sexta-feira, 19 de maio de 2023

Alfarrábios do Melo

O lance parece simples. E é.

O Flamengo vai vencendo o Serrano por 1-0 no Maracanã em atuação burocrática, pela estreia do Segundo Turno do Estadual de 1981. Lá pelas tantas, num contragolpe uma bola é lançada para o ponta Gilberto, da equipe de Petrópolis, mas o jovem zagueiro Mozer antevê o movimento e se antecipa ao atacante. Mas Mozer, ao invés de fazer o simples, nega-se a recuar a bola para Cantarele e tenta executar o drible em Gilberto. Erra, perde a bola e por pouco o rubro-negro não sofre o empate.

Pouco depois, já com o placar apontando 2-0 (que seria o definitivo), novo ataque petropolitano, nova intervenção de Mozer, novo erro, novo quase gol. Do banco de reservas, o veterano treinador Dino Sani esbraveja: Basta!

Quando a placa sobe, um cabisbaixo Mozer deixa o gramado dando lugar ao experiente Rondinelli. Mais tarde, após longa sessão de esporro, o jogador segue mantendo sua visão do ocorrido: “eu não quis enfeitar, sempre jogo sério. Vi uma solução, tentei fazer e errei. Acontece. Tenho que trabalhar mais, só isso”.

No dia seguinte, mais desdobramentos. Dino Sani anuncia que Mozer está barrado, e o novo titular é Rondinelli. “Vai ser bom para ele. Eu tenho uma responsabilidade enorme na formação desses jogadores novos, e é importante esse tipo de lição para amadurecer”. Para quem não acompanha o dia a dia da Gávea, o incidente com Mozer parece ser apenas mais um caso banal e isolado em uma relação entre treinador e seus comandados.

Mas será a gota d’água.

Até então, o trabalho de Dino Sani pode ser considerado de razoável para bom. É verdade que Dino não conseguiu levar o Flamengo ao Bicampeonato Brasileiro, em que pese o momento turbulento que encontrou ao assumir o time (elenco cansado e desmotivado, e sem entrosamento pela ausência de titulares que estavam na Seleção), já na reta final da Segunda Fase, o que serviu como atenuante. Também é verdade que, após a frustração no Brasileiro, o time conquistou a Taça Guanabara e largou muito bem na Libertadores, arrancando um heroico empate com o Atlético-MG que calou o Mineirão (2-2 após sair perdendo por dois gols) e goleando o Cerro Porteño-PAR no Maracanã (5-2). É fato que os números de Dino, após o Brasileiro, são muito bons, com apenas uma derrota em jogos oficiais. E Dino, contratado pela sua larga experiência na disputa da Libertadores (decorrente de sua carreira na América do Sul, como jogador e treinador), parece de fato ser o nome mais adequado para a disputa continental, que mostra conhecer com profundidade.

No entanto, a despeito dos bons resultados, pesa contra Dino a sensação de que o time parece estar rendendo menos do que pode. As atuações costumam ser apáticas, burocráticas, com o time normalmente jogando apenas “pro gasto”, mostrando-se competitivo apenas nos momentos realmente decisivos. Não é raro o rubro-negro sair vaiado de campo, mesmo após construir placares expressivos. E há a relação com o elenco.

Embora seja respeitado e ouvido pelas principais lideranças e pelo plantel de um modo geral, que aprecia a forma sincera e honesta com que se relaciona, a capacidade que Dino demonstra para arrumar confusões e amplificar problemas aparentemente simples incomoda e preocupa. Com efeito, uma divergência entre o posicionamento mais adequado para Adílio chegou a causar o afastamento do jogador do elenco. Também houve incidentes com os dois goleiros. Quase se incompatibilizou com Raul, ao não aceitar a sistemática extravagante do veterano arqueiro, avesso a treinos regulares. Após barrar Raul, também reclamou publicamente do desempenho de Cantarele, com quem trocou farpas. Aplicou pesada multa a Andrade, por uma firula num treino. E admoestou Leandro, também em público, mandando-o “aprender a cruzar”. Tudo isso em cerca de três meses de trabalho. E agora, a questão com Mozer. E ainda vai piorar.

