sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Alfarrábios do Melo

Nada parece indicar qualquer atrativo invulgar no encontro entre Flamengo e Madureira, marcado para a tarde de 19 de setembro de 1970, no acanhado estádio da AA Portuguesa, na Ilha do Governador, pela última rodada do Turno Final do Campeonato Carioca.

Com efeito, a competição já está decidida desde a rodada anterior, quando o Vasco, ao derrotar o Botafogo por 2-1, rompeu um jejum de 12 anos e voltou a ganhar o título máximo da cidade. O cenário esportivo do Rio de Janeiro repercute e reverbera o “jogo das faixas”, que será realizado no domingo, entre o cruzmaltino e o Fluminense.

O Flamengo até inicia bem a temporada. No embalo da contratação do rigoroso treinador Yustrich, conquista de forma inapelável o Torneio Internacional de Verão, ao derrotar a Seleção da Romênia (4-1), o Independiente-ARG (6-1) e o Vasco (2-0), e, após extenuantes três meses, ganha a Taça Guanabara, cacifando-se como favorito ao título do Carioca.

Mas o rubro-negro não resiste às limitações técnicas do plantel e ao acentuado desgaste que sempre acompanha os trabalhos de Yustrich, tanto no aspecto físico (o treinador, que acumula a função de fisicultor – “o organograma sou eu”, diz - exige o máximo de intensidade em treinos e jogos, o que estoura os jogadores) como no emocional (de temperamento difícil, o “Homão” acumula discussões e rusgas com atletas, jornalistas e mesmo torcedores), e naufraga na competição. Não vence nenhum clássico e termina o Carioca de forma melancólica, disputando a quinta colocação com o emergente Olaria.

Para complicar, na semana seguinte terá início a Taça de Prata, competição que contará com as principais equipes do país. A necessidade de reforços é evidente, mas o Flamengo, até aqui, somente consegue confirmar as chegadas dos desconhecidos Milton e Celso, procedentes do modesto Valeriodoce-MG, ambos indicados por Yustrich. O controverso treinador, aliás, já começa a ser questionado pela imprensa e por parte da Diretoria, que entende que talvez seu prazo de validade já tenha vencido. Mas o Presidente resolve prestigiar o Homão, acreditando que o time, se repetir as atuações do início do ano, possui, sim, chances de ser protagonista e até de vencer a competição nacional.

Mas antes há um jogo obscuro na Ilha para fechar o Carioca.

Com vários jogadores no Departamento Médico ou risco iminente de lesão (Dionísio, Arílson, Liminha, Paulo Henrique e Murilo), Yustrich escala um time misto para enfrentar o Madureira, sétimo e penúltimo colocado do Turno Final. Dá mais uma chance a Doval, com quem não tem boa relação e, sempre sem freios na língua, avisa que escalará Adãozinho no lugar de Liminha “porque não tenho outro para colocar” (no fim, desiste e acaba improvisando Rodrigues Neto no meio). Também resolve trocar o goleiro. No lugar do titular Sidnei, entra Ubirajara Alcântara, e, sempre ríspido, justifica a opção: “preciso ver se esse rapaz tem condições de permanecer no plantel”.

Avisado pelo médico, que receia novas lesões, especialmente tendo em vista a estreia na Taça de Prata dali a uma semana, Yustrich não comanda o tradicional coletivo apronto da véspera dos jogos (normalmente disputado como se fosse à vera), trocando a atividade por uma preleção que vira uma palestra de duas horas, uma arenga onde enaltece o “espírito de luta e a dedicação” mostradas pelos jogadores ao longo da temporada, entre outras pregações.

A tarde é ensolarada, mas a temperatura agradável. Mesmo assim, pouco mais de mil testemunhas se dispõem a acompanhar o desanimado cotejo, em que o Flamengo joga para não perder a quinta colocação, o que seria humilhante, e o Madureira tenta repetir a façanha de poucos dias antes, quando derrotou o Botafogo, comprometendo seriamente o alvinegro em sua briga pelo título.

