Nada parece indicar qualquer
atrativo invulgar no encontro entre Flamengo e Madureira, marcado para a tarde
de 19 de setembro de 1970, no acanhado estádio da AA Portuguesa, na Ilha do
Governador, pela última rodada do Turno Final do Campeonato Carioca.
Com efeito, a competição já está
decidida desde a rodada anterior, quando o Vasco, ao derrotar o Botafogo por
2-1, rompeu um jejum de 12 anos e voltou a ganhar o título máximo da cidade. O
cenário esportivo do Rio de Janeiro repercute e reverbera o “jogo das faixas”,
que será realizado no domingo, entre o cruzmaltino e o Fluminense.
O Flamengo até inicia bem a
temporada. No embalo da contratação do rigoroso treinador Yustrich, conquista
de forma inapelável o Torneio Internacional de Verão, ao derrotar a Seleção da
Romênia (4-1), o Independiente-ARG (6-1) e o Vasco (2-0), e, após extenuantes
três meses, ganha a Taça Guanabara, cacifando-se como favorito ao título do
Carioca.
Mas o rubro-negro não resiste às
limitações técnicas do plantel e ao acentuado desgaste que sempre acompanha os
trabalhos de Yustrich, tanto no aspecto físico (o treinador, que acumula a
função de fisicultor – “o organograma sou eu”, diz - exige o máximo de
intensidade em treinos e jogos, o que estoura os jogadores) como no emocional
(de temperamento difícil, o “Homão” acumula discussões e rusgas com atletas,
jornalistas e mesmo torcedores), e naufraga na competição. Não vence nenhum
clássico e termina o Carioca de forma melancólica, disputando a quinta
colocação com o emergente Olaria.
Para complicar, na semana
seguinte terá início a Taça de Prata, competição que contará com as principais
equipes do país. A necessidade de reforços é evidente, mas o Flamengo, até
aqui, somente consegue confirmar as chegadas dos desconhecidos Milton e Celso,
procedentes do modesto Valeriodoce-MG, ambos indicados por Yustrich. O
controverso treinador, aliás, já começa a ser questionado pela imprensa e por
parte da Diretoria, que entende que talvez seu prazo de validade já tenha
vencido. Mas o Presidente resolve prestigiar o Homão, acreditando que o time,
se repetir as atuações do início do ano, possui, sim, chances de ser
protagonista e até de vencer a competição nacional.
Mas antes há um jogo obscuro na
Ilha para fechar o Carioca.
Com vários jogadores no
Departamento Médico ou risco iminente de lesão (Dionísio, Arílson, Liminha,
Paulo Henrique e Murilo), Yustrich escala um time misto para enfrentar o
Madureira, sétimo e penúltimo colocado do Turno Final. Dá mais uma chance a
Doval, com quem não tem boa relação e, sempre sem freios na língua, avisa que
escalará Adãozinho no lugar de Liminha “porque não tenho outro para colocar”
(no fim, desiste e acaba improvisando Rodrigues Neto no meio). Também resolve
trocar o goleiro. No lugar do titular Sidnei, entra Ubirajara Alcântara, e,
sempre ríspido, justifica a opção: “preciso ver se esse rapaz tem condições de
permanecer no plantel”.
Avisado pelo médico, que receia
novas lesões, especialmente tendo em vista a estreia na Taça de Prata dali a
uma semana, Yustrich não comanda o tradicional coletivo apronto da véspera dos
jogos (normalmente disputado como se fosse à vera), trocando a atividade por
uma preleção que vira uma palestra de duas horas, uma arenga onde enaltece o
“espírito de luta e a dedicação” mostradas pelos jogadores ao longo da
temporada, entre outras pregações.
A tarde é ensolarada, mas a
temperatura agradável. Mesmo assim, pouco mais de mil testemunhas se dispõem a
acompanhar o desanimado cotejo, em que o Flamengo joga para não perder a quinta
colocação, o que seria humilhante, e o Madureira tenta repetir a façanha de
poucos dias antes, quando derrotou o Botafogo, comprometendo seriamente o
alvinegro em sua briga pelo título.
E, para surpresa de ninguém, o
jogo começa duro. De ver. De doer os olhos. Uma pelada daquelas rutilantes,
rurais, refinadas de tão toscas. O Flamengo não consegue trocar três passes
certos, sofre com a marcação alvoroçada do adversário, apela para chutões,
ligação direta, bicudas a esmo, invariavelmente em vão. Apenas o talentoso
volante Zanata mostra alguma lucidez mas, sozinho, não consegue organizar o
time. O Madureira, por sua vez, aceita sua inferioridade e se entrincheira
distribuindo transpiração e porrada, guerreando pelo honroso empate.
