domingo, 17 de fevereiro de 2013

Alfarrábios do Melo


Saudações flamengas a todos.

Dando continuidade à série (meu) “Flamengo de Todos os Tempos”, hoje apresento o camisa 3. Quem tem maior contato com a história do clube haverá de concordar que o nome de hoje se trata de uma escolha natural, quase óbvia. E no texto de hoje tentarei mostrar o motivo.

O time já está assim: 1.Garcia, 2.Leandro e hoje o número 3, Domingos da Guia. Boa leitura.

3 - DOMINGOS

O goleador está à espreita.

Pele eriçada, olhos aguçados, boca seca, respiração suave. O predador sente a presa acuada, o gol lhe parece sorrir, oferecendo-se para o mortal e derradeiro abate, oferenda de suor e sangue para uma plateia sedenta.

Seus companheiros evoluem com a bola, a fera acompanha sem piscar. Sabe o que deverá ser feito. Não se intimida com a selva de camisas e pernas em negro e vermelho. Não pode temê-los, precisa se impor, disso depende sua tarefa.

E chega a bola.

Aninha-lhe aos pés, iniciando seu letal trote. A assistência se levanta, logo haverá o clímax. Um rubro-negro é driblado, dois. Pouco resta, agora. O alvo está aberto à frente, basta ajeitar o corpo e tudo estará terminado.

É quando surge a parede.

Um leviatã de ébano erige-se agora diante de si, provindo do nada. O monstro se move econômico, com passadas pensadas mas firmes. Busca se posicionar exatamente à frente do goleador e travar-lhe o ímpeto. Mas o artilheiro, conhecido por sua velocidade, prevê o movimento da criatura e com um rápido meneio ginga-se para um lado, saindo pelo outro. O gigante mal se mexe, é trespassado com insólita facilidade. Inebriado e faminto, o predador pouco repara na profusão de aplausos, gritos e ruídos que explode das arquibancadas. Sim, foi um belo truque. Mas ainda falta o gol, ali, escancarado diante de si, resignado, entregue. Arma o pé de apoio, escolhe o canto e vai preparar o chute e consumar enfim o ato.

Só então percebe que está sem a bola.

Atônito, o matador perde o equilíbrio e quase cai. Mas consegue, num esgar, virar-se para trás, o suficiente para perceber o portentoso zagueiro sair jogando majestoso, a cabeça levantada, os pés escondendo e acariciando a pequena criança redonda. E os aplausos, os malditos aplausos insistem em jorrar caudalosos, ferindo-lhe de morte a honra, a dignidade.

Nesse momento exato, ele se percebe a verdadeira presa.

* * *

Domingos da Guia é a ação final de uma diretoria que assumiu o Flamengo disposta a resgatar o clube da desastrosa crise vivida nos anos 1930, o pior momento de sua história. Enfim pronto para lidar com os novos tempos profissionais, o clube consegue erguer sua sede no longínquo bairro da Gávea, lança um ambicioso programa de ampliação do quadro de sócios, amplia sua rede de identificação de jovens talentos (muitos deles vindos dos clubes menores), aproxima-se de seu torcedor. E, numa tacada ousada, negocia com o Boca Juniors o empréstimo do zagueiro, suspenso na Argentina por seis meses.

E a manobra se reveste em um acerto espetacular. Domingos, o célebre Divino Mestre, campeão na Argentina, no Uruguai e até no Vasco, o craque de bola Domingos, titular da Seleção Brasileira e ídolo por onde passa, rapidamente conquista de forma indelével e irreversível os corações de uma jovem nação que começa a se formar. Com efeito, vários herois flamengos, na curta história do clube, receberam respeito, reverência, admiração de sua barulhenta torcida. Mas Domingos é o primeiro ídolo, a primeira celebridade, a primeira estrela, o primeiro que circula de carro aberto, que é parado na porta do cinema, que dá autógrafo a cada esquina, que não consegue comprar um pão.

E isso o apaixona.

Encerrado o período da suspensão, Domingos volta a contragosto ao Boca, apenas para arrumar uma confusão e forçar sua saída. Historicamente comedido e tido como extremamente profissional por seus pares, o sujeito está completamente cativado, alucinado, arrepiado com o Flamengo. “é um mosquito que me picou, desde que vesti essa camisa percebi que meu lugar é aqui, aqui eu jogo como se torcedor fosse.”