E, para surpresa de ninguém, o jogo começa duro. De ver. De doer os olhos. Uma pelada daquelas rutilantes, rurais, refinadas de tão toscas. O Flamengo não consegue trocar três passes certos, sofre com a marcação alvoroçada do adversário, apela para chutões, ligação direta, bicudas a esmo, invariavelmente em vão. Apenas o talentoso volante Zanata mostra alguma lucidez mas, sozinho, não consegue organizar o time. O Madureira, por sua vez, aceita sua inferioridade e se entrincheira distribuindo transpiração e porrada, guerreando pelo honroso empate.

A coisa segue maltratando os presentes até perto do final da primeira etapa, quando Rodrigues Neto, num raro espasmo individual, consegue arrancar pela esquerda, entra na área com a bola e, quando vai finalizar, é derrubado pelo zagueiro Leleu. Pênalti, que Zanata converte com categoria, deslocando o goleiro. 39 minutos, Flamengo 1-0.

O segundo tempo não oferece espetáculo muito melhor. O Madureira até tenta sair um pouco, mas esbarra na ótima atuação da linha defensiva rubro-negra, comandada por Reyes. O Flamengo, por sua vez, segue apresentando um jogo que mescla uma notável falta de recursos técnicos com o desânimo típico e inerente a uma partida desse quilate, apatia anabolizada pela vantagem no placar. De quando em vez, uma bola isolada, um cruzamento errado ou uma falta mais dura quebram a monotonia. A rigor, os espectadores, os jornalistas, a arbitragem e até os jogadores parecem mesmo ansiar para que esse estorvo acabe logo e a esperada folga do fim de semana enfim se abra a todos.

É quando o futebol mostra ser capaz de produzir os momentos mais notáveis justo quando menos se espera.

26 minutos. Onça recua a Ubirajara, que apanha a bola, vê a movimentação do ponta-direita Nei e manda um chutão em direção ao atacante. Com o vento, a bicuda ganha força e a bola vai quicar já na entrada da área adversária. Nei tenta, mas não consegue dominar, mas o movimento funciona como um “corta-luz” que engana o goleiro Paulo Roberto e o encobre. Resta ao guarda-redes suburbano observar, atônito, a pelota morrer no fundo das redes.

O goleiro Ubirajara acaba de marcar o segundo gol do Flamengo.

Aparvalhado, o arqueiro demora para entender o que aconteceu, somente recobrando a consciência quando é soterrado por uma pilha de corpos exultantes e extasiados pelo feito. Irrequieto, irreverente e com tintas de galã, Ubirajara, goleiro formado pelo clube ainda sem muitas chances de sequência como titular, enfim vive uma experiência de protagonista, ainda que por um motivo inusitado.

Como se a função da bocejante pelada no campo da Lusa seja apenas parir esse momento histórico, nada mais acontece depois do gol de Ubirajara, e o Flamengo vence mesmo por 2-0, confirmando o frustrante quinto lugar na tabela. Após o jogo e na reapresentação do time, hordas de jornalistas procuram o goleiro querendo detalhes do feito, mas são categoricamente barrados por Yustrich, que o proíbe de dar entrevistas: “não quero celebridade aqui”. Desapontados e talvez interpretando a coisa como “máscara” de Ubirajara, os jornais acabam dando ao lance a alcunha que acabará celebrizada com o passar dos anos. Uma pecha que, subliminarmente, confere ao goleiro um papel secundário na construção do tento.

O Gol dos Ventos Uivantes.

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O gol histórico é considerado o primeiro marcado por um goleiro no Brasil. E garante a manutenção de Ubirajara no elenco do Flamengo. Mais do que isso, o goleiro enfim consegue ganhar a posição, e segue como titular até o ano seguinte. No início de 1972, com a reformulação no plantel, perde espaço e sai. Ainda atua por América e Botafogo antes de encerrar a carreira no Itabaiana-SE, em 1982.