O alarido
é infernal.
O
Maracanã canta, dança e pula seus heróis, inebriado e encantado
com o espetáculo de futebol e gols que vai explodindo aos seus
olhos. A verdadeira expressão de um massacre técnico, físico,
tático e mental, a perfeita subjugação de um rival cuja
expressividade somente se traduz em suas esfiapadas camisas, mera
caricatura de um passado cada vez mais desbotado.
Cantarele
vai dar a saída, aciona um zagueiro. Zico vem buscar jogo, recebe e
liga rápido o meio. Gira o corpo e segue. Súbito, a pancada.
Sem bola,
fora do lance, o medíocre Perivaldo expõe a frustração de ser um
dos protagonistas de um grupo perdedor e decadente e resolve, ares de
jagunço, “acabar com a palhaçada”. Com surpreendente precisão
e uma competência que jamais demonstrou no trato com a bola, acerta
em cheio um bico no tornozelo de Zico. Pelas costas.
Zico cai,
desaba. Urra a dor do gigante abatido. Maca. Está fora. O estádio,
apreensivo, silencia.
* * *
Flamengo
e Botafogo demonstram grande confiança para o clássico que valerá
pela Taça Guanabara de 1982. Ambos, além de dividirem o otimismo
por um bom resultado, andam se queixando da Federação, que marca o
clássico para uma noite de sábado, priorizando o opaco Vasco e
Bangu por conta de uma burocrática soma de pontos. E um jogo que
poderia ultrapassar facilmente 100 mil pagantes irá se esconder em
um horário ingrato.
É a
primeira partida após os históricos 6-0 de novembro.
O
Flamengo derrama otimismo, confiança e um excesso de autoestima que
resvala para a empáfia. O atual campeão da Guanabara, Estadual,
Brasileiro, Sul-Americano e Mundial, reunindo, portanto, a posse de
TODOS os troféus oficiais nacionais e internacionais em disputa, um
feito sem precedentes e jamais igualado no Brasil, divulga com
estardalhaço que abriu convênio com uma escola de idiomas, com o
objetivo de habilitar seus jogadores a falarem um inglês básico,
por conta dos inúmeros compromissos do Flamengo no exterior. E justo
na semana do clássico começam as primeiras aulas.
O time
inicia a Taça de forma arrasadora, goleando Campo Grande (5-2) e
Portuguesa (4-0). No entanto, um tropeço em Campos (0-1 Americano)
provoca muxoxos, logo calados com uma exibição raivosa contra o
Madureira (sonoros 8-0). Nunes, recuperando-se de uma cirurgia no
joelho, está fora. Como Carpegiani ainda não confia no
recém-contratado Jasson e as tentativas com o jovem Ronaldo e o
improvisado Peu não funcionaram, a opção é deslocar Tita para o
comando de ataque, trazendo o ponteiro Wilsinho (ex-Vasco, principal
reforço para a temporada) ao time. Tita, apesar das ressalvas de
sempre, aceita o arranjo sem criar maior caso.
O
Botafogo, ao contrário, vive sua eterna luta contra as dificuldades
financeiras e a desorganização administrativa que remonta a décadas
passadas. Inicia a competição perdendo vários pontos para os
pequenos, mas todos sabem que, diante do Flamengo, a motivação é
outra. O principal atrativo é a estreia do zagueiro Abel (o Abelão,
futuro treinador), contratado ao Cruzeiro. Seu time ainda possui
vários remanescentes da temporada anterior, como Paulo Sérgio,
Perivaldo, Mendonça, Mirandinha, mas, sem dinheiro, resolve recorrer
a suas divisões de base, lançando novatos como Josimar (que, antes
de se destacar como lateral atua como meia) e Alemão, e trazendo
reforços baratos, como Té, Geraldo e Heraldo. Realista, o treinador
Zé Mário (ex-jogador Flamengo, campeão em 74) prevê muita luta
contra um adversário “muito superior”, mas mesmo assim acredita
em uma vitória na base da empolgação.
Noite de
sábado, 70 mil deixam nas bilheterias uma arrecadação sensacional,
indicando que, se fosse no domingo, recordes poderiam ter sido
quebrados. Inflamadas, as torcidas cantam e invocam suas cores, em
um espetáculo sempre emocionante que arrepia os desavisados. Os
times entram em campo, sob fumaça, fogos e cânticos.
A disputa
irá durar apenas um minuto.
Começa a
partida. O Flamengo assume a posse e inicia seu toque de bola
traiçoeiro e mortífero. Roda, roda, seus jogadores vão dançando
seu revezamento de posições, enquanto parecem trocar passes de
forma indolente. Leandro recebe. Vê um espaço e corta em diagonal.
Zico entende a ideia do companheiro e se projeta. Cabeça erguida de
forma aristocrática, superior, quase sem olhar, Leandro se despede
da bola com um leve tapa que descobre o Galinho inteiramente livre,
solto, leve e pleno dentro da grande área. Impotente, Paulo Sérgio,
em seu resignado movimento de presa, sai do gol para o protocolo. O
tiro seco. Rasteiro, no canto. Flamengo 1, Botafogo 0. No primeiro
minuto de jogo.
O
Maracanã explode em êxtase e já começa a perceber que hoje vai
ter surra. De novo.
O gol não
altera o plano de jogo do Botafogo, que segue encolhido em seu campo,
à espera de contragolpes. Mas o Flamengo está animado, motivado,
correndo, girando a bola, abrindo espaços, criando chances, perdendo
gols. O segundo parece iminente, várias bolas zunem diante de Paulo
Sérgio. Mas, aos vinte minutos, Marinho, que vinha sendo o melhor
jogador da defesa, sente uma lesão e sai de campo. Carpegiani ousa e
coloca o lateral Antunes, trazendo Leandro para a zaga. O time
estranha a alteração, diminui o ritmo e dá campo ao Botafogo, que
começa a se soltar e a criar algumas oportunidades com Mirandinha,
todas religiosamente desperdiçadas.

