sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Alfarrábios do Melo

Começa em Cuiabá.

Em continuidade à sua excursão pelo Centro-Norte do país, o Flamengo desembarca na capital matogrossense para um aguardado amistoso contra o Mixto local, o penúltimo jogo antes da estreia no Brasileiro de 1980.

Nas negociações que precedem o acerto do jogo, os organizadores “recomendam enfaticamente” que o rubro-negro coloque em campo o jovem atacante Gerson Lopes, joia da terra que o Flamengo trouxe do Operário-MT, e que certamente será um dos chamarizes do evento. Alertado pela Diretoria, o treinador Cláudio Coutinho escala o garoto, não sem antes avisar o titular Cláudio Adão do arranjo.

O problema é que Gerson Lopes arrebenta.

O Flamengo arrasa os nativos com impiedosos 7-1. Junto aos quase protocolares quatro gols marcados por Zico, o destaque é o garoto do Mato Grosso, que anota os outros três tentos rubro-negros. Mais, traz ao Flamengo uma movimentação e uma leveza que enchem os olhos de Coutinho, sempre adepto de um futebol móvel e dinâmico. Em contraponto ao posicionamento estático e convencional de Cláudio Adão, o jovem Gerson Lopes faz o ataque flamengo flutuar em campo. A exibição do rapaz é tão vistosa que Coutinho, ao contrário do planejado, somente o tira de campo faltando cinco minutos para o final, nitidamente para receber os aplausos de um público embevecido.

Terminado o passeio no Mato Grosso, um irritado Cláudio Adão declara-se “desrespeitado”, por ter atuado tão pouco tempo. “Era melhor nem ter ido”, irrita-se. É bem verdade que, a despeito de sua técnica diferenciada e de seu indiscutível faro goleador, Adão está longe de ser o atacante dos sonhos de Coutinho, com quem vive relação de altos e baixos, especialmente porque o treinador gostaria de contar com um centroavante mais “moderno” e disciplinado taticamente, algo que julga Adão ser incapaz de entregar.

Para o amistoso seguinte, contra o Atlético/MG no Mineirão, Coutinho pensa em retornar com Cláudio Adão. Mas, no desembarque no Rio, Adão se queixa de “dores no tornozelo”, enquanto segue reclamando do que ocorreu em Cuiabá. Irritado, Coutinho o corta da viagem a Minas, confirmando que dará nova chance a Gerson Lopes: “ainda é jovem, mas vamos ver como se comporta em um duelo mais difícil”.

Mas em Belo Horizonte a realidade se impõe. Gerson Lopes não vê a bola no violento amistoso em que o time local, buscando devolver os humilhantes 5-1 do ano anterior, “abre a caixa de ferramentas” e joga partida como se de campeonato fosse. Mas Coutinho encontra outra solução interessante, após sair em desvantagem de dois gols, improvisando Tita como “falso-nove”. A gambiarra funciona, e o rubro-negro por pouco não empata a partida. Terminado o duelo, Coutinho anuncia que Tita é o novo titular da Camisa 9 do Flamengo.

O rompimento com Cláudio Adão se torna, portanto, definitivo.

A questão é que, sem Adão, o Flamengo dispõe apenas de Gerson Lopes para a posição de centroavante no elenco. O clube acabou de se livrar de Beijoca, que caiu em desgraça após esmurrar um palmeirense na fatídica derrota da eliminação do Brasileiro de 1979, devolvendo-o ao Bahia. Ademais, Luizinho segue emprestado ao Al-Nassr da Arábia Saudita e só voltará no segundo semestre (ostentando novo apelido, Luizinho “das Arábias”). Assim, torna-se evidente a necessidade de trazer algum nome mais forte para a posição.

E, de quebra, dar uma merecida resposta a um rival.

A recém-eleita Diretoria do Vasco já assume tomando uma atitude corajosa. Vende seu melhor jogador, o atacante Roberto Dinamite, ao Barcelona-ESP, por US$ 900 mil, quantia tida como irrecusável. O clube pensa em utilizar o dinheiro para renovar seu elenco, buscando formar uma nova base capaz de tentar interromper a supremacia do Flamengo no futebol carioca, cravada com um tricampeonato em que o rubro-negro não perde nenhum dos sete turnos em disputa. Traz, como primeiro reforço, o meia Carlos Alberto Pintinho, destaque do Fluminense de Horta. E conversa ostensivamente com Tita, sabendo da sua conhecida insatisfação em atuar fora de sua posição. O Vasco chega a apresentar uma proposta ao jogador, o que irrita a Diretoria do Flamengo, que promete retaliar de forma “enérgica, agressiva e dolorosa”. Poucos realmente levam a arenga a sério. “Palavras ao vento, jogando para a torcida”, diz-se.

