Americano) provoca muxoxos, logo calados com uma exibição raivosa contra o Madureira (sonoros 8-0). Nunes, recuperando-se de uma cirurgia no joelho, está fora. Como Carpegiani ainda não confia no recém-contratado Jasson e as tentativas com o jovem Ronaldo e o improvisado Peu não funcionaram, a opção é deslocar Tita para o comando de ataque, trazendo o ponteiro Wilsinho (ex-Vasco, principal reforço para a temporada) ao time. Tita, apesar das ressalvas de sempre, aceita o arranjo sem criar maior caso.

O Botafogo, ao contrário, vive sua eterna luta contra as dificuldades financeiras e a desorganização administrativa que remonta a décadas passadas. Inicia a competição perdendo vários pontos para os pequenos, mas todos sabem que, diante do Flamengo, a motivação é outra. O principal atrativo é a estreia do zagueiro Abel (o Abelão, futuro treinador), contratado ao Cruzeiro. Seu time ainda possui vários remanescentes da temporada anterior, como Paulo Sérgio, Perivaldo, Mendonça, Mirandinha, mas, sem dinheiro, resolve recorrer a suas divisões de base, lançando novatos como Josimar (que, antes de se destacar como lateral atua como meia) e Alemão, e trazendo reforços baratos, como Té, Geraldo e Heraldo. Realista, o treinador Zé Mário (ex-jogador Flamengo, campeão em 74) prevê muita luta contra um adversário “muito superior”, mas mesmo assim acredita em uma vitória na base da empolgação.

Noite de sábado, 70 mil deixam nas bilheterias uma arrecadação sensacional, indicando que, se fosse no domingo, recordes poderiam ter sido quebrados. Inflamadas, as torcidas cantam e invocam suas cores, em um espetáculo sempre emocionante que arrepia os desavisados. Os times entram em campo, sob fumaça, fogos e cânticos.

A disputa irá durar apenas um minuto.

Começa a partida. O Flamengo assume a posse e inicia seu toque de bola traiçoeiro e mortífero. Roda, roda, seus jogadores vão dançando seu revezamento de posições, enquanto parecem trocar passes de forma indolente. Leandro recebe. Vê um espaço e corta em diagonal. Zico entende a ideia do companheiro e se projeta. Cabeça erguida de forma aristocrática, superior, quase sem olhar, Leandro se despede da bola com um leve tapa que descobre o Galinho inteiramente livre, solto, leve e pleno dentro da grande área. Impotente, Paulo Sérgio, em seu resignado movimento de presa, sai do gol para o protocolo. O tiro seco. Rasteiro, no canto. Flamengo 1, Botafogo 0. No primeiro minuto de jogo.

O Maracanã explode em êxtase e já começa a perceber que hoje vai ter surra. De novo.

O gol não altera o plano de jogo do Botafogo, que segue encolhido em seu campo, à espera de contragolpes. Mas o Flamengo está animado, motivado, correndo, girando a bola, abrindo espaços, criando chances, perdendo gols. O segundo parece iminente, várias bolas zunem diante de Paulo Sérgio. Mas, aos vinte minutos, Marinho, que vinha sendo o melhor jogador da defesa, sente uma lesão e sai de campo. Carpegiani ousa e coloca o lateral Antunes, trazendo Leandro para a zaga. O time estranha a alteração, diminui o ritmo e dá campo ao Botafogo, que começa a se soltar e a criar algumas oportunidades com Mirandinha, todas religiosamente desperdiçadas.

Aos poucos, o Flamengo vai retomando o controle, até porque o espevitado Antunes entra bem na partida. Leandro acerta o posicionamento com Mozer e ambos passam a enxotar as investidas botafoguenses com extrema categoria e competência. Andrade, um dos grandes nomes do jogo, vai anulando sem dificuldades os meias Josimar e Mendonça. Na frente, Zico e Adílio vão implodindo o sistema defensivo do adversário. O Flamengo volta a pressionar, perder gols, o primeiro tempo vai chegando ao final. O irrequieto Wilsinho recebe, começa a driblar quem aparece pela frente e, quando percebe, está sozinho, diante de Paulo Sérgio. Em vez de finalizar, tenta mais um drible, mas o goleiro se antecipa e mete-lhe o rapa. Pênalti. Adivinha quem vai bater. O camisa dez da Gávea, tal como nos seis a zero, bate no mesmo canto. Tal como nos seis a zero, o goleiro vai na bola. E tal como nos seis a zero, é gol. 44 minutos, primeiro tempo, Flamengo 2, Botafogo 0.