A coisa segue maltratando os
presentes até perto do final da primeira etapa, quando Rodrigues Neto, num raro
espasmo individual, consegue arrancar pela esquerda, entra na área com a bola
e, quando vai finalizar, é derrubado pelo zagueiro Leleu. Pênalti, que Zanata
converte com categoria, deslocando o goleiro. 39 minutos, Flamengo 1-0.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjaOINKeoKhNCCkBV0j9WMrVysg3lFt0lMq6GEfhZyGKRGW-wzhcctQaj-dgA-Qkpj8AG_sIFnnCN_V-zmZ1CW6rkO-JVt0dd7rbsuY3jdC8KBLumrAv4QzZBT6NuLoDICw-pWKf4Lz5Db2VA20jYchHuXmnotIeM598VOATiG4ZizSJwM9S48C6LZ7vw/w267-h179/t1.png)
O segundo tempo não oferece
espetáculo muito melhor. O Madureira até tenta sair um pouco, mas esbarra na
ótima atuação da linha defensiva rubro-negra, comandada por Reyes. O Flamengo,
por sua vez, segue apresentando um jogo que mescla uma notável falta de
recursos técnicos com o desânimo típico e inerente a uma partida desse quilate,
apatia anabolizada pela vantagem no placar. De quando em vez, uma bola isolada,
um cruzamento errado ou uma falta mais dura quebram a monotonia. A rigor, os
espectadores, os jornalistas, a arbitragem e até os jogadores parecem mesmo
ansiar para que esse estorvo acabe logo e a esperada folga do fim de semana
enfim se abra a todos.
É quando o futebol mostra ser
capaz de produzir os momentos mais notáveis justo quando menos se espera.
26 minutos. Onça recua a
Ubirajara, que apanha a bola, vê a movimentação do ponta-direita Nei e manda um
chutão em direção ao atacante. Com o vento, a bicuda ganha força e a bola vai
quicar já na entrada da área adversária. Nei tenta, mas não consegue dominar,
mas o movimento funciona como um “corta-luz” que engana o goleiro Paulo Roberto
e o encobre. Resta ao guarda-redes suburbano observar, atônito, a pelota morrer
no fundo das redes.
O goleiro Ubirajara acaba de
marcar o segundo gol do Flamengo.
Aparvalhado, o arqueiro demora
para entender o que aconteceu, somente recobrando a consciência quando é
soterrado por uma pilha de corpos exultantes e extasiados pelo feito.
Irrequieto, irreverente e com tintas de galã, Ubirajara, goleiro formado pelo
clube ainda sem muitas chances de sequência como titular, enfim vive uma
experiência de protagonista, ainda que por um motivo inusitado.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi55klYGPraisBQnrbZAReRJISksPvVX6sxsEAbDChk_D5Uzk-FYj4DrNylBtluCVvlSEug08VZllvP5OQv89g-9vnkG0cjxDUJ3eyVAfT9oKlG7vgZMcejfc6AysRJnzTRHkpnnHYHqAWANYB_GuutCYAxU1s3_nTdD-tCSI001xhy5PTZixTw5lB3BQ/w200-h168/t4.png)
Como se a função da bocejante
pelada no campo da Lusa seja apenas parir esse momento histórico, nada mais
acontece depois do gol de Ubirajara, e o Flamengo vence mesmo por 2-0,
confirmando o frustrante quinto lugar na tabela. Após o jogo e na
reapresentação do time, hordas de jornalistas procuram o goleiro querendo
detalhes do feito, mas são categoricamente barrados por Yustrich, que o proíbe
de dar entrevistas: “não quero celebridade aqui”. Desapontados e talvez
interpretando a coisa como “máscara” de Ubirajara, os jornais acabam dando ao
lance a alcunha que acabará celebrizada com o passar dos anos. Uma pecha que,
subliminarmente, confere ao goleiro um papel secundário na construção do tento.
O Gol dos Ventos Uivantes.
* * *
O gol histórico é considerado o primeiro marcado por um goleiro no Brasil. E garante a
manutenção de Ubirajara no elenco do Flamengo. Mais do que isso, o goleiro
enfim consegue ganhar a posição, e segue como titular até o ano seguinte. No
início de 1972, com a reformulação no plantel, perde espaço e sai. Ainda atua
por América e Botafogo antes de encerrar a carreira no Itabaiana-SE, em 1982.