Mas não vai demorar para o discurso se transformar numa bomba.

Roberto Dinamite é recebido com festa em Barcelona. Contratado para substituir o austríaco Krankl, que entrou em rota de colisão com o treinador Joaquim Rifé, Dinamite chega à Catalunha credenciado por seu desempenho na Copa de 1978. E o início é animador. Em sua estreia, o brasileiro marca os dois gols na vitória sobre o Almería por 2-0, no Camp Nou. Mas, na partida seguinte, contra o Zaragoza (outro triunfo por 2-0), Roberto perde um pênalti. A partir daí, suas atuações começam a se tornar opacas, tragadas pela péssima fase do clube culé. Roberto ainda marca outro gol, de pênalti, nas Finais da Supercopa da Europa, mas não evita a perda do título para o Nottingham Forest-ING. A inapelável eliminação na Copa do Rei (levando 3-0 do Real Sociedad) e uma sequência de sete jogos que tira dos “blaugranas” a chance do título espanhol acendem pesada crise, cuja gota d’água é a eliminação da Copa dos Campeões da Europa (hoje Champions League), após duas derrotas para o Valencia de Kempes. Joaquim Rifé é demitido, assumindo o argentino Helenio Herrera, que acena com vasta reformulação no plantel. A começar por Roberto Dinamite, que julga “pesado e lento” para o futebol espanhol.

A aparentemente estranha decisão de abrir mão de um jogador trazido a peso de ouro apenas dois meses antes está imersa em um contexto mais amplo, onde um clube politicamente em chamas vive verdadeira guerra de facções. A ideia de contratar Roberto (que está ocupando uma das únicas duas vagas disponíveis para estrangeiros) encontrou fortíssima resistência em várias alas do clube, mas a Diretoria, assim mesmo, resolveu bancar. No entanto, o brasileiro, em cujos ombros foi colocada a obrigação de reerguer um time limitado e desunido (“virá ganhando muito bem para isso”), evidentemente não conseguiu se impor. Com os desastrosos resultados e a entrada de um treinador alinhado com um dos grupos políticos que mais se opuseram à contratação, o fim da efêmera passagem de Roberto Dinamite pelo Barcelona está decretado.

Vai começar a confusão.

Atento ao que acontece na Espanha, o Flamengo entra em contato com Roberto, oferecendo-lhe a possibilidade de voltar ao Brasil. O atacante se entusiasma com a iniciativa e autoriza o rubro-negro a seguir com as tratativas. A Diretoria flamenga, assim, recebe do Barcelona a informação de que haverá negócio se os espanhóis receberem o mesmo valor que desembolsaram na compra, incluindo aí impostos, taxas e despesas diversas. O Flamengo acha salgado e sabe que não tem como fechar nessas condições, mas vai insistir no negócio assim mesmo.

A notícia do interesse flamengo em Roberto é recebida inicialmente com desdém. “Estão visivelmente criando uma notícia para dar o troco daquele negócio do Tita”, o senso comum aponta. Mas os descrentes, especialmente os vascaínos, veem a galhofa se transformar em apreensão quando o Flamengo faz embarcar o Presidente e o Vice de Finanças a Barcelona, para negociar diretamente com os catalães a transferência.

Na Espanha, a negociação parece se arrastar. O Flamengo quer fechar pela metade do preço pago, enquanto os catalães admitem conceder um abatimento de US$ 200 mil. O rubro-negro faz contas, imagina utilizar créditos a receber decorrentes de cotas de amistosos já fechados na Europa, além da venda de Cláudio Adão e de mais um ou dois jogadores, mas ainda assim a transação parece arriscada demais. Mas, contando com a vontade de Roberto e do Barcelona, o rubro-negro vai ganhando tempo. E capitalizando o assunto nos jornais, que deitam e rolam com a perspectiva da montagem de um supertime pelo Flamengo.

Enquanto o negócio vai se desenvolvendo, o Flamengo se previne de um eventual fiasco e acerta uma contratação bem mais simples. Vai ao Monterrey-MEX e consegue, pelo valor de US$ 40 mil, o empréstimo de Nunes por seis meses, com passe fixado em US$ 380 mil. Nunes, velho conhecido do Flamengo, por onde jogou nas divisões de base, vem de trajetórias bem sucedidas por Santa Cruz e Fluminense, chegando à Seleção Brasileira e por pouco não tendo disputado o Mundial de 1978. A despeito do temperamento reconhecidamente difícil, Nunes é um centroavante de alto nível, com plenas condições de pleitear a vaga de titular do Flamengo.

