domingo, 13 de outubro de 2013

Alfarrábios do Melo

1980.

Gávea.

Os últimos e renitentes vestígios de luz ainda se debatem esganiçados, mas a escuridão, lenta e implacável, já permeia a sede flamenga, agora em franca desmobilização depois de mais uma festiva e concorrida tarde de treino.

Domingo tem jogo decisivo, contra o Vasco. O Flamengo precisa vencer para ainda sonhar com o tetra.

O presidente, atento, havia acompanhado toda a atividade e, satisfeito, constatara que o bom astral estava de volta, após Coutinho, em um último esforço, ter reformulado a equipe, barrando Luís Pereira, Carpegiani e Nunes, o que tornou o time mais leve e incisivo. A última vitória, contundentes 4-1 em Campos, mostrara que a decisão de Coutinho havia sido acertada. O time, confiante, apregoava pressão incessante e vitória sobre o arquirrival.

Absorto em conversas periféricas com alguns membros do seu staff, o presidente mal repara quando um senhor, de estatura mediana, vestido de forma simples, o aborda algo esbaforido, abrupto.

“Seu presidente, eu sou torcedor, vou a todos os jogos, chuva ou sol, e eu queria lhe fazer um pedido.”

Já acostumado a esse tipo de demanda, o dirigente ensaia seu sorriso mais afável, põe a mão no ombro do torcedor e retruca,

“Entendo, entendo, você quer a camisa do Zico. Mas infelizmente, no momento...”

“Não é nada disso, meu presidente. Não quero nada pra mim, não. Só quero que o senhor ajeite uma coisa que tenho certeza que o senhor pode fazer.”

Cenho franzido, e agora tomado de genuína curiosidade, o presidente vai deixando o torcedor falar.

“Então me diga”

“Sabe o que acontece? Eu queria que o senhor mandasse o time jogar domingo com o nosso uniforme antigo. Aquele listrado fino, calção branco e meia listrada. Nada contra esse novo, até é bonito. Mas dá um azar do cão. Depois que começamos a usar, não ganhamos mais nada.”

Meio sem jeito, o presidente desconversa, torna a empolar seu sorriso acolhedor e despacha o agora inoportuno torcedor com frases como “ganharemos com qualquer camisa”, “quero ver você no Maraca”, “pensamento positivo”. E já começa a tomar o rumo do gabinete quando um dos seus assessores, que apenas assistia ao inusitado diálogo, dá seu inquietante parecer.

“O pior, presidente, é que ele tá certo...”

* * *

Em uma das mais polêmicas medidas da temporada, a diretoria decide reestilizar o uniforme da equipe, que vinha sem maiores alterações há mais de sessenta anos. O desenho do novo modelo (a cargo da esposa do presidente, estilista), concebido na esteira do título brasileiro, é cuidadosamente pensado para transmitir a impressão de modernidade, quebra de padrões, mas ao mesmo tempo não perder algo da identidade do clube. Saem de cena as listras estreitas e o tom vermelho escuro, entram listras largas, um vermelho mais vivo, um escudo reestilizado, que formam um realce bem mais vivo nas transmissões da tevê, identificando de forma única e indiscutível o “produto” Flamengo. E, a mais polêmica de todas as mudanças, os calções passam a ser negros e as meias brancas, abandonando-se assim o tradicionalíssimo arranjo de calção branco e meia listrada de anos e anos. No entanto, a nova combinação faz com que o futebol, pela primeira vez em sua história, utilize um uniforme exatamente igual ao do remo, inclusive nas cores de calções e meiões.

O segundo uniforme também sofre alterações, com as listras rubro-negras passando para as mangas, e se adotando um conjunto totalmente branco.

A receptividade é a mais controversa possível. O novo modelo é nitidamente mais bonito e moderno que o anterior, mas parece faltar algo.