Intervalo.

O Botafogo retorna com o garoto Osvaldo no lugar do inoperante Josimar. Não adianta. Empurrado pelos gritos da torcida, o Flamengo assume uma posição agressiva, adianta suas linhas e entra pressionando. Quer logo matar o jogo, quebrar a espinha do adversário, não dar chances a qualquer possibilidade de reação. Cria uma, duas, três oportunidades. A massa flamenga sente o gol próximo e engrossa a voz. Andrade cisca pelo meio, encontra Zico e se projeta. O Galinho lança por elevação, a bola parece mais para o zagueiro, mas o botafoguense falha e, na respingada, Adílio entra como uma flecha, fuzilando para marcar mais um gol. Flamengo 3, Botafogo 0.

“Seis, queremos seis”, começa a berrar a enlouquecida torcida do Flamengo.

Os botafogos começam a deixar o estádio, parecem pressentir, atemorizados, que o pesadelo de novembro pode se repetir como em um filme de horror. Mas, ao contrário daquele dia mágico, os jogadores flamengos não parecem obcecados em marcar mais gols. Mantêm o ritmo. Mas a partida está tão fácil que a perspectiva de uma goleada mais robusta é real. A nova zaga do Botafogo não se entende, Abel perde todos os lances e parece nitidamente sem ritmo. A trinca formada por Zico, Adílio e Tita desconcerta e destroi o meio-campo botafoguense. Alguém mais distraído pensaria se tratar, pela cor das camisas, de um jogo contra o Americano ou o Campo Grande, tal a superioridade flamenga. A torcida empurra, pede seis e canta despedidas para os fugitivos botafoguenses.

É quando acontece a pancada.

* * *

A figura de Zico contorcendo-se em dores revolta torcedores, jogadores e comissão técnica do Flamengo, até porque o árbitro José Roberto Wright, talvez preocupado com as irracionais acusações de favorecimento ao Flamengo em jogos recentes, aplica ao agressor um inaceitável cartão amarelo. Os jogadores botafogos veem nisso um incentivo e, assim que o jogo reinicia, o zagueiro Heraldo atinge criminosamente um flamengo, que quase sai do jogo. Wright mal dá a falta.

Inconformados, os jogadores flamengos começam a gritar entre si, “acabou o respeito. Vamos botar na roda.”

E partem para a maior humilhação que uma equipe pode sofrer em um jogo de futebol. Desistem de atacar e começam a girar a bola lentamente, num jogo circense de gato e rato. Trivelas, chilenas, toques de calcanhar, balãozinho, salãozinho e outros folguedos juvenis são aplicados na meia hora final da partida. Para cada botinada, um chapéu, para cada sarrafo, uma caneta. E o olé. Sim, o olé. Porque a massa flamenga entende que o momento não é de gol, é de desmoralizar. E soterra o Botafogo com olés antológicos, que duram inacabáveis minutos. Meia hora na roda, impotente, como um animal mal adestrado que corre a esmo em busca de um inalcançável naco de comida negado pelo seu doutrinador.

A partida, para alívio de um Botafogo cuja dignidade é reduzida aos fragmentos do papel picado e queimado deixado nas arquibancadas por sua torcida em fuga, termina mesmo em 3-0. Ainda irritados, os herois flamengos recebem com satisfação a notícia de que a pancada em Zico não redundou em maiores efeitos, apenas um inchaço, e provavelmente o Galinho estará em campo na quarta, contra o Volta Redonda (como realmente esteve). Júnior, o mais eloquente, enche os microfones, “o Zé (Mário) tem que se mandar daquilo lá, o Botafogo não tem jeito. Foi um dos jogos mais fáceis da temporada, o time deles é muito ruim. Pior que os pequenos.”

As cortinas vão se fechando e, já no silêncio de um vestiário em ocaso, um manquitolante Zico vai ganhando o caminho de casa, expressão ainda crispada de dor. Um garoto encosta, meio sem jeito. Traja preto e branco, estrela solitária no peito. Balbucia alguma coisa e ergue papel e caneta. Zico esquece a dor e atende o garoto com uma assinatura e um sorriso. Cabelos afagados, o menino agradece e sai correndo feliz com seu prêmio, apertando-o contra o pequeno corpo.


Acaba de ganhar um ídolo.