O lance parece simples. E é.
O Flamengo vai vencendo o Serrano
por 1-0 no Maracanã em atuação burocrática, pela estreia do Segundo Turno do
Estadual de 1981. Lá pelas tantas, num contragolpe uma bola é lançada para o ponta
Gilberto, da equipe de Petrópolis, mas o jovem zagueiro Mozer antevê o movimento
e se antecipa ao atacante. Mas Mozer, ao invés de fazer o simples, nega-se a
recuar a bola para Cantarele e tenta executar o drible em Gilberto. Erra, perde
a bola e por pouco o rubro-negro não sofre o empate.
Pouco depois, já com o placar apontando
2-0 (que seria o definitivo), novo ataque petropolitano, nova intervenção de
Mozer, novo erro, novo quase gol. Do banco de reservas, o veterano treinador
Dino Sani esbraveja: Basta!
Quando a placa sobe, um
cabisbaixo Mozer deixa o gramado dando lugar ao experiente Rondinelli. Mais tarde,
após longa sessão de esporro, o jogador segue mantendo sua visão do ocorrido: “eu
não quis enfeitar, sempre jogo sério. Vi uma solução, tentei fazer e errei.
Acontece. Tenho que trabalhar mais, só isso”.
No dia seguinte, mais
desdobramentos. Dino Sani anuncia que Mozer está barrado, e o novo titular é
Rondinelli. “Vai ser bom para ele. Eu tenho uma responsabilidade enorme na
formação desses jogadores novos, e é importante esse tipo de lição para amadurecer”.
Para quem não acompanha o dia a dia da Gávea, o incidente com Mozer parece ser
apenas mais um caso banal e isolado em uma relação entre treinador e seus comandados.
Mas será a gota d’água.
Até então, o trabalho de Dino Sani
pode ser considerado de razoável para bom. É verdade que Dino não conseguiu
levar o Flamengo ao Bicampeonato Brasileiro, em que pese o momento turbulento
que encontrou ao assumir o time (elenco cansado e desmotivado, e sem
entrosamento pela ausência de titulares que estavam na Seleção), já na reta
final da Segunda Fase, o que serviu como atenuante. Também é verdade que, após
a frustração no Brasileiro, o time conquistou a Taça Guanabara e largou muito bem
na Libertadores, arrancando um heroico empate com o Atlético-MG que calou o Mineirão
(2-2 após sair perdendo por dois gols) e goleando o Cerro Porteño-PAR no
Maracanã (5-2). É fato que os números de Dino, após o Brasileiro, são muito
bons, com apenas uma derrota em jogos oficiais. E Dino, contratado pela sua
larga experiência na disputa da Libertadores (decorrente de sua carreira na América
do Sul, como jogador e treinador), parece de fato ser o nome mais adequado para
a disputa continental, que mostra conhecer com profundidade.
No entanto, a despeito dos bons resultados,
pesa contra Dino a sensação de que o time parece estar rendendo menos do que
pode. As atuações costumam ser apáticas, burocráticas, com o time normalmente
jogando apenas “pro gasto”, mostrando-se competitivo apenas nos momentos realmente
decisivos. Não é raro o rubro-negro sair vaiado de campo, mesmo após construir
placares expressivos. E há a relação com o elenco.
Embora seja respeitado e ouvido
pelas principais lideranças e pelo plantel de um modo geral, que aprecia a
forma sincera e honesta com que se relaciona, a capacidade que Dino demonstra para
arrumar confusões e amplificar problemas aparentemente simples incomoda e
preocupa. Com efeito, uma divergência entre o posicionamento mais adequado para
Adílio chegou a causar o afastamento do jogador do elenco. Também houve incidentes
com os dois goleiros. Quase se incompatibilizou com Raul, ao não aceitar a
sistemática extravagante do veterano arqueiro, avesso a treinos regulares. Após
barrar Raul, também reclamou publicamente do desempenho de Cantarele, com quem
trocou farpas. Aplicou pesada multa a Andrade, por uma firula num treino. E
admoestou Leandro, também em público, mandando-o “aprender a cruzar”. Tudo isso
em cerca de três meses de trabalho. E agora, a questão com Mozer. E ainda vai
piorar.