Com a confirmação de Nunes, o Flamengo endurece a negociação com o Barcelona e começa a sinalizar que irá desistir do negócio. Mas, quando a delegação rubro-negra já prepara o retorno ao Rio, os catalães, numa reviravolta surpreendente, aceitam reduzir o valor do passe de Roberto para US$ 600 mil, aproximando-se bastante da proposta do Flamengo. O rubro-negro aceita retomar as negociações, e a rodada final é marcada para o Rio de Janeiro, já para finalizar os procedimentos da venda. O rubro-negro, inclusive, envia a Roberto a minuta do contrato que o fará ser um dos jogadores mais bem pagos do país.

Enquanto Nunes chega e, discretamente, começa seus treinamentos, o Flamengo busca resolver a situação de Cláudio Adão. Tenta vendê-lo ao futebol grego, mas o jogador não aceita. O jeito é emprestá-lo ao Botafogo por três meses, enquanto busca uma oportunidade mais concreta de fazer um negócio mais vantajoso.

A iminência da compra de Roberto faz, enfim, acender a luz vermelha em São Januário. A Diretoria vascaína já vive momento de turbulência, pois o time (agora reforçado por Jorge Mendonça, que vem ocupar a vaga que “seria de Tita”) não engrena e acumula resultados ruins, tornando difícil a manutenção de Orlando Fantoni no cargo de treinador. Irritada com a perspectiva da perda de seu maior ídolo para o rival, a torcida cruzmaltina pressiona fortemente os dirigentes que, no entanto, alegam dispor de um trunfo que será usado na hora certa.

E é quando o Vice-Presidente Financeiro do Barcelona desembarca no Brasil que o Vasco assume a ofensiva. Tudo gira em torno do fato de que os catalães ainda devem ao cruzmaltino a quantia de US$ 775 mil, referentes à venda de Roberto aos blaugranas. Sem a quitação desse valor, o Vasco se recusa a dar o termo de liberação definitiva do passe do jogador. Sabendo que, antes de fechar a venda ao Flamengo, o Barcelona precisa se reunir com o Vasco para acertar o distrato do negócio entre ambos, a Diretoria vascaína já sabe como agir.

A proposta dos vascaínos é simples. O Vasco abre mão da dívida e o Barcelona devolve o atleta. É um arranjo que atrai os espanhóis, pois minimiza o prejuízo (o Flamengo pagará bem menos) e sua execução é mais simples e barata, pois envolve menos impostos e taxas. Assim, após longa reunião que atravessa a madrugada, o representante catalão é convencido. Resta comunicar ao Flamengo. E isso é feito de uma forma nada sutil.

No dia “D” anunciado para o fechamento da venda de Roberto ao Flamengo, estoura outra bomba. O Barcelona agora exige do Flamengo uma garantia bancária no valor de U$$ 400 mil para fechar o negócio, num prazo de 24 horas. Sabendo ser impossível atender a exigência culé, o Presidente do Flamengo rapidamente entende o que aconteceu. Recusa-se a sequer tentar buscar essa garantia, alega ter sido “traído” pelo Barcelona (“acertamos outra coisa com o Presidente deles”), ainda faz barulho por alguns dias, mas a rigor não insiste mais.

O caminho fica aberto para o Vasco, mas o negócio ainda demora alguns dias para ser fechado, por um motivo inusitado. É que Roberto, ainda na Espanha, não quer conversar com o Vasco, pois já havia dado a palavra ao Flamengo, clube que o procurou primeiro. Somente após muita conversa e persuasão, o atacante enfim aceita fechar o contrato com os vascaínos, nos mesmos termos (vultosos termos, aliás) que assinaria com o Flamengo.

Assim, na tarde de 30 de março de 1980, enquanto Cláudio Adão faz sua primeira partida pelo Botafogo, em atuação discreta no empate em 0-0 contra o Joinville em Marechal Hermes, Roberto Dinamite é reapresentado com grande festa em São Januário, antes do Vasco golear o Gama-DF por 5-1. E Nunes faz boa estreia pelo Flamengo, anotando um gol e uma assistência no empate em 2-2 com a Ponte Preta, no Maracanã.

Ainda não se sabe, mas Coutinho acaba de encontrar a peça que faltava ao ataque.

* * *

Roberto estreou de forma espetacular, marcando os cinco gols da vitória do Vasco por 5-2 contra o Corinthians no Maracanã, já pela Segunda Fase do Brasileiro. Permaneceu no cruzmaltino até 1992, saindo apenas por curtos períodos de empréstimo para Portuguesa (1989) e Campo Grande (1991). Durante o tempo que defendeu o Vasco, sempre se mostrou um adversário respeitado, qualificado, competitivo e muito difícil de derrotar, sem jamais perder a lealdade e o espírito esportivo que fazia com que os embates entre Flamengo e Vasco fossem duelos entre adversários, nunca inimigos.

Que Roberto descanse em paz.