Saudações flamengas a todos.
É com grande satisfação que inicio minha trajetória como colunista no Buteco, buscando contar um pouco da nossa rica história flamenga. E, uma vez que estamos em plena disputa de Estadual, aí vai um desses momentos. Boa leitura.
* * *
O
inesperado inverno de títulos chega ao terceiro ano. Eu nunca havia
atravessado tanto tempo sem ver o Mengão levantar ao menos uma taça
regional ou nacional, e a coisa está atravessada, incomoda. Mas esse ano
não é possível. Há Zico, há Sócrates, e Adílio, e Leandro, e Bebeto, e
Mozer, e…
Não,
não tem televisão. Futebol na tevê é só em decisão ou jogo do Brasil.
Vai ter que ser você de novo, olho pro meu radinho amigo, já companheiro
de várias jornadas. O Carioca vai começar, e já tem Fla-Flu pra
arrebentar, e o radinho vai me contando o menosprezo do adversário
tricampeão, a empáfia. “Ih, tão chamando o Zico de bichado”, gralha meu
amigo com sua voz metálica. É como se me estivessem insultando. Certeza
que tem volta, penso.
Mas
meu amigo logo começa a cantar uma canção mais agradável, uma melodia
macia, uma sinfonia, um concerto. O radinho comenta “o Zico está
arrebentando, jogando demais”, e o que se segue é um recital. Zico
correu, apontou, atirou, entroooou… o radinho vai narrando gols em
refrão, o “bichado” mete três gols nos caras, é o regente da espetacular
goleada de 4×1, fazendo a torcida tricolor engolir o coro a seco, com
areia. Enlouquecido, agora eu danço com o radinho nas mãos, não disse,
não disse? Esse ano não tem pra ninguém.
Mas
amigo sempre fala a verdade, não esconde nada, e meu radinho agora me
fala que os ídolos se foram, vão pra Copa, pro México, e outros se
lesionam, e outros vivem crises, e agora só resta a garotada. O
Fluminense faz água, apanha igual judas, e o rival vai ser o Vasco, cujo
comandante é um garoto de nome estranho, um tal Romeiro, Romero, não,
nada disso, Romário é o nome do sujeito. Mete gol a rodo. E chegamos
empatados na última rodada, a primeira final, Taça Guanabara.
O
rádio me conta que o Maraca tá entupido, ouço o barulho, mas o cara de
nome esquisito faz um, logo depois o grito “Flamengo empatou, é gol”,
salto, berro, mas o rádio, sério, chega pra mim e manda “você vai ter
que ser forte, o juiz anulou”, perco as forças, me encolho e ainda vejo o
tal de nome diferente fazer outro. A primeira batalha está perdida. O
radinho quer balbuciar algo, mas eu lhe mando calar. Não quero papo.
Segunda
parte da luta, clássico com o Botafogo, o radinho me fala “o Flamengo
tá bem, o Flamengo tá ganhando”, mas o rival vira no último minuto,
parece ser o fim de tudo, o fim da festa. “Flamengo tá fora”, o radinho
cospe as “análises” dos “especialistas”. Aquilo é demais. Tenho ganas de
arremessá-lo à parede, mas o desligo e o guardo num canto. A briga é
feia, quase sai porrada.
Mas
nenhuma briga é eterna até que soe novamente o apito. E lá estamos nós
de novo, olhando meio torto um pro outro, verdade, mas tamo lá, e o time
vai ganhando dos pequenos, se recusando a morrer, aparece um tal de
Ailton, dizem que ele arrumou o time, e a Copa acaba, e os craques
voltam, quer dizer, Sócrates empenado e Zico ainda com o joelho ruim. O
Galinho ainda joga umas duas ou três, mas logo sai de cena, justo num
Fla-Flu. Os tricolores gritam “bichado”, e aí o Mengão mete-lhes um gol
pra deixarem de ser folgados. Outro pau no tricampeão, e o Flamengo de
volta à briga. Mas sem os craques. É, meu caro, vai ter que ser com a
garotada mesmo. O radinho zumbe, preocupado.
