segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Remando Contra a Maré (E o Fio de Esperança)

Cena do filme The Perfect Storm (Warner Bros, 2000)
A embarcação Andrea Gail, de Gloucester (Massachussets),
tenta em vão atravessar um vagalhão de proporções bíblicas, durante
a Halloween/Gale Storm, ocorrida em 1991 na Costa Leste dos Estados Unidos
 

Salve, Buteco! Na tarde de ontem, domingo, assisti a um divertido jogo da FA Cup, o qual o modestíssimo galês Newport County, 10º colocado da 4ª Divisão inglesa, recebeu o mítico Manchester United com Casemiro, Bruno Fernandes e Antony em campo. Os Red Devils abriram e ampliaram o placar nos primeiros 13 minutos, logrando notável êxito naquela pressão inicial típica do futebol de hoje, cada vez mais globalizado e taticamente padronizado. Parecia, então, que a goleada viria naturalmente.

Pois bem. Depois dos vinte minutos, a pressão vermelha foi se esvaindo e a equipe anfitriã começou a "sair pro jogo", tanto que, no final do primeiro tempo, num tiro de longa distância, descontou e desceu para o vestiário com a honra lavada. Na volta do intervalo, o dublê de fazendeiro e artilheiro Willian Evans simplesmente igualou o placar e incendiou a partida. Naquele instante, o céu era o limite para a população de cerca de 160.000 (cento e sessenta mil) habitantes daquela simpática comunidade galesa.

Sim, vocês leram bem: fazendeiro. Com 26 (vinte e seis) anos de idade, Will Evans foi "descoberto" há cerca de 2 anos e convidado para iniciar a carreira como futebolista profissional, deixando então de trabalhar na fazenda de seu pai. Naquela altura da partida, a modesta equipe galesa "endurecia o jogo" contra um gigante mundial, terminando a partida perdendo por 2x4, mas finalizando nada menos do que 17 (dezessete) vezes (!!!) contra a meta adversária (7 para o gol, 5 para fora e 5 travados, informa o Sofascore).

Se eu pudesse escolher um jogo para definir o futebol dos dias de hoje, seria esse.

Vejam bem, no frigir dos ovos, o investimento e a tradição (peso da camisa) do Manchester United prevaleceram, mas durante uma boa parte do jogo tudo isso simplesmente "foi pro caralho", usando uma gíria atualmente muito popular pelas bandas do meu Rio de Janeiro. O jogo foi jogado, parelho, e em sua maior parte as três divisões e o investimento que separam o Gigante do modestíssimo anfitrião despareceram.

No futebol atual, ter dinheiro não basta, pois a tática "socializou" a disputa. Investir em jogadores individualmente melhores não é o suficiente, pois eles precisam funcionar coletivamente e, para tanto, é preciso ter um treinador que faça sistema e jogadores funcionarem em harmonia. E para ter um treinador que supere os seus adversários nessa dinâmica, é preciso ter dirigentes que entendam do riscado e possam dialogar (em alto nível) com o treinador (além de escolhê-lo bem), fiscalizando-o (no bom sentido) e investindo bem os recursos, formando um ciclo positivo.

Não me assusto com os sustos levados nos dois jogos do grupo principal contra adversários da Major Soccer League - Philadelphia Union e Orlando City. Nada é mais moderno do que adversários teoricamente mais fracos superarem-se no jogo coletivo e profissionalmente darem trabalho para um adversário teoricamente mais rico e com muito mais qualidade. Ainda mais se tratando de americanos e seu notório profissionalismo metodológico em absolutamente tudo o que fazem.

Não posso me surpreender se o meu clube rema contra a maré (mundial) e contrata com base em escolhas idiossincráticas de seu dublê de vereador e vice-presidente de futebol (amador), baseadas no seu trânsito com agentes de jogadores e com os próprios atletas. Não que isso (o trânsito) seja defeito; é que não deveria ser a diretriz principal das escolhas para contratações e, portanto, um efetivo problema.

***

O tema da hora é a dificuldade do "jogo sem a bola" do Flamengo, ora traduzida pela recomposição lenta, ora por erros manifestos de posicionamento do nosso sistema defensivo. Assistimos a ambos os problemas cumprimentarem a torcida pela primeira vez neste 2024, no jogo contra o Orlando City, no sábado.

Problemas esses dos quais já somos íntimos, é bom lembrar, já que existem desde a reta final de 2022, porém foram negados por razões estritamente emocionais, já que boa parte da torcida e da mídia supostamente profissional confunde a objetividade existencial do fato com uma fictícia e imaginária depreciação do trabalho do Dorival (O Maioral).

Ora, tão objetiva quanto a perda de competitividade (especialmente na parte defensiva) do time de 2022, naquela reta final, é a conquista de ambas as copas, mérito eterno e incontestável do atual treinador da Seleção Brasileira.

Esse tipo de rinha xenofóbica e ufanista (já que se mistura com os delírios de competitividade da Seleção Brasileira) permitiu que os treinadores estrangeiros fossem massacrados (especialmente Sampaoli) e usados como perfeitos bodes expiatórios para a irresponsabilidade do planejamento do Departamento de Futebol, assim como para a falta de comprometimento do elenco. E assim se fez o "inesquecível" 2023 do Flamengo.

Mas voltando ao tema das dificuldades defensivas do time, se a vitória sobre o Philadelphia Union não animou, o empate com o Orlando City assustou, é bem verdade. O elenco ainda tem boas individualidades, mas ao mesmo tempo é desequilibrado e, do ponto de vista sistêmico, um desafio à harmonia tática.