A estreia deveria acontecer na disputa da Taça Guanabara, torneio disputado à parte do Estadual. Mas uma falha da fornecedora de uniformes na confecção do primeiro lote faz com que o Flamengo dispute a competição com o uniforme antigo. E com a “roupa velha” mesmo o rubro-negro atropela seus rivais e chega invicto para a última rodada, precisando de um empate com o Vasco. O uniforme branco já está pronto e é usado na decisão, em que o Flamengo arranca um suado 0-0, garante o título e viaja para a Europa.

E é em gramados espanhóis que o Flamengo enfim estreia seu novíssimo uniforme rubro-negro, no Torneio Teresa Herrera, em La Coruña. No entanto, em um vexame de proporções bíblicas, o time (desfalcado de Zico) chega na última colocação, após duas partidas desastrosas (empate em 1-1 e derrota nos pênaltis para um Gijón com nove e derrota por 1-4 para o Porto).

Péssimo presságio, já cravam alguns.

A temporada segue, o Flamengo (já com Zico de volta) recupera seu prestígio, vence dois torneios na Espanha, repatria Luís Pereira e Fumanchu (dois jogadores de seleção), entra no Estadual com status de franco favorito ao tetra, mas alguns titulares caem de rendimento, Luís Pereira não encaixa de imediato, o time perde pontos importantes e pela primeira vez desde 1978 perde um turno em campeonato regional. Ensaia recuperação no returno, cai novamente de rendimento e parece que vai ficar pra trás, quando Coutinho intervém de forma mais agressiva, barra alguns “intocáveis” (inclusive Luís Pereira) e o time melhora, chegando à reta final para o jogão contra o Vasco.

* * *
Sabe-se lá se por coincidência ou não, após o "apelo" do torcedor ao presidente o Flamengo entra de branco para enfrentar o Vasco e o derrota (2-0) em uma atuação de gala. Quando o tetra parecia roçar os dedos flamengos, vem o desastre de Petrópolis e a eliminação precoce. Termina temporada, começa temporada, Coutinho sai, Modesto Bria assume como interino, não consegue acertar o time (que sofre com desfalques importantes por conta das Eliminatórias), sofre algumas goleadas inesperadas e contundentes, Dino Sani assume, melhora o padrão de jogo mas não evita as turbulências que deságuam na traumática eliminação do Brasileiro, e o clube, um ano depois da conquista de seu (até então) título mais importante implode em crise.

Naturalmente, a culpa é do uniforme.

A volta ao uniforme antigo vira assunto de eleição. O candidato das oposições fala abertamente em aposentar o modelo novo caso seja o vencedor, mas a vitória da situação adia o assunto. Com a perda do Brasileiro, as vozes a favor da volta da “tradição” engrossam e assumem um tom não mais possível de ser ignorado. Mesmo membros da diretoria defendem o fim de um modelo “comprovadamente inovador, moderno, bonito e azarado”.

Enfim, a solução. Conversa daqui, articula dali, cochicha de cá, ajeita de lá, e o arranjo que agrada à maioria. O Flamengo mantém o modelo de listras grossas, mas volta a usar os calções brancos e as meias listradas que fazem parte de seu uniforme desde quase sempre. E ninguém mais fica triste.

A combinação, já usada em um empate no Mineirão contra o Atlético-MG pelo Brasileiro (0-0), estreia em jogos oficiais em Petrópolis, contra o Serrano, em meio às tensas negociações para a permanência de Zico no Flamengo. O rubro-negro vence com facilidade (2-0), parte para a conquista da Taça Guanabara (agora sim, novamente fazendo parte do Estadual) e a história vai terminar em Tóquio.

E nunca mais se falará em mexer no uniforme.

* * *

(PS – nunca mais, vírgula. Em 1991, novamente se encomendou uma reestilização da roupa flamenga, dessa vez ainda mais ambiciosa. A ideia seria vestir da mesma forma todos os esportes. No entanto, o desenho final resultou ainda mais polêmico que o de 1980. Camisas totalmente pretas com frisos vermelhos, calções pretos e meias brancas. Uniforme extremamente bonito, mas completamente fora de um contexto histórico e de identidade. Conselheiros e associados se uniram, ações judiciais ameaçaram pipocar e a diretoria recuou. Felizmente).