Intervalo.
O
Botafogo retorna com o garoto Osvaldo no lugar do inoperante Josimar.
Não adianta. Empurrado pelos gritos da torcida, o Flamengo assume
uma posição agressiva, adianta suas linhas e entra pressionando.
Quer logo matar o jogo, quebrar a espinha do adversário, não dar
chances a qualquer possibilidade de reação. Cria uma, duas, três
oportunidades. A massa flamenga sente o gol próximo e engrossa a
voz. Andrade cisca pelo meio, encontra Zico e se projeta. O Galinho
lança por elevação, a bola parece mais para o zagueiro, mas o
botafoguense falha e, na respingada, Adílio entra como uma flecha,
fuzilando para marcar mais um gol. Flamengo 3, Botafogo 0.
“Seis,
queremos seis”, começa a berrar a enlouquecida torcida do
Flamengo.

É quando
acontece a pancada.
* * *

Inconformados,
os jogadores flamengos começam a gritar entre si, “acabou o
respeito. Vamos botar na roda.”
E partem
para a maior humilhação que uma equipe pode sofrer em um jogo de
futebol. Desistem de atacar e começam a girar a bola lentamente, num
jogo circense de gato e rato. Trivelas, chilenas, toques de
calcanhar, balãozinho, salãozinho e outros folguedos juvenis são
aplicados na meia hora final da partida. Para cada botinada, um
chapéu, para cada sarrafo, uma caneta. E o olé. Sim, o olé. Porque
a massa flamenga entende que o momento não é de gol, é de
desmoralizar. E soterra o Botafogo com olés antológicos, que duram
inacabáveis minutos. Meia hora na roda, impotente, como um animal
mal adestrado que corre a esmo em busca de um inalcançável naco de
comida negado pelo seu doutrinador.

As
cortinas vão se fechando e, já no silêncio de um vestiário em
ocaso, um manquitolante Zico vai ganhando o caminho de casa,
expressão ainda crispada de dor. Um garoto encosta, meio sem jeito.
Traja preto e branco, estrela solitária no peito. Balbucia alguma
coisa e ergue papel e caneta. Zico esquece a dor e atende o garoto
com uma assinatura e um sorriso. Cabelos afagados, o menino agradece
e sai correndo feliz com seu prêmio, apertando-o contra o pequeno
corpo.
Acaba de
ganhar um ídolo.