segunda-feira, 23 de maio de 2022

A Fragilidade da Firmeza

Imagem: Thiago Ribeiro/AGIF

Salve, Buteco! Segundo o sítio da Prefeitura de Apodi na Internet, município do Rio Grande do Norte, "Apodi é palavra de origem indígena. Segundo os historiadores do assunto significa coisa firme. Altura unida, um planalto, uma chapada. Seria a Chapada do Apodi à qual os índios davam esta denominação? É provável que sim. A versão acima é do grande historiador Câmara Cascudo, a maior autoridade nos nossos assuntos históricos."

Luiz Diallisson de Souza Alves, nascido em Apodi/RN, usa o nome de sua cidade natal como identidade profissional. Destaca-se por sua incrível velocidade, sempre um tormento para os marcadores adversários. No jogo de sábado, no final dos acréscimos do árbitro ao segundo tempo, graças a sua habilidade de se deslocar em grande velocidade por espaços vazios, recebeu a "bola do jogo" para o Goiás empatar a partida contra o Flamengo. Apodi foi firme como um planalto, ou como a própria chapada, localizada na divisa dos estados do Rio Grande do Norte e do Ceará, que leva o seu nome e o do município, meio que "chapando" a bola com o pé direito e isolando-a por cima do travessão de Hugo. 

Sobrou firmeza a Apodi, mas faltou flexibilidade, aquele molejo que dá efeito às bolas chutadas de média distância, de modo a morrerem no fundo das redes. Curiosamente, a "chapada do Apodi" impediu que as chamas da crise crescessem novamente.

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No post da semana passada, falei que andava faltando o que chamei de "verve firme" de Mister Paulo Sousa. Com certeza não foi por conta do post, mas não é que no dia seguinte ela ressurgiu, quase flamejante, na entrevista coletiva após os 3x0 sobre a Universidad Católica? Declarando o que todo mundo entendeu como um pedido de Diego Alves para jogar, sem passar pelos necessários processos de treino pós-contusão, a firmeza de Mister Paulo causou um incêndio, que só foi contido quando o nosso treinador português precisou ser flexível para, em conjunto com a Vice-Presidência e a Diretoria de Futebol, lidar com o assunto e chegar a um acordo com o inquieto e veterano goleiro, cujo vínculo foi irresponsavelmente renovado antes da chegada do treinador.

O episódio me lembrou uma referência ao não-agir (wu wei) chinês, feita em um dos melhores livros que já tive a oportunidade de ler:

"Na China, o wu wei ou não ação foi comparado aos galhos esguios das árvores que cobertos de neve curvam-se até o chão. Em vez de cederem ao peso que os oprime, cedem à pressão para não se partirem. Depositada junto à raiz, a neve liberta os galhos."¹

Aos nossos olhos, as intempéries que nos fazem ceder na vida na grande maioria das vezes são injustas, como pode ter sido a que fez Mister Paulo recuar para o seu vínculo com o Flamengo não se partir. É sábio não ceder à tentação de se agarrar a uma narrativa, especialmente se não for possível dizer ao certo até que ponto ela expressa a verdade.

Há problemas no Flamengo que antecedem a chegada de Mister Paulo, alguns deles muito antigos, outros que vêm "apenas" desde a pandemia até hoje. A torcida sempre vaiou, politicagem sempre existiu; mas o quanto essas questões são realmente problemas também depende muito da maneira pela qual se lida com elas.

As vaias se dissiparão ao longo de uma sequência de vitórias, que também farão a politicagem ceder espaço, como sempre. São fatores que existem independentemente da vontade e das ações do nosso treinador português, o qual também não possui controle algum sobre quem lhe chefia ou com quem interage (Departamento Médico, por exemplo).

De forma semelhante, a perda de conhecimento científico e a desastrosa "renovação" de funcionários no Departamento de Futebol, assim como a não menos danosa preparação física das duas temporadas anteriores são fatores preexistentes e, portanto, não dependem da vontade e das ações do atual Mister.

O xis da questão é como ele se comporta diante desse contexto.

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Acho que o time do Flamengo faz muito esforço para marcar gols, mas também acho que as causas são múltiplas e não se restringem aos movimentos táticos que o treinador exige dos jogadores, passando sobretudo pelos problemas que acabei de afirmar que preexistem à chegada da atual comissão técnica. Sendo mais explícito, vão desde diagnóstico e tratamento de contusões, passando por transição e preparação física, chegando até mesmo ao extracampo dos atletas.

O melhor do trabalho de Mister Paulo no Flamengo, a meu ver, está na comissão técnica, talvez com a exceção da insistência exageradamente conceitual do preparador de goleiros com Hugo, causando a colisão do conceito com os maus resultados decorrentes das falhas individuais que comprometem o desempenho do time. 

Um bom exemplo do lado bom pode ser dado na recente incorporação à comissão técnica do bioquímico Miguel Cabezas, noticiada pelo jornalista Cahê Mota (@cahemota) neste tuíte, segundo o qual, "Por meio de coletas realizadas pela fisiologia e nutrição, ele faz avaliações do metabolismo dos atletas pela urina, sangue e saliva."

