sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Alfarrábios do Melo

Tempestade perfeita, terra arrasada, caos, destruição.

Qualquer termo apocalíptico pode ser utilizado, sem a mais tênue nesga de exagero, para se referir ao momento que o Flamengo vive neste setembro de 1983, ainda na esteira da venda do maior jogador de sua história, ocorrida três meses antes.

Jogadores tomados por uma desmotivação quase melancólica se arrastando em campo, derrotas humilhantes levando à renúncia de dirigentes e mesmo do Presidente, uma torcida incrédula e revoltada chegando a agredir alguns atletas, tudo isso culminando em um inacreditável sexto lugar ao final da Taça Guanabara, a pior colocação do rubro-negro em anos.

A cereja do bolo é a devastadora goleada sofrida para o Bangu (2-6), que acende, dentro das hostes flamengas, a necessidade e a urgência de se dar um basta àquilo. Afinal, Zico se foi e o clube, que ainda ostenta um dos melhores elencos do país (talvez o melhor), está com os cofres abarrotados. Nada justifica essa letargia que já se arrastou por tempo demais. Hora de olhar para frente.

No intervalo entre os dois turnos, o Flamengo põe em prática seu plano de contingência. Primeiro, vai ao mercado e fecha um pacote de reforços. Em uma operação triangular com Grêmio e Palmeiras, traz Tita de volta do empréstimo aos gaúchos (seis meses antes) e recebe emprestado o talentoso meia Cleo, cedendo o contestado atacante Baltazar ao clube paulista. Do Guarani chega o veloz ponta-direita Lúcio. Mantendo a política de investir em jovens valores, contrata o zagueiro Guto e o lateral-direito Heitor, destaques na Seleção Brasileira Campeã Mundial Sub-20 no México. Um revés é o zagueiro Leiz, da Portuguesa, que chega a ser anunciado mas na última hora o clube paulista desiste da venda.

A busca por um centroavante é mais complicada. Os esforços convergem para a tentativa de contratação de Reinaldo, do Atlético-MG, sonho antigo do Flamengo e do jogador. Os mineiros (com quem o Flamengo tem boa relação, ao contrário do que se acredita) são receptivos à negociação, mas não abrem mão de uma troca por Adílio, o que esfria o negócio. Com efeito, o craque da Cruzada viveu, no Brasileiro, o seu melhor momento na carreira, convertendo-se em um dos principais nomes da campanha do tricampeonato. Sua saída está, pois, fora de questão.

Descartado Reinaldo, o Flamengo esquadrinha outros nomes: tenta o retorno de Nunes (em transação semelhante à de Tita, mas o Botafogo, a quem o atacante está emprestado, nega-se a devolvê-lo antes do fim do contrato), sonda o jovem Chicão, da Ponte Preta, chega a pensar em Careca, do São Paulo, mas acaba trazendo Edmar, do Cruzeiro, e repatriando um velho conhecido, Claudio Adão, emprestado pelo Al Ain, dos Emirados Árabes.

Com o elenco mais que reforçado, o clube parte para a definição do treinador, que precisa ser um nome mais sólido que o do interino José Roberto Francalacci. A primeira tentativa é Edu Antunes, mas o irmão de Zico prefere seguir no América, onde desfruta de prestígio e desenvolve ótimo trabalho. Outro nome é Carlos Alberto Parreira, treinador da Seleção Brasileira. Porém, Parreira está em plena disputa da Copa América, o que o manterá em dedicação exclusiva até outubro. Nenhum outro nome empolga, salvo um. Um treinador relativamente jovem, mas que se demonstrou capaz de montar um time competitivo “do zero”, dando resultado a curto prazo. Alguém enérgico e capaz de trazer novas ideias e renovar um ambiente condicionado por práticas que remontam à década passada. Sim, o Flamengo tem o nome. Um nome que demandará do clube ousadia, coragem e desprendimento.

Porque o rubro-negro terá que tomá-lo de um rival.

Claudio Garcia, um meia esforçado quando jogador do Fluminense, foi contratado pelo tricolor no início do ano como treinador, para construir um time barato e competitivo, num momento de grave crise, ainda na ressaca pós-Horta. O clube chegou a alugar as Laranjeiras para um circo, buscando alguns trocados, e se discutiu seriamente a possibilidade de desativar o time de futebol, tal o medo de apequenamento. Nesse contexto, Garcia precisou se virar com escassa matéria-prima e, a despeito da campanha modesta no Brasileiro (eliminado na Segunda Fase em um grupo com Goiás, Náutico e Rio Negro), conseguiu revelar alguns jogadores interessantes, casos de Branco e Ricardo Gomes, que se juntaram a uma base onde figuravam Paulo Vitor, Delei, Duílio e o jovem Paulinho, destaque da Seleção Sub-20.

