domingo, 27 de janeiro de 2013

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos.
É com grande satisfação que inicio minha trajetória como colunista no Buteco, buscando contar um pouco da nossa rica história flamenga. E, uma vez que estamos em plena disputa de Estadual, aí vai um desses momentos. Boa leitura.

* * *

O inesperado inverno de títulos chega ao terceiro ano. Eu nunca havia atravessado tanto tempo sem ver o Mengão levantar ao menos uma taça regional ou nacional, e a coisa está atravessada, incomoda. Mas esse ano não é possível. Há Zico, há Sócrates, e Adílio, e Leandro, e Bebeto, e Mozer, e…

Não, não tem televisão. Futebol na tevê é só em decisão ou jogo do Brasil. Vai ter que ser você de novo, olho pro meu radinho amigo, já companheiro de várias jornadas. O Carioca vai começar, e já tem Fla-Flu pra arrebentar, e o radinho vai me contando o menosprezo do adversário tricampeão, a empáfia. “Ih, tão chamando o Zico de bichado”, gralha meu amigo com sua voz metálica. É como se me estivessem insultando. Certeza que tem volta, penso.

Mas meu amigo logo começa a cantar uma canção mais agradável, uma melodia macia, uma sinfonia, um concerto. O radinho comenta “o Zico está arrebentando, jogando demais”, e o que se segue é um recital. Zico correu, apontou, atirou, entroooou… o radinho vai narrando gols em refrão, o “bichado” mete três gols nos caras, é o regente da espetacular goleada de 4×1, fazendo a torcida tricolor engolir o coro a seco, com areia. Enlouquecido, agora eu danço com o radinho nas mãos, não disse, não disse? Esse ano não tem pra ninguém.

Mas amigo sempre fala a verdade, não esconde nada, e meu radinho agora me fala que os ídolos se foram, vão pra Copa, pro México, e outros se lesionam, e outros vivem crises, e agora só resta a garotada. O Fluminense faz água, apanha igual judas, e o rival vai ser o Vasco, cujo comandante é um garoto de nome estranho, um tal Romeiro, Romero, não, nada disso, Romário é o nome do sujeito. Mete gol a rodo. E chegamos empatados na última rodada, a primeira final, Taça Guanabara.

O rádio me conta que o Maraca tá entupido, ouço o barulho, mas o cara de nome esquisito faz um, logo depois o grito “Flamengo empatou, é gol”, salto, berro, mas o rádio, sério, chega pra mim e manda “você vai ter que ser forte, o juiz anulou”, perco as forças, me encolho e ainda vejo o tal de nome diferente fazer outro. A primeira batalha está perdida. O radinho quer balbuciar algo, mas eu lhe mando calar. Não quero papo.

Segunda parte da luta, clássico com o Botafogo, o radinho me fala “o Flamengo tá bem, o Flamengo tá ganhando”, mas o rival vira no último minuto, parece ser o fim de tudo, o fim da festa. “Flamengo tá fora”, o radinho cospe as “análises” dos “especialistas”. Aquilo é demais. Tenho ganas de arremessá-lo à parede, mas o desligo e o guardo num canto. A briga é feia, quase sai porrada.

Mas nenhuma briga é eterna até que soe novamente o apito. E lá estamos nós de novo, olhando meio torto um pro outro, verdade, mas tamo lá, e o time vai ganhando dos pequenos, se recusando a morrer, aparece um tal de Ailton, dizem que ele arrumou o time, e a Copa acaba, e os craques voltam, quer dizer, Sócrates empenado e Zico ainda com o joelho ruim. O Galinho ainda joga umas duas ou três, mas logo sai de cena, justo num Fla-Flu. Os tricolores gritam “bichado”, e aí o Mengão mete-lhes um gol pra deixarem de ser folgados. Outro pau no tricampeão, e o Flamengo de volta à briga. Mas sem os craques. É, meu caro, vai ter que ser com a garotada mesmo. O radinho zumbe, preocupado.

