domingo, 24 de março de 2013

Alfarrábios do Melo



Saudações flamengas a todos.

Hoje dou continuidade à escalação do (meu) Flamengo de todos os tempos (1.Garcia, 2.Leandro, 3.Domingos, 4.Píndaro, 5.Júnior, 6.Carlinhos, 10.Zico), e desde já imagino que minha escolha irá gerar alguma controvérsia.

Porque hoje é o dia do camisa 7. A escolha mais lógica seria um ponta-direita, ou algum atacante polivalente, enfim. Não faltariam nomes de qualidade, como Joel, a meu ver o maior de todos os ponteiros a trajar o Manto. Ou Renato, tetracampeão brasileiro com um futebol fulgurante. Ou mesmo Valido, que se deslocou para a ponta para dar espaço ao genial Mestre Ziza, lá nos anos do primeiro tri.

Mas minha escolha vai para um jogador de meio-campo. Um volante. Sei que irão me chamar de retranqueiro, ou de parente do Joel Santana. Não importa. Vale o risco.

Imagine um volante. Um volante que sabe fazer marcação individual e por zona. Um jogador com fôlego diferenciado, capaz de correr o campo todo, cobrindo as duas laterais, uma incansável formiguinha, um desarme límpido, cristalino, taciturno. Um atleta altamente resistente, que dificilmente se contunde. Agora, pense que esse mesmo volante é capaz de pensar um jogo. Possui um passe primoroso e preciso. Sabe o momento de acelerar e cadenciar. Ainda esse mesmo volante possui exímia visão de jogo, e também é capaz de fazer lançamentos compridos e agudos, desmontando totalmente a defesa adversária. Ou seja, é um volante que sabe marcar como um perdigueiro e armar o time como um meia. Basta? Não. Esse volante ainda possui um domínio e um controle de bola suave e macio, trata a pelota como sua enamorada, é incapaz de agredi-la. E ainda, como se já não fosse o suficiente, ainda é capaz de surpreender defesas com suas penetrações cortantes ao ataque, além de seu mortífero chute de longa distância.

Parece jogador de videogame, mas esse volante existiu no Flamengo (recomendo assistir ao vídeo que segue no texto, é uma pequena amostra).

Para quem não conhece, apresento. Para quem já conhece, relembro. Conto hoje a história daquele que foi, na minha opinião, o maior volante que atuou com a camisa do Flamengo em todos os tempos. Boa leitura.

7 – DEQUINHA

Eu vi.

