domingo, 14 de abril de 2013

Alfarrábios do Melo



Saudações flamengas a todos.

Hoje encerro o (meu) Flamengo de todos os tempos, escalando o camisa 11.

Antes, quero fazer uma menção honrosa a um jogador. Nesse tipo de lista, sempre há algum “esquecido”, alguém cuja ausência é a mais sentida. No caso específico, trata-se de Evaristo, um jogador refinado, diferenciado, goleador, vitorioso e com alma rubro-negra. Não foi fácil deixá-lo de fora desse time.

Mas a camisa 11 vai para um jogador que marcou época e é um dos maiores ídolos da história do clube. E, antes de Zico aparecer, foi seu maior artilheiro.

O time está completo. 1.Garcia, 2.Leandro, 3.Domingos, 4.Píndaro, 5.Júnior, 6.Carlinhos, 7.Dequinha, 8.Zizinho, 9.Leônidas, 10.Zico.

E 11.Dida.

Boa leitura.

1954.

A simpática e acolhedora Maceió arde sob o escaldante sol de janeiro, instigando a leniência e a lascívia daqueles jovens atletas forasteiros, cuja estadia em terras alagoanas vai chegando ao fim. É o momento de aproveitar algumas horas livres, momentos de rara folga. Os mais arrojados e destemidos vão em busca de alguma aventura capaz de se interpor à cansativa rotina de viagens, treinos e jogos. E irão desfrutar dos belos e perigosos atrativos da terra. Outros se rendem ao inclemente calor que os lambe as entranhas e fenecem languidamente em seus leitos.

E os mais entediados vão atravessar a cidade porque hoje tem jogo.

O pequeno e distante estádio do Mutange, pertencente ao CSA local está repleto para a abertura do Campeonato Brasileiro. Um calor sufocante e escaldante não desencoraja os locais, já acostumados com os caprichos de seu clima. Os forasteiros, que até reúnem um grupo razoável, são logo notados e olhados de esguelha, aqueles corpos mais claros tentando se esconder em vão da solar língua ardente e onipresente com jornais, revistas, bonés.

A partida é válida pela fase preliminar da Terceira Região, que irá apurar dois representantes nordestinos para enfrentar, lá na frente, as fortes equipes do Rio de Janeiro e Minas Gerais. A seleção local recebe o time da Paraíba. É o jogo de ida de uma série eliminatória (ou matamata).

Os forasteiros se entreolham quando a equipe alagoana entra em campo, sob efusivas palmas dos nativos, chapéus lançados ao alto, grossos gritos de incentivo. Com efeito, o time de Alagoas parece um amontoado de juniores, vários jogadores baixinhos e nitidamente sem qualquer estrutura física que sequer lembre a prática de algum desporto. Alguém se lembra de recorrer a um pedaço de uma gazeta alagoana que serve de assento e passa os olhos na escalação. Zanélio, Géo, Piolho, Boqueiro. Não parecem nomes particularmente temíveis.

A seleção paraibana adentra o gramado, sob pesadas vaias. Facões giram ao ar, ameaçadores. É uma seleção bem mais alta, jogadores com maior porte atlético. Em uma primeira vista, parece que não irão ter dificuldades para se impor, apesar do excessivo entusiasmo do público, entusiasmo até algo assustador.

Os forasteiros estão lá quietos, apenas contemplando o espetáculo. Seu traje é uma espécie de salvo-conduto, o escudo que os identifica suscita admiração, até certa veneração. Mas não é bom facilitar, e os atletas logo percebem ser mais prudente manter estrita neutralidade, inclusive em seus comentários. Logo percebem que os paraibanos deverão vencer com facilidade. Mas suas opiniões são mantidas em cauteloso silêncio.

