domingo, 3 de março de 2013

Alfarrábios do Melo



Saudações flamengas a todos.

Hoje eu continuo a série sobre o (meu) Flamengo de todos os tempos, mas vou me permitir alterar a ordem de apresentação dos craques do time. Afinal, Zico, Zicão, Zicaço completa sessenta anos. E nada mais apropriado do que já escalar e “entregar” a 10 justamente ao maior de todos os heróis que vestiram, dignificaram e deram peso ao sagrado manto flamengo. Boa leitura.

* * *

Parece ser mais uma decisiva partida numa tarde ensolarada de domingo. Parece ser mais um jogo de casa cheia, é no Mineirão, podia ser no Maracanã, no Morumbi, Olímpico ou Serra Dourada. O público é ruidoso, canta e faz festa, como faria em qualquer outro desses palcos.

É jogo importante sim, mas para um dos times apenas, o adversário, que é o Cruzeiro, precisando fortemente da vitória. O Flamengo já está virtualmente eliminado, precisa nas próximas rodadas vencer, vencer, vencer e torcer para que uma sacrossanta combinação de resultados o ponha na Final do Campeonato.

E assim, uma multidão azul ocupa as arquibancadas. E grita por seu time, como qualquer torcida berraria por seus jogadores em um jogo importante qualquer.

E a liturgia dos grandes jogos vai sendo seguida. Dezenas de repórteres se polvilhando no campo, os fotógrafos demarcando seus lugares atrás das metas, o verde gramado das Minas Gerais tornado iridescente por um faiscante sol que começa a ver sua hegemonia ameaçada pela sombra que cresce às margens do campo, torcedores agitando suas bandeiras e batucando indolentes e tensos sambinhas em seus instrumentos enquanto o grosso dos espectadores vai chegando e se acomodando em seus tépidos assentos de cimento.

A hora da partida vai se aproximando no mesmo ritmo que os batimentos da percussão e dos ansiosos pulsos se aceleram, perfeitamente sincronizados. Alguns foguetes já são estourados à guisa de aquecimento, algumas buzinas explodem seus berros guturais, o papel picado tão bem enrolado já está pronto.

Entra o trio de arbitragem. Vaias. Entra o Flamengo, tímidos aplausos de uma Nação sempre presente mas algo desanimada. Apupos.

Agora é o Cruzeiro, o Mineirão estoura em um mar de serpentinas, fumaça, poeira, fogos, gritos e palmas que espelham uma forte e esperançosa expectativa azul. Zêêêrooo, zêêêrooo, berram os seguidores da Raposa. Os jogadores batem bola, posam pra fotos e dão entrevistas. Surgem os nomes no placar eletrônico.

Primeiro, os do Cruzeiro. Balu, Paulo Isidoro, Careca, Heider, todos têm seus nomes gritados, são aplaudidos e acenam em resposta, gratos. Como em todo jogo. Como em qualquer estádio. A seguir, os nomes do Flamengo. Zé Carlos, Uidemar, Leonardo, Ailton, Renato. Todos aparecem, os poucos acenos flamengos são logo sufocados pelas vaias de uma esmagadora maioria. Uivos e até xingamentos, recebidos com indiferença por jogadores já acostumados a seguir o criterioso ritual que antecede a cada partida de casa cheia. No fundo, alguns até gostam. Agora a coisa está perto do fim, o árbitro já esboça movimentos pensando na etapa seguinte.

É quando surge no placar o nome de Zico.

Os flamengos apertam o grito, destemidos, berram o nome de seu ídolo maior, indiferentes à reação dos locais. E, como esperado, as cinquenta mil vozes se erguem em uníssono, sobrepondo-se aos cânticos dos seguidores rubro-negros. Entretanto, como em uma divinal ópera, o canto mineiro se alastra num hino tão devastador como inusitado, corações abertos em cortante simplicidade e honestidade.

“Olê, olê, olê, olê, Zicô, Zicôôô...”

Não há quem deixe de estacar e contemplar a maravilhosa e singela homenagem prestada pela torcida cruzeirense. Alguns mais pragmáticos estão assombrados ao perceber que o mineiro está ovacionando o maior ídolo do adversário antes da partida, outros não se lembram de precedente parecido. Os mais sensatos simplesmente choram. É impossível ignorar que, neste momento, a torcida de Minas Gerais está representando a gratidão e o respeito de milhões de brasileiros e tentando apenas ser carinhosa com o ídolo que está partindo. E lhe está proporcionando o reconhecimento que somente as grandes lendas do esporte auferiram ao final de sua obra. A unanimidade.

“Obrigado, Zico.”

Agora é o placar eletrônico que participa do gesto, com sua mensagem lampejante. Os torcedores flamengos alternam-se entre lágrimas e gritos de amor a seu rei. Poucos conseguem falar, reagir, esboçar mais que suspiros. A massa continua seu canto azul a Zico, parece não haver como parar. Os jogadores, arrepiados, não se furtam a mirar para o craque, que está ali, a poucos metros, tangível e inacessível como as vivas legendas. O Galo segue seu aquecimento, também parece sensibilizado, acena timidamente em agradecimento, e o recital vai chegando ao final, dando lugar ao pesado silêncio que costuma ser erigido no vácuo dos momentos históricos.

A partir daí, tudo seguirá dentro do roteiro escrito para todo jogo decisivo. A partida será disputada, aguerrida, o torcedor vai gritar, espernear, aplaudir, vaiar. Zico será tratado como adversário, como todo o time do Flamengo. Cada espectador irá dar vazão à sua veia de torcedor e deixará suas entranhas no estádio, saindo dele pleno e revigorado para encarar mais uma semana da infindável e encarniçada batalha de sua vida. Até o próximo domingo.

No entanto, a testemunha daqueles minutos que antecederam à partida do Mineirão sabe, de forma consciente ou não, que jamais será o mesmo, após doar-se em gritos de reconhecimento e amor ao ídolo Zico. Jamais será o mesmo, porque não vai mais ter Zico, não vai mais ter o gênio, o craque, o paradigma de perícia técnica, improviso artístico e conduta profissional reunidos em um só jogador, não mais as tardes ou noites em que o futebol se sentia homenageado aos pés do Galinho. Jamais será o mesmo, porque a partir de então não lhe restarão mais do que as cálidas e cada vez mais esmaecidas lembranças de um órfão.

O domingo se esvai. Mais um domingo de futebol. Não, não apenas mais um domingo. O último.

O último domingo de Zico.