sábado, 9 de maio de 2020

Lima - A Ilíada

Por Jean Valjean


Minha viagem mais longa de ônibus até aquela segunda-feira, dia 18/11, havia sido para São Paulo, saindo do Rio. E eu havia achado aquela viagem cansativa.
No domingo, dia 17/11, dormi tranquilo. Mala (mochila) pronta, ingresso para o jogo na mão e camisa do Mengão novinha, pronta para estrear na grande final da Libertadores. Há uma semana havia trocado cerca de 500 reais por 300 soles, a moeda do Peru, numa casa de câmbio na Tijuca. Segunda pela manhã, peguei um táxi e fui para um posto de gasolina no bairro da Glória (olha a premonição aí), local de onde os ônibus com