Já durante os preparativos para o difícil confronto com o Olimpia-PAR (que mantém a base da equipe campeã mundial e da seleção paraguaia vencedora da Copa América, ambos dois anos antes) no Maracanã, pela Libertadores, Dino Sani surpreende e, dizendo ter “pensado melhor”, desfaz a barração de Mozer, devolvendo a reserva para Rondinelli. Enfurecido, o Deus da Raça cogita deixar o Flamengo: “não posso ser desrespeitado dessa forma. Tenho um nome e um currículo que construí aqui, e acho que mereço mais consideração”.

Enquanto o Flamengo ferve, não é muito diferente o ambiente em um dos rivais. Com efeito, o Fluminense vai amargando duro choque de realidade, que mostra de forma crua as limitações de seu plantel. A conquista do Estadual de 1980 havia suscitado delírios de grandeza e metas como a conquista do Brasileiro no ano seguinte. A eliminação para o Vasco, nas Oitavas-de-Final, após uma campanha medíocre em que o tricolor acumulou derrotas vergonhosas para equipes como River-PI e Ferroviário-CE (algumas por goleada), seguida pela inacreditável OITAVA colocação na Taça Guanabara recém terminada, acendeu na Diretoria das Laranjeiras a necessidade de agir. No entanto, a situação do treinador Nelsinho Rosa divide os dirigentes. Uma ala defende a demissão sumária do técnico, que entendem ter encerrado o ciclo. Outros preferem prestigiar o profissional que, ao fim e ao cabo, foi o principal responsável pela quebra de um jejum de títulos que já durava quatro anos. Pressionado, o Presidente opta por uma solução intermediária: manter Nelsinho, mas contratar um Diretor-Técnico para “supervisionar” o trabalho do treinador, como uma espécie de interlocução com a Diretoria.

Nelsinho percebe a armadilha e pede demissão, em caráter irrevogável.

Véspera da partida contra o Olimpia e o ruído não para nas dependências da Gávea. Os jornais seguem explorando a trapalhada com Mozer e Rondinelli, e alguns jogadores sobem um pouco o tom. De nada adiantam os panos quentes que alguns líderes tentam colocar. Uma espécie de descontentamento latente antes represado parece brotar espontaneamente. A Diretoria, entendendo o risco, sempre existente, de exploração política do caso (até porque Dino Sani é muito próximo de um ex-Dirigente, agora incompatibilizado com a Administração), resolve agendar uma reunião para a noite. E, após horas de considerações, ponderações e “vejam bem”, decide tomar uma decisão tão arriscada quanto, aparentemente, precipitada.

Dino Sani é demitido.

Seja pelo acúmulo de incidentes com os jogadores (“um patrimônio do clube que vem sendo desvalorizado”), seja pelo futebol ainda não convincente (apesar dos bons resultados), seja pela necessidade de dar uma resposta à crise, a Diretoria decide dispensar o treinador, que é comunicado na manhã do jogo contra os paraguaios. Estranhamente, alguns membros da comissão técnica já sabiam do ocorrido, o que intriga jornalistas e parte do elenco. De qualquer forma, Dino reúne o elenco e se despede dos jogadores. Parte deles se mostra indiferente, mas a maioria parece genuinamente desapontada com a saída do treinador. Zico, um que não entende a demissão, ainda pontua: “Pô Professor, e a gente tá ganhando jogo e taça. Imagine se estivesse perdendo...”

Para substituir Dino, a Diretoria nomeia como interino o auxiliar Paulo César Carpegiani, que vem fazendo uma espécie de estágio na Gávea desde que pendurou as chuteiras, cerca de um mês antes. Mas o substituto já está escolhido e inclusive já foi convidado, uma escolha que fortalece os rumores de que a Diretoria teria precipitado a demissão de Dino para aproveitar uma “oportunidade de mercado”.

Porque, na mesma noite em que se decide demitir Dino Sani, o telefone de Nelsinho Rosa toca. Do outro lado da linha, um convite do Flamengo.