E de fato, a Paraíba mostra desde o início possuir uma equipe bem superior. Exerce uma marcação sufocante e adiantada, não deixa os alagoanos passarem de seu campo, impõe-se no gramado sem qualquer tipo de resistência. A plateia tenta jogar com sua equipe, xinga, continua bramindo seus facões e foices, atira objetos, paralisa a partida algumas vezes, invade o gramado, mas tudo isso é inútil. Os paraibanos abrem 3-1 com facilidade, ainda nos primeiros minutos de jogo. Tudo parece apontar para uma goleada histórica.

Com efeito, o futebol alagoano não vive um bom momento. O campeonato local ainda está sub-júdice, com o Ferroviário da capital e o ASA de Arapiraca brigando pelo título nos tribunais, título de um torneio marcado por jogos confusos e turnos inteiros interrompidos por desistências de clubes participantes. Isso evidentemente irá refletir no gramado.

A seleção paraibana segue no ataque, e apenas a grande atuação do goleiro Almir impede um placar mais elástico. O primeiro tempo chega ao fim, sob apupos de um público que já começa a se resignar. Vem o intervalo.

É quando o sol resolve soltar a sua voz


.

O calor aumenta a um nível próximo do intolerável. Parece impossível manter-se sequer exposto a um clima daqueles, quiçá praticar algum desporto. As equipes retornam a campo, os paraibanos parecem nitidamente incomodados. Sua equipe é mais forte, mais pesada. E já parece sentir os primeiros sinais de cansaço.
Inicia a segunda etapa, os paraibanos ainda dominam a partida, mas seu ímpeto diminui consideravelmente. Já nos primeiros minutos, buscam rodar a bola de um lado a outro, reduzindo o ritmo e implorando para que o relógio seja camarada.

Mas os alagoanos ainda querem jogo.

E começam a encontrar os espaços que lhe foram negados na primeira etapa. Mais leve e sem temer o sol, a equipe de Alagoas continua correndo como se sua última partida fosse. E começa a aparecer o jogo de um garoto mirrado, que parece ser movido a pilha. O moleque gira de um lado pro outro, corre pedindo bola, dá carrinho, não tem medo de cara feia. Sempre que pega na bola, o torcedor grita e incentiva, o menino é uma espécie de xodó. Ele recebe, mata no peito e põe nas canetas de um contrário. Chuta forte, a bola vai na trave.

A torcida acorda e volta a fazer barulho. Isso vai ficar interessante.

E os minutos seguintes presenciam uma história praticamente inverossímil. O famélico garoto implode, tijolo a tijolo, toda a defesa paraibana, semeando uma mensagem de pânico e terror aos seus incrédulos defensores. Risca, corta, lava, passa e costura. O menino faz simplesmente e rigorosamente o diabo com a defesa da Paraíba, senta goleiro, zagueiro, treinador, diretor e presidente ao chão com seus dribles, e corre, corre, corre como se fosse um enviado do capeta, o sol inclemente parece refrescá-lo.

Sim, o jovem infernal destroça o panorama da partida e conduz a seleção alagoana a uma das mais espetaculares vitórias de sua história. O garoto marca os três gols da reação, Alagoas vira para 4-3, para delírio de um público que invade o campo ao apito final. Agora ouvem-se tiros de trabucos e garruchas ao alto, um facão é arremessado em êxtase e quase vai no pescoço de um, os jogadores são abraçados, agarrados, despidos, logo aparece uma concertina e o forró começa ali mesmo, no meio do gramado.

Os forasteiros, que apenas buscavam uma forma pitoresca de entretenimento, agora estão vivamente impressionados. O futebol mostrado por aquele jovem na segunda etapa foi alguma coisa diferenciada, mesmo para os padrões do Sul Maravilha. Mesmo para os padrões do Rio de Janeiro, a meca do futebol e terra natal dos rapazes, que agora estão ávidos para disseminar a história que acabam de vivenciar. Reúnem informações, o nome do menino é Dida, joga no CSA e é o craque do time dele.

Mas tem que ser olhado com mais carinho. Ele não pode ficar esquecido torrando sob o sol nordestino. Seu futebol é maior, é moleque, é irreverente, é risonho, é brasileiro.

É Flamengo.