No Estadual, com as chegadas de Assis e Washington, que trouxeram poderio ofensivo, Garcia conseguiu formar um time enjoado, aguerrido e extremamente disciplinado taticamente, que soube aproveitar a instabilidade dos favoritos Flamengo e Vasco (este, ainda patinando na transição entre gerações) e assegurou, de forma invicta, o título da Taça Guanabara, ao derrotar por 2-0 o América de Edu. O trabalho de Claudio Garcia, ao final da partida, é exaltado como o melhor em um clube carioca desde, talvez, o que Coutinho fizera no Flamengo no final dos anos 70.

Pois é justamente Claudio Garcia o alvo do Flamengo.

As primeiras conversas começam na reta final da Taça Guanabara, prontamente rejeitadas. Mas o Flamengo elogia, corteja, seduz, acena com vantagens que, aos poucos, vão amolecendo o jovem treinador. Alguns rumores chegam a vazar, mas não a ponto de serem levados a sério. Mas a insistência do Flamengo incomoda os tricolores, que vão aos jornais anunciar, de forma taxativa: “Garcia fica e seguirá conosco até o final do contrato”. Nos festejos que se seguem à conquista da Taça Guanabara, um tenso Garcia manifesta aos líderes do elenco que, em princípio, pretende seguir no Fluminense. Sem muita convicção.

A bomba estoura na segunda-feira, dia seguinte à Final da GB. Após reunião com a Diretoria do Fluminense, Claudio Garcia comunica que aceitou a proposta e será o novo Treinador do Flamengo.

Os dirigentes das Laranjeiras espumam de ódio. “Traidor, mercenário, vendido”, são adjetivos que ribombam pelas paredes do clube com assustadora banalidade. Os jogadores do elenco se recusam a se despedir de Garcia, perplexos com a “ingratidão” do treinador que, paradoxalmente, foi o responsável por conferir uma relevância de que o Fluminense não desfrutava há pelo menos três anos.

Garcia, embora ainda aturdido, justifica sua decisão com uma sinceridade que acirra ainda mais os ânimos tricolores: “resolvi aceitar a proposta porque sei que é uma oportunidade única de ascensão profissional. No Flamengo terei a chance de disputar e ganhar competições internacionais e alavancar minha carreira. Afinal, trata-se de um clube maior, com jogadores melhores e incomparável repercussão. Se não aceitasse, passaria o resto da vida arrependido de ter fechado essa porta.”

O episódio acende acalorado debate no cenário esportivo carioca. Alguns condenam o treinador e o Flamengo, que em sua visão deveria “ter consultado e se entendido com o Fluminense antes de procurar Garcia”. No entanto, outros ponderam: “e por acaso a Udinese consultou o Flamengo quando lhe tirou o Zico?”, “e se o Fluminense, no returno, perde três seguidas e mandam o Claudio embora, como é prática normal no nosso futebol? Aí está tudo certo?”

Como esperado, o Fluminense emite raivosa nota oficial comunicando ter “rompido relações” com o Flamengo, em decorrência do que denomina “falta de ética” do rubro-negro por ter “aliciado um profissional sob contrato”. Avisa ainda que tomará as medidas necessárias para salvaguardar os interesses do clube, entre outras diatribes.

Para o lugar de Claudio Garcia, o Fluminense decide fazer uma proposta a José Luiz Carbone, Treinador do Goytacaz. Carbone aceita e dirigirá o tricolor até o final do ano.

O Flamengo dispõe de dez dias de preparação para a Taça Rio, período em que, após acordo com a CBF, utiliza as instalações da Granja Comary, em Teresópolis. Ocasião em que Claudio Garcia poderá conhecer o plantel, os dirigentes e se ambientar com a realidade de um clube do tamanho do Flamengo. De qualquer forma, Garcia pontua que, independente do alto nível dos jogadores, baseará seu trabalho na busca de um time combativo, solidário e disposto ao sacrifício e à disciplina que são inerentes aos times vencedores no futebol atual. Fará chegar ao fim a abordagem mais romântica de um “futebol-arte” que precisa de maior competitividade.

O Flamengo precisa de novos paradigmas.

Claudio Garcia permaneceu no cargo por nove meses, sendo demitido após a eliminação nas Quartas de Final do Brasileiro-1984, deixando o Flamengo classificado para as Semifinais da Libertadores, tendo emplacado a melhor campanha da Primeira Fase. No tempo em que esteve na Gávea, iniciou um processo de renovação que promoveu o aproveitamento de jovens como Bebeto, Heider, Bigu, Adalberto e Guto, entre outros, num processo que o fez, muitas vezes, colidir com dirigentes e jogadores como Nunes e João Paulo. Mesmo com turbulências, tentou fazer o Flamengo migrar de um estilo de jogo mais técnico e cadenciado para um futebol mais intenso e veloz, obtendo certo êxito. Conquistou a Taça Rio-1983.

Foi substituído por Zagalo, que manteve a busca por uma equipe de índole mais competitiva e menos "artística".