Nelsinho possui longa ligação com o rubro-negro. Jogador revelado pelo Madureira, chegou ao Flamengo no início dos anos 1960, fazendo sua estreia em 1962. Quase sempre como titular, conquistou os Campeonatos Cariocas de 1963 e 1965, formando uma dupla inesquecível no meio-campo com Carlinhos, o Violino, que por anos funcionou como ponto de equilíbrio de um time não tão vistoso, mas sempre competitivo. Após abandonar a carreira (atuou pelo Flamengo até 1968), passou a se dedicar à carreira de treinador, assumindo o Fluminense em 1979. À frente do tricolor, surpreendeu com seu excepcional trabalho, que transformou um time extremamente limitado em uma equipe aguerrida e difícil de ser vencida, fazendo um ótimo Brasileiro e se sagrando Campeão Estadual em 1980, numa jornada em que superou os favoritos Flamengo e Vasco. A passagem nas Laranjeiras alça Nelsinho ao status de um dos principais nomes em ascensão no futebol brasileiro, e chegar a um clube como o Flamengo parece um caminho natural na continuidade de sua carreira.

Mas há uma questão. Apesar de receber com entusiasmo o convite rubro-negro, Nelsinho ainda precisa lidar com uma proposta do futebol do Qatar, que já está em sua mesa desde que se desvinculou do Fluminense. O treinador reluta, teme que sua família não se adapte ao Oriente Médio. Ficar no Rio, e ainda mais em um clube que conhece, nesse sentido parece ser o ideal. Mas a diferença salarial não pode deixar de ser considerada.

E Nelsinho pede alguns dias para se decidir.

Enquanto a Diretoria do Flamengo dá a Nelsinho o tempo pedido, o time, já sob Carpegiani e com Rondinelli escalado, pena para conseguir um suado empate no Maracanã contra o Olimpia, por 1-1, num jogo em que até sai na frente, mas cede a igualdade numa falha de Cantarele e, pior, perde de forma recorrente o controle das ações, correndo sério risco de ser derrotado, o que seria um desastre numa chave forte em que só se classifica uma equipe.

O mau resultado não muda os planos do clube, que segue aguardando o prazo pedido por Nelsinho. O Presidente avisa que, em caso de recusa, Carpegiani será efetivado e o Flamengo seguirá seu caminho. É uma nova opção audaciosa, que busca reeditar a experiência com Coutinho, que, ao assumir o Flamengo em 1976, praticamente não reunia trabalhos como treinador em seu currículo. De qualquer forma, Carpegiani segue preparando a equipe para o confronto seguinte, em Volta Redonda, pelo Estadual.

Chega o dia combinado e a hora combinada. E, como combinado, toca o telefone do Presidente do Flamengo. Que é informado de que a proposta irrecusável do Qatar (salário VINTE vezes maior) não será recusada. E que, infelizmente, a relação entre Flamengo e Nelsinho terá que esperar por outra oportunidade.

Assim, Nelsinho Rosa não será o treinador do Flamengo.

* * *

Sob o comando de Carpegiani, o Flamengo se torna multicampeão entre 1981 e 1982, numa trajetória que somente se encerra no início de 1983, após desgaste na duradoura relação. Mozer se torna titular da equipe, enquanto Rondinelli, após séria lesão no tornozelo, é negociado com o Corinthians, ainda na temporada de 1981. Dino Sani, alguns meses após a demissão do Flamengo, assume o Fluminense, clube pelo qual termina a temporada.

Quanto a Nelsinho, após retornar do Oriente Médio, o treinador volta a conquistar o Estadual pelo Fluminense, dessa vez em 1985, e chega ao ápice da carreira quando conquista o Brasileiro de 1989, comandando o Vasco. Embora sempre demonstre carinho e respeito pelo Flamengo, jamais trabalha como treinador do rubro-negro, por puro desencontro de trajetórias. Em 1993, assume o cargo de coordenador-técnico, trabalhando juntamente com Carlinhos, seu velho parceiro, numa experiência breve que termina quando o Violino é demitido. Nelsinho, mesmo diante do forte apoio da torcida e de grande insistência da Diretoria, recusa-se a assumir o posto de treinador e “tomar o lugar” do amigo.

Esta semana, Nelsinho Rosa passa, definitivamente, a fazer parte da rica memória do futebol carioca e brasileiro. Que vá em paz.