E Domingos, o homem que transformou o ofício de defender em uma arte, exala sua paixão com atuações magistrais, verdadeiras obras de arte. Nega-se a correr atrás de atacantes, basta lançar mão de sua fenomenal colocação em campo e sua notável capacidade de antevisão das jogadas. Habilidoso ao extremo, chega a ser mais talentoso do que a esmagadora maioria dos atacantes que enfrenta, muitos deles absurdamente mais velozes do que o colossal zagueiro. Seus desarmes limpos, cirúrgicos e ladinos aterrorizam os oponentes de tal forma que o consagrado Tim, do Fluminense (um dos principais atacantes da Seleção), admite se recusar a enfrentá-lo no mano a mano, “é inútil, impossível, prefiro buscar a tabela”.

O Flamengo vai se reerguendo, se estruturando, começa a disputar títulos, outros craques são contratados, descobertos, revelados. Um dos maiores times da história rubro-negra vai sendo montado, e logo as taças aparecem. Domingos é protagonista do célebre título de 1939, que quebra DOZE anos de jejum (o maior de todos), e do início dos dourados anos do primeiro tri.

* * *

O Botafogo ataca em velocidade, o time entra tabelando. A bola é lançada em velocidade para Heleno, que entra na área. Domingos vem na cobertura mas não há como antecipar o atacante, que está bem à frente. O jeito é esticar-se todo e colocar toda a força no seu pé direito, que explode a bola numa estupenda bicuda, projetando-a para o meio do público que abarrota as Laranjeiras.

A plateia, formada na sua maioria por associados do Fluminense (que entram de graça), não gosta da solução e passa a vaiar Domingos. O público espera espetáculo, jogadas graciosas do Divino, não prosaicas espanadas de roça. Domingos, que desde sempre nutre especial desapreço pelos tricolores e sua nobreza estéril, bufa, acena um gesto obsceno e sai caminhando. Está encolerizado.

No lance seguinte o Botafogo chega novamente, Yustrich sai do gol mas não alcança, o toque é sutil e vai entrar na meta flamenga. Mas Domingos chega antes e, em cima da linha, ajeita a bola no peito e a pisa, carinhoso. O ataque parece dominado.

Mas Domingos ainda está irritado.

E o Divino, pés em cima da bola, veias saltadas, olhos vermelhos e esbugalhados, grita e acena para os atacantes botafoguenses. Chama TODOS pra briga, venham tomar-me a bola. O torcedor flamengo não acredita, não pode crer que seu zagueiro está parado, na linha do seu gol, atiçando um ataque inteiro.

O primeiro é Heleno, que avança esbaforido. Domingos alça-se para o lado e senta o temperamental atacante ao chão, a bola por entre suas pernas. A seguir, dois alvinegros aparecem simultâneos, obstinados. O colosso dá um leve tapa na bola e um abano, e os dois botafogos colidem e se espatifam entre si, dividindo escoriações e rasgos de sangue. Mais um alvinegro no caminho, mais um rabisco, mais um no chão. Parece inacreditável, e é inverossímil, mas Domingos acaba de demolir um dos mais devastadores ataques de todo o futebol brasileiro. E o monstro ainda não saiu da área.

Mas ainda há Heleno, que se ergue sedento, espumando, lacrimejando sangue, a alma ansiando vingança. A besta fera atira-se, abandona seu corpo alucinado em direção a Domingos, mira-lhe a jugular. O Divino, sem sequer lhe dignar um soslaio, apenas gira e segue seu trajeto, enquanto Heleno desaba e se desintegra, a boca amarga de grama, sangue e lama, os escombros de sua existência soterrados na poeira de Álvaro Chaves.

Domingos caminha mais um pouco com a bola, cabeça erguida, tronco reto, monarca, imperial. Vislumbra o ponta Vevé preparando a corrida, e lhe remete com carinho um lançamento macio, limpo, preciso, a bola passando por milímetros sobre as incrédulas cabeças adversárias.

O leviatã, então, encara o público, remove da cabeça um imaginário chapéu e se inclina, como um tenor, um sublime solista. E os aplausos irrompem caudais, verborrágicos, plenos, suntuosos.

E somente então Domingos se permite esboçar um tênue sorriso.



“Domingos da Guia atuou no Flamengo entre 1936 e 1943. Nesse período conquistou três Campeonatos Cariocas (o mais importante título da época), entre outros troféus. Em 1943 foi negociado com o Corinthians, onde também foi ídolo. Encerrou sua carreira no Bangu, clube que o revelou. Seu filho Ademir se tornou, mais tarde, um dos maiores jogadores da história do Palmeiras.
Domingos da Guia é considerado por muitos o maior zagueiro da história do futebol brasileiro.”