Já durante os preparativos para o
difícil confronto com o Olimpia-PAR (que mantém a base da equipe campeã mundial
e da seleção paraguaia vencedora da Copa América, ambos dois anos antes) no
Maracanã, pela Libertadores, Dino Sani surpreende e, dizendo ter “pensado
melhor”, desfaz a barração de Mozer, devolvendo a reserva para Rondinelli.
Enfurecido, o Deus da Raça cogita deixar o Flamengo: “não posso ser desrespeitado
dessa forma. Tenho um nome e um currículo que construí aqui, e acho que mereço
mais consideração”.
Enquanto o Flamengo ferve, não é
muito diferente o ambiente em um dos rivais. Com efeito, o Fluminense vai
amargando duro choque de realidade, que mostra de forma crua as limitações de
seu plantel. A conquista do Estadual de 1980 havia suscitado delírios de
grandeza e metas como a conquista do Brasileiro no ano seguinte. A eliminação
para o Vasco, nas Oitavas-de-Final, após uma campanha medíocre em que o
tricolor acumulou derrotas vergonhosas para equipes como River-PI e
Ferroviário-CE (algumas por goleada), seguida pela inacreditável OITAVA
colocação na Taça Guanabara recém terminada, acendeu na Diretoria das
Laranjeiras a necessidade de agir. No entanto, a situação do treinador Nelsinho
Rosa divide os dirigentes. Uma ala defende a demissão sumária do técnico, que
entendem ter encerrado o ciclo. Outros preferem prestigiar o profissional que,
ao fim e ao cabo, foi o principal responsável pela quebra de um jejum de
títulos que já durava quatro anos. Pressionado, o Presidente opta por uma
solução intermediária: manter Nelsinho, mas contratar um Diretor-Técnico para “supervisionar”
o trabalho do treinador, como uma espécie de interlocução com a Diretoria.
Nelsinho percebe a armadilha e
pede demissão, em caráter irrevogável.
Véspera da partida contra o
Olimpia e o ruído não para nas dependências da Gávea. Os jornais seguem explorando
a trapalhada com Mozer e Rondinelli, e alguns jogadores sobem um pouco o tom. De
nada adiantam os panos quentes que alguns líderes tentam colocar. Uma espécie
de descontentamento latente antes represado parece brotar espontaneamente. A
Diretoria, entendendo o risco, sempre existente, de exploração política do caso
(até porque Dino Sani é muito próximo de um ex-Dirigente, agora incompatibilizado
com a Administração), resolve agendar uma reunião para a noite. E, após horas
de considerações, ponderações e “vejam bem”, decide tomar uma decisão tão
arriscada quanto, aparentemente, precipitada.
Dino Sani é demitido.
Seja pelo acúmulo de incidentes
com os jogadores (“um patrimônio do clube que vem sendo desvalorizado”), seja
pelo futebol ainda não convincente (apesar dos bons resultados), seja pela
necessidade de dar uma resposta à crise, a Diretoria decide dispensar o
treinador, que é comunicado na manhã do jogo contra os paraguaios.
Estranhamente, alguns membros da comissão técnica já sabiam do ocorrido, o que
intriga jornalistas e parte do elenco. De qualquer forma, Dino reúne o elenco e
se despede dos jogadores. Parte deles se mostra indiferente, mas a maioria
parece genuinamente desapontada com a saída do treinador. Zico, um que não
entende a demissão, ainda pontua: “Pô Professor, e a gente tá ganhando jogo e
taça. Imagine se estivesse perdendo...”
Para substituir Dino, a Diretoria
nomeia como interino o auxiliar Paulo César Carpegiani, que vem fazendo uma
espécie de estágio na Gávea desde que pendurou as chuteiras, cerca de um mês
antes. Mas o substituto já está escolhido e inclusive já foi convidado, uma
escolha que fortalece os rumores de que a Diretoria teria precipitado a
demissão de Dino para aproveitar uma “oportunidade de mercado”.
Porque, na mesma noite em que se
decide demitir Dino Sani, o telefone de Nelsinho Rosa toca. Do outro lado da
linha, um convite do Flamengo.