Vem
a final da Taça Rio, de novo com o Vasco. Meu caro radinho, vê se me
conta coisa boa dessa vez. Agora não tem jeito, se ganhar é taça, se
perder é rua, eliminação. O jogo começa elétrico e o Flamengo vai logo
marcando, e o Vasco vai logo empatando. O rádio não pisca, eu transpiro,
o jogo pode ir pra qualquer lado, e o tempo passa, e a coisa não
define, mas é tudo ou nada, e o radinho fala “parece que é nada”, porque
Dinamite vira. Vai terminar tudo, mais um ano. Mas dessa vez eu não
desisto, começo a berrar “Mengôôôô” na orelha do radinho, ele se anima,
“o Flamengo está em cima, encurralando”, “o gol vai sair a qualquer
momento”, e é pêêênalti!, já estou sem unhas, a camisa já foi embora há
muito tempo, e prendo a respiração, “Bebeto bateu fraquiiiinho, e é
goooooool!”, é o empate de novo, e o jogo tá acabando, “para tudo,
confusão”, o Vasco arma uma choradeira, reclama do pênalti, eu penso,
porra, nem perderam o jogo e já começou o mimimi, Dinamite é expulso, e o
Flamengo vai pra cima, vai pra dentro, vai pro meio, e vem um ataque
veloz, como correm esses meninos, e chutou, Acácio largou, chegou Júlio
Céééééésar…. entrooooou, é gooooool!, é gol, porra, e é campeão,
ganhamos o segundo turno. Radinho, se eu fosse mais velho eu pagava uma
cerveja pra você. Mas não preciso de cerveja, já estou bêbado e falando
um monte de besteira com o radinho.
Ainda
tem as finais, de novo com o Vasco, Flamengo com um ponto de vantagem.
Pode empatar três. Mas o radinho avisa, “o ataque dos caras é poderoso,
só ganha de muito”, “o Vasco é favorito”, nunca vi favorito com
desvantagem, enfim.
Agora
tem tevê, mas reluto e recuso largar meu amigo. Aparelho no mudo, o
radinho segue me narrando, e agora ele me conta uma história tensa, dois
jogos truncados, parados na porrada, árbitros que trancam os jogos,
goleiros sem ser ameaçados, torcidas gritando marmelada, marmelada (pra
ter os três jogos, creem), e penso que tem que ser com sofrimento, tudo
no Flamengo é com sofrimento, e os dois jogos passam semanas, uma
eternidade que simplesmente não se esvai. Porra, radinho, que luta!
Parece
filme, mas se é filme vai ter a hora do clímax, e chega o domingo, de
hoje não passa, durmo na véspera o sono mal dormido do garoto ansioso,
chega a hora, o Maracanã tá belíssimo, ué, Vasco de preto, bom
presságio, eles normalmente perdem quando vêm de preto, mas começa o
jogo e o Vasco parece ter mais ânsia, vem com tudo, o Flamengo fecha-se
em sua retranca, é cercado, o gol dos caras quase sai, primeiro tempo
termina, Flamengo mal chuta a gol. Falo ao radinho, que porra é essa, é o
pior jogo, o meu amigo concorda, mas parece confiante. Tranquilizo.
Ninguém
entende nada, o radinho parece rir, o letreiro anuncia, sai Geovani, o melhor jogador dos caras, Lopes tira o sujeito, põe um atacante
e desmonta seu time. Agora é o Flamengo que domina, que vai pra cima,
que controla o jogo, que não é mais ameaçado, que ameaça. Mais um pouco
e Lopes tira o tal de Romário, aí é a torcida do Flamengo que grita
“burro, burro”, nunca vi disso. O radinho me conta, mas eu mesmo vejo o
time dos caras entrar em desânimo, ficar dando balão na área, mas no
íntimo sabem que a guerra foi perdida. O Flamengo sem afobação, como
esses garotos cresceram, esse tal de Aldair, esse goleiro altão, esses
Guto, Vinícius, todos correndo como loucos, mas de forma ordenada,
pensada. Compacto, o time arma o assalto final, eu já entro em contagem
regressiva, tenho certeza do título, o clima já é de título, agora é o
radinho que parece preocupado, mas vem uma jogadinha pela esquerda, bola
pra Bebeeeeeto, e é goooooool, é o golpe final, o tiro de misericórdia,
acabou! Não, não acabou ainda, o time toca a bola, e toca, e toca, e
toca pra o loirinho Júlio César, que chuta errado, bola fraquiiiinha, e é
gooooool, frangaço-aço-aço de Acácio, é dois a zero, é campeão, é hino,
é festa, o Rio é Flamengo de novo, vai acordar mais brilhante, mais
bonito, mais feliz.
Extenuado
e rouco, enfim me recosto em alguma cadeira. O radinho, agora falando
mais baixo, segue cantando e gozando o rival. Já entorpecido, concluo
que basta, o campeão vai dormir. Dou um tapinha amistoso nas costas do
meu amigo, e antes de desligá-lo, ainda concluo, “é, meu caro, ganhamos
de novo.”
E durmo o melhor dos sonos. O sono dos vitoriosos.