Vem a final da Taça Rio, de novo com o Vasco. Meu caro radinho, vê se me conta coisa boa dessa vez. Agora não tem jeito, se ganhar é taça, se perder é rua, eliminação. O jogo começa elétrico e o Flamengo vai logo marcando, e o Vasco vai logo empatando. O rádio não pisca, eu transpiro, o jogo pode ir pra qualquer lado, e o tempo passa, e a coisa não define, mas é tudo ou nada, e o radinho fala “parece que é nada”, porque Dinamite vira. Vai terminar tudo, mais um ano. Mas dessa vez eu não desisto, começo a berrar “Mengôôôô” na orelha do radinho, ele se anima, “o Flamengo está em cima, encurralando”, “o gol vai sair a qualquer momento”, e é pêêênalti!, já estou sem unhas, a camisa já foi embora há muito tempo, e prendo a respiração, “Bebeto bateu fraquiiiinho, e é goooooool!”, é o empate de novo, e o jogo tá acabando, “para tudo, confusão”, o Vasco arma uma choradeira, reclama do pênalti, eu penso, porra, nem perderam o jogo e já começou o mimimi, Dinamite é expulso, e o Flamengo vai pra cima, vai pra dentro, vai pro meio, e vem um ataque veloz, como correm esses meninos, e chutou, Acácio largou, chegou Júlio Céééééésar…. entrooooou, é gooooool!, é gol, porra, e é campeão, ganhamos o segundo turno. Radinho, se eu fosse mais velho eu pagava uma cerveja pra você. Mas não preciso de cerveja, já estou bêbado e falando um monte de besteira com o radinho.

Ainda tem as finais, de novo com o Vasco, Flamengo com um ponto de vantagem. Pode empatar três. Mas o radinho avisa, “o ataque dos caras é poderoso, só ganha de muito”, “o Vasco é favorito”, nunca vi favorito com desvantagem, enfim.
Agora tem tevê, mas reluto e recuso largar meu amigo. Aparelho no mudo, o radinho segue me narrando, e agora ele me conta uma história tensa, dois jogos truncados, parados na porrada, árbitros que trancam os jogos, goleiros sem ser ameaçados, torcidas gritando marmelada, marmelada (pra ter os três jogos, creem), e penso que tem que ser com sofrimento, tudo no Flamengo é com sofrimento, e os dois jogos passam semanas, uma eternidade que simplesmente não se esvai. Porra, radinho, que luta!
Parece filme, mas se é filme vai ter a hora do clímax, e chega o domingo, de hoje não passa, durmo na véspera o sono mal dormido do garoto ansioso, chega a hora, o Maracanã tá belíssimo, ué, Vasco de preto, bom presságio, eles normalmente perdem quando vêm de preto, mas começa o jogo e o Vasco parece ter mais ânsia, vem com tudo, o Flamengo fecha-se em sua retranca, é cercado, o gol dos caras quase sai, primeiro tempo termina, Flamengo mal chuta a gol. Falo ao radinho, que porra é essa, é o pior jogo, o meu amigo concorda, mas parece confiante. Tranquilizo.

Ninguém entende nada, o radinho parece rir, o letreiro anuncia, sai Geovani, o melhor jogador dos caras, Lopes tira o sujeito, põe um atacante e desmonta seu time. Agora é o Flamengo que domina, que vai pra cima, que controla o jogo, que não é mais ameaçado, que ameaça. Mais um pouco e Lopes tira o tal de Romário, aí é a torcida do Flamengo que grita “burro, burro”, nunca vi disso. O radinho me conta, mas eu mesmo vejo o time dos caras entrar em desânimo, ficar dando balão na área, mas no íntimo sabem que a guerra foi perdida. O Flamengo sem afobação, como esses garotos cresceram, esse tal de Aldair, esse goleiro altão, esses Guto, Vinícius, todos correndo como loucos, mas de forma ordenada, pensada. Compacto, o time arma o assalto final, eu já entro em contagem regressiva, tenho certeza do título, o clima já é de título, agora é o radinho que parece preocupado, mas vem uma jogadinha pela esquerda, bola pra Bebeeeeeto, e é goooooool, é o golpe final, o tiro de misericórdia, acabou! Não, não acabou ainda, o time toca a bola, e toca, e toca, e toca pra o loirinho Júlio César, que chuta errado, bola fraquiiiinha, e é gooooool, frangaço-aço-aço de Acácio, é dois a zero, é campeão, é hino, é festa, o Rio é Flamengo de novo, vai acordar mais brilhante, mais bonito, mais feliz.

Extenuado e rouco, enfim me recosto em alguma cadeira. O radinho, agora falando mais baixo, segue cantando e gozando o rival. Já entorpecido, concluo que basta, o campeão vai dormir. Dou um tapinha amistoso nas costas do meu amigo, e antes de desligá-lo, ainda concluo, “é, meu caro, ganhamos de novo.”

E durmo o melhor dos sonos. O sono dos vitoriosos.