Nelsinho possui longa ligação com
o rubro-negro. Jogador revelado pelo Madureira, chegou ao Flamengo no início
dos anos 1960, fazendo sua estreia em 1962. Quase sempre como titular,
conquistou os Campeonatos Cariocas de 1963 e 1965, formando uma dupla
inesquecível no meio-campo com Carlinhos, o Violino, que por anos funcionou
como ponto de equilíbrio de um time não tão vistoso, mas sempre competitivo.
Após abandonar a carreira (atuou pelo Flamengo até 1968), passou a se dedicar à
carreira de treinador, assumindo o Fluminense em 1979. À frente do tricolor,
surpreendeu com seu excepcional trabalho, que transformou um time extremamente
limitado em uma equipe aguerrida e difícil de ser vencida, fazendo um ótimo
Brasileiro e se sagrando Campeão Estadual em 1980, numa jornada em que superou
os favoritos Flamengo e Vasco. A passagem nas Laranjeiras alça Nelsinho ao
status de um dos principais nomes em ascensão no futebol brasileiro, e chegar a
um clube como o Flamengo parece um caminho natural na continuidade de sua carreira.
Mas há uma questão. Apesar de
receber com entusiasmo o convite rubro-negro, Nelsinho ainda precisa lidar com
uma proposta do futebol do Qatar, que já está em sua mesa desde que se desvinculou
do Fluminense. O treinador reluta, teme que sua família não se adapte ao
Oriente Médio. Ficar no Rio, e ainda mais em um clube que conhece, nesse
sentido parece ser o ideal. Mas a diferença salarial não pode deixar de ser
considerada.
E Nelsinho pede alguns dias para
se decidir.
Enquanto a Diretoria do Flamengo
dá a Nelsinho o tempo pedido, o time, já sob Carpegiani e com Rondinelli
escalado, pena para conseguir um suado empate no Maracanã contra o Olimpia, por
1-1, num jogo em que até sai na frente, mas cede a igualdade numa falha de Cantarele
e, pior, perde de forma recorrente o controle das ações, correndo sério risco
de ser derrotado, o que seria um desastre numa chave forte em que só se
classifica uma equipe.
O mau resultado não muda os
planos do clube, que segue aguardando o prazo pedido por Nelsinho. O Presidente
avisa que, em caso de recusa, Carpegiani será efetivado e o Flamengo seguirá
seu caminho. É uma nova opção audaciosa, que busca reeditar a experiência com
Coutinho, que, ao assumir o Flamengo em 1976, praticamente não reunia trabalhos
como treinador em seu currículo. De qualquer forma, Carpegiani segue preparando
a equipe para o confronto seguinte, em Volta Redonda, pelo Estadual.
Chega o dia combinado e a hora
combinada. E, como combinado, toca o telefone do Presidente do Flamengo. Que é
informado de que a proposta irrecusável do Qatar (salário VINTE vezes maior) não
será recusada. E que, infelizmente, a relação entre Flamengo e Nelsinho terá
que esperar por outra oportunidade.
Assim, Nelsinho Rosa não será o
treinador do Flamengo.
* * *
Sob o comando de Carpegiani, o
Flamengo se torna multicampeão entre 1981 e 1982, numa trajetória que somente
se encerra no início de 1983, após desgaste na duradoura relação. Mozer se torna titular da equipe, enquanto Rondinelli, após séria lesão no tornozelo, é negociado com o Corinthians, ainda na temporada de 1981. Dino Sani, alguns meses após a demissão do Flamengo, assume o Fluminense, clube pelo qual termina a temporada.
Quanto a Nelsinho, após retornar
do Oriente Médio, o treinador volta a conquistar o Estadual pelo Fluminense,
dessa vez em 1985, e chega ao ápice da carreira quando conquista o Brasileiro
de 1989, comandando o Vasco. Embora sempre demonstre carinho e respeito pelo
Flamengo, jamais trabalha como treinador do rubro-negro, por puro desencontro
de trajetórias. Em 1993, assume o cargo de coordenador-técnico, trabalhando
juntamente com Carlinhos, seu velho parceiro, numa experiência breve que
termina quando o Violino é demitido. Nelsinho, mesmo diante do forte apoio da
torcida e de grande insistência da Diretoria, recusa-se a assumir o posto de
treinador e “tomar o lugar” do amigo.
Esta semana, Nelsinho Rosa passa,
definitivamente, a fazer parte da rica memória do futebol carioca e brasileiro.
Que vá em paz.