Eu vi tudo, o cara do rádio me falou, e não adianta vir pra cá com essa conversa de que na rádio se ouve porque o rádio era meu e eu vejo o que eu quiser e pronto, e só sei que eu vi tudo, era Flamengo e Botafogo, era o comecinho do campeonato e o Flamengo já era bi e queria o tri, e o time era mais ou menos o mesmo, e a torcida acreditou e encheu, até porque o time já havia jogado com aqueles Canto do Rio, Bonsucesso, essas coisas e só goleada, líder invicto, Evaristo, Índio metendo gol de tudo que é jeito, mas jogo grande o Botafogo foi o primeiro, e o Botafogo tava com um time meio trocando, muito jogador novo, já havia tropeçado pelo caminho, aquele ano os mais fortes eram o Fluminense que tinha Telê, Valdo, Didi, Castilho e o América, acho que foi o América que chegou no final, mas voltando o Botafogo era time enjoado, contra o Flamengo eles sempre corriam, então não tinha nada disso de jogo fácil, e o rádio me contando tudo, e eu já via o Maraca lotado, cheio de gente, um domingo de sol do jeito que o carioca gosta, enfim o apito apitou, o que é, meu apito apita e pronto, se o seu apito trila é problema seu, o meu apita e me deixe continuar a história, o apito apitou e o jogo começou e deu dez minutos o Índio se machucou e teve que sair, não tinha substituição na época e o Flamengo ficou com dez, e todo mundo perguntando e agora, eu pensando, calma que “seu freitas” vai dar um jeito, e foi batata, rapidinho o professor deu uma arrumada no time e nem parecia que o Flamengo tinha dez, o cara não é feiticeiro por acaso, mas eu tava onde mesmo, ah sim, o Índio machucou e o Flamengo com um a menos, e o Botafogo ficou todo animado e quis vir pra cima, o time deles tinha um cara todo torto lá na ponta, um tal de Garrincha, se bem que muita gente chamava o cara de Gualicho, mas a maioria dizia que era Garrincha mesmo, então vamos de Garrincha, de forma que esse Garrincha tava promovendo o maior salseiro lá pela esquerda da defesa do Flamengo, o Jordan tendo um trabalho danado com ele, mas o Flamengo também atacava, como falei nem parecia que o time tava com dez, tava faltando o dotô rubis, mas ele tava brigado com o seu freitas e o feiticeiro sempre dava um jeito, o time tava correndo até mais, e também perdia gol, criava chance, um time com Joel, Evaristo e Zagalo é ruim de marcar, mas o jogador que o cara do rádio falava mais não era nenhum desses, passava o tempo e eu só ouvia o nome do Dequinha, esse Dequinha que era um nordestino arretado, veio lá do Rio Grande do Norte, acho que de Mossoró, sujeito baixinho, quietinho, uma tranquilidade só, mas quando botava a camisa do Flamengo virava bicho, parecia que tava defendendo o pai e a mãe, e esse Dequinha começou a correr do lado esquerdo pra ajudar a marcar o tal Garrincha, e eu só vendo o cara falar Dequinha toma, Dequinha desarma, Dequinha tira a bola, o Dequinha não parava, e o Botafogo tentava atacar de todo jeito mas o cara parecia assombração, sempre dava um jeito de aparecer onde tava a bola, e o que mais me apoquentava é que o cara do rádio ainda dizia que o Dequinha tinha perna pra chegar na frente, que o Duca, que tava no lugar do Rúbis, não tava bem e o Dequinha acabava também ajudando a lançar a bola pros atacantes, eu chegava a duvidar do cara do rádio, mas sei que ele não é mentiroso porque eu vi, o cara falava e eu via, e o jogo foi passando e nada de gol, os dois times atacavam, mas os goleiros tavam bem e o Flamengo tinha se arrumado na marcação, hoje dizem que encaixou, ou coisa assim, o que eu sei é que quem encaixou foi o Dequinha, que não deixou o Botafogo jogar, mas o Flamengo com um a menos também não conseguia fazer muita coisa, e parecia que o jogo ia mesmo ficar no zero a zero, as torcidas cantando uma pra outra, uma provocação só, naquela época Flamengo e Botafogo era muita rivalidade, vinha desde a época das regatas, já vou voltar pro jogo, calma, acho que vou tomar uma água, não, vamos logo aos finalmentes e chega de entretantos como dizia aquele cara lá da novela, foi até uma novela boa aquela, tá bom, tudo bem, vamos voltar pro jogo, e tava zero a zero, e a essa altura o Dequinha já era o dono do jogo, parecia aqueles coelhinhos de desenho animado, eu sei que isso quem falava era o Nélson Rodrigues, mas peguei emprestado e pronto, o coelhinho é meu e ele corre do jeito que eu quiser, mas o Dequinha além de correr o campo todo ainda me deu um drible num cara lá do meio-campo que a torcida começou a rir e bater palma, deu mais uns dois lançamentos que por pouco o Evaristo não faz, e depois disso a torcida achou que não ia mais sair gol, e todo mundo nervoso querendo que acabasse, pior coisa é perder com gol no final, mas quem é Flamengo não pode ter medo de tomar gol no final, e o Rolo continuou atacando, ou tentando atacar com dez, mas já passava de quarenta e o Botafogo resolveu ficar todo atrás, aí teve um escanteio ou foi uma falta que bateram e a zaga tirou, e de repente veio alguém lá de trás igual a um raio, só dava pra ver o cabra correndo, e a bola vindo lá de cima, olha eu te juro, pareceu que a bola ainda começou a cair mais devagar só pra esperar o sujeito chegar, e era o Dequinha, e ele já chegou se ajeitando, e deu um pulo, mas que pulo foi aquele, e se inclinou meio de lado e mandou a canhota, e foi de fora da área, foi quase uma bicicleta, não foi uma bicicleta porque ele tava meio de lado, mas o fato é que acertou a bola, e o chute parecia que ia ser fraco, mas quanto mais a bola ia mais pegava força, e foi subindo, subindo, e chegava a assobiar, fazia assim zuimmmmm, e o pobre do goleiro ficou assim ó, paradão, olhando, perna aberta, a bola se espatifou na trave e rebentou no meio da rede, já quase no minuto final o gol, o golaço, o gol de placa, o gol sensacional, e o Maraca todo pulando, gritando de vermelho e preto, e aquela montanha de gente abraçando o Dequinha, e a torcida gritando o nome do Dequinha, e os botafoguenses de cabeça baixa do jeito que eu gosto, e o apito apitando final de jogo, um a zero pra gente, e o Flamengo líder, mais líder do que nunca, ali eu falei vai ser tri, e muito tempo depois foi tri mesmo.

Foi isso o que eu vi.

 
Vídeo com um dos gols de Dequinha na carreira

“O jogo narrado pelo texto aconteceu em 06.09.1955, válido pela quinta rodada do Campeonato Carioca. O Flamengo, com a conquista desse campeonato meses depois, obteve o segundo tricampeonato de sua história.

Dequinha atuou de 1950 a 1958 pelo Flamengo. Encerrou a carreira em 1962, já defendendo o Campo Grande-RJ. Faleceu em 1997.

Dequinha atuou como titular em TODAS as partidas dos campeonatos de 1953, 1954 e 1955."

PS – Além de Carlinhos e Dequinha, o Flamengo ainda contou com dois volantes de altíssimo nível e futebol extremamente qualificado em sua história. Bría e Andrade