Na mesma linha, não acredito que o "problema físico", apontado por alguns torcedores e até jornalistas, decorra dos profissionais que compõem a comissão técnica, os quais, a meu ver, possuem currículos inquestionáveis. As maiores causas me parecem ser justamente esses problemas preexistentes e, em alguns casos, infelizmente contemporâneos ao trabalho de Mister Paulo, os quais, como visto, escapam ao seu controle.

Por outro lado, há também o que é inato à própria estrutura do futebol brasileiro por conta das características geográficas do país, como muito bem ressaltou o português Alex Brito nesta ótima live da qual participou a convite do jornalista Bernardo Ramos (@bernardoramosal), em seu canal no YouTube (a partir de 32'20'').

Mas voltando ao que escrevi no início desse tópico, desconfio que a exigência tática do modelo de jogo de Mister Paulo seja limitada por todo esse complexo contexto. Não trato essa impressão como verdade absoluta, até porque o tema é muito técnico, mas tenho a convicção de que a proporção entre firmeza e flexibilidade nas decisões do treinador -  equação que, aqui sim, está inteiramente sob o seu controle -, terá grande peso no sucesso do Flamengo sob o seu comando.

Ao final de sua passagem pelo clube, essas decisões dirão muito sobre a própria qualidade de Paulo Sousa como treinador, até porque é mais do que justo cobrá-lo para fazer o melhor em prol do rendimento do elenco que, na pior fase desde a sua montagem, foi entregue ao treinador na condição de vice-campeão brasileiro e da Libertadores, tricampeão carioca e semifinalista da Copa do Brasil. É difícil crer que, de dezembro para cá, tenha se deteriorado tanto, inclusive no aspecto físico e considerando as idades de alguns atletas, a ponto de justificar duas finais perdidas e a pífia campanha no Campeonato Brasileiro.

Aos adeptos da "Teoria da Reestruturação", vale lembrar que, no final do ano, Flamengo e Paulo Sousa poderão romper o vínculo sem o pagamento de multa rescisória. Logo, a ideia de reestruturação, sempre invocada pelos defensores do nosso treinador, só fará sentido se vier acompanhada de resultados.

Ademais, reformulação de elenco são processos independentes entre si, ainda que se relacionem, e o clube precisa sobreviver entre as janelas de transferências internacionais, enquanto a Diretoria não cumpre suas promessas para o treinador (se é que o fará).

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De concreto, agradou-me no último sábado a ideia da escalação que iniciou  partida, a qual pode ser útil em situações que exijam do time reverter desvantagens. Porém, a execução deixou a desejar. Ao longo dos 90 minutos, nos altos e baixos, o Flamengo, preocupantemente, foi aquele time dos jogos contra o Vasco da Gama no Estadual. Muita posse de bola, mas rombudo, com pouca objetividade e cedendo espaços para os contra-ataques do adversário. Inclusive foi assim que Apodi, com sua "chapada", desperdiçou a chance de empate para o Goiás. No final, o resultado veio, mas com sofrimento evitável.

Como não existe bobo no futebol e está óbvia a dificuldade do time contra sistemas defensivos fechados, o Mais Querido ainda enfrentará muito adversários como Vasco de Zé Ricardo e o Goiás de Jair Ventura. Reparem que estou me referindo a treinadores que estão muito longe do prestígio atribuído pelo Flamengo a Mister Paulo quando o contratou.

A fase de Bruno Henrique há tempos não é boa e Vitinho faz falta para o elenco rodar. Há atenuantes, mas a verdade é uma só: o Flamengo precisa jogar mais futebol e melhorar o seu rendimento dentro das quatro linhas, o que, descontados todos os problemas, é de responsabilidade sobretudo do treinador.

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Falando em resultados, a semana desafiará o Mais Querido em dois aspectos. Para começar, o segundo lugar geral da Fase de Grupos da Libertadores muito provavelmente será decidido pelo saldo de gols que Flamengo e River Plate tiverem após seus últimos jogos, como mandantes, respectivamente, contra os peruanos Sporting Cristal e Alianza Lima.

Em segundo lugar, o time que colheu quatro vice-campeonatos de novembro/2021 até abril/2022, dois deles com Mister Paulo, enfrentará o Fluminense, adversário contra o qual perdeu quatro dos últimos cinco confrontos e se encontra sob nova direção. Com estilo oposto ao de Abel Braga, Fernando Diniz desafiará Mister Paulo com outras armas, à exceção do lado mental ou psicológico, presente em todas essas nossas recentes derrotas.

Será que nossos jogadores derreterão mais uma vez diante desse mesmo adversário?

Bom momento para demonstrar competitividade e capacidade de superar adversidades em jogos decisivos, ponto mais fraco desse quase um semestre de Paulo Sousa à frente do Flamengo.

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Bom dia e SRN a tod@s.

1 Borel, Henri; Wu wei, a sabedoria do não-agir, pág. 17, introdução de Luis Carlos Lisboa; 1ª reimpressão; Attar Editorial, São Paulo; 2011.