Apesar de tudo isso, sugiro que vocês ainda não percam a esperança em uma melhora sob o comando de Tite. É um bom momento para lembrar um trecho do post Entre a Crítica e a Autofagiaque escrevi em setembro/2020:

"Nesse início de trabalho de Domènec Torrent no Flamengo, um dos problemas que salta aos olhos é a dificuldade do sistema defensivo para conter situações de gol adversárias. A partir dessa incontestável premissa, porém, começa a surgir uma narrativa que, os mais serenos e atentos perceberão, serve justamente ao discurso de ódio anti-Flamengo ao qual me referi no início do texto. Essa narrativa nasce da inevitável, porém em algumas situações distorcida e precipitada comparação do sistema defensivo atual com o do treinador anterior, Jorge Jesus. O primeiro erro (em alguns casos, proposital) da comparação é atribuir à defesa do mítico e já legendário time de 2019 o dom da invulnerabilidade, pois a estratégia de marcar com as linhas altas pressionando a saída de bola adversária implica, inafastavelmente e independentemente do desenho tático, expor-se ao risco do contra-ataque adversário.

Podemos citar vários exemplos de lances nos quais o mítico time de 2019 esteve a um ombro ou uma fração de segundos de ter um lance de impedimento validado contra si, assim como de lances válidos nos quais esteve perto de tomar o gol, o que não aconteceu por imperícia do ataque adversário ou mesmo mérito do nosso goleiro. 

No primeiro caso, podemos citar a correta e milimétrica marcação de impedimento de Willian Bigode aos 2'15" do primeiro tempo no histórico e inesquecível Flamengo 3x0 Palmeiras, que marcou a demissão de Luiz Felipe Scolari, campeão brasileiro em 2018, do comando da equipe palestrina. 

No segundo caso, escolhi duas partidas as quais assisti no estádio e cuja elasticidade do placar não deve esconder dificuldades efetivamente vivenciadas na prática.

Nos 3x0 sobre o Avaí no Mané Garrincha, já com 1x0 no placar, o time catarinense por pouco não empatou em uma perigosa sucessão de ataques entre os 14 e 16 minutos, em lances construídos a partir das nossas duas laterais. No primeiro deles, a zaga afastou a bola após uma perigosa infiltração pelo setor direito da nossa grande área, enquanto no segundo o reflexo de Diego Alves nos salvou de uma finalização na pequena área, "cara a cara", após um centro a meia altura da nossa lateral esquerda. Na etapa final ainda houve uma bola na trave e pelo menos dois contra-ataques muito perigosos dos catarinenses, também pelo setor esquerdo da nossa defesa.

Já nos 4x1 sobre o Vasco da Gama, também no Mané Garrincha, convido os Amigos a se recordarem da quantidade de perigosíssimos contra-ataques cruzmaltinos enquanto o placar ainda marcava 0x0, novamente tendo por destaque uma defesa à queima-roupa de Diego Alves, bem como, na segunda etapa, dos dois pênaltis cedidos ao adversário, ambos defendidos pelo nosso goleiro, e ainda do gol de cabeça que sofremos."

Pode-se dizer que Domènec Torrent não é o exemplo ideal e que o time de Jorge Jesus é o extremo oposto, inalcançável diante do estado do elenco que Tite recebeu, mas ao mesmo tempo estamos falando de um treinador competente, experiente e vencedor, cujo currículo fala por si próprio.

Além disso, o próprio time de Jorge Jesus veio a se acertar com o tempo e não custa lembrar que o futebol de hoje, ao qual tanto me refiro, incorporou em âmbito global  conceitos como pressão com linhas altas, contra-pressão (pressão pós-perda), "elementos de ataque posicional" (no mínimo), construção de jogo a partir da zaga, passes verticais "quebra-linhas", etc. Então, a rigor, hoje em dia é raro um time passar incólume de sustos defensivos durante 90 minutos.

Vejam outro exemplo, de ontem, no ex-Twitter:


O Mari, poucos torcedores lembram, FALHA GROTESCAMENTE no fim do jogo na linha lateral perto do meio campo na frente do Nico Lopes que engole ele na velocidade e perde um gol inacreditável na marca do pênalti. O time 2019 também teve sorte. Amém.
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Felipe Foureaux
@FoureauxFla
O @FalsoNove2 sabe demais. Explica porque o Gerson parecia um leão com JJ e porque parece preguiçoso agora. Mari e Rodrigo Caio confiavam demais no combate. Mari, por exemplo, era pouco veloz. Então, na minha opinião, é Ortiz e Pereira, encurtando o campo. twitter.com/centralarraxca…

O que quero dizer é que ainda existe um fio de esperança e ele está em Adenor Leonardo Bacchi, o Tite, e sua capacidade de conquistar um elenco. A missão é dura, mas quem sabe ele não consegue um meio termo competitivo entre seus antecessores estrangeiros e o mítico Flamengo de 2019, de Jorge Jesus?

No frigir dos ovos, só nos resta torcer para que o Clube de Regatas do Flamengo não se torne o Andrea Gail na No-Name Storm ou Halloween Gale Storm de 1991, na Costa Leste dos Estados Unidos.

Agarremo-nos, então, ao nosso fio de esperança.

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A palavra está com vocês.

Bom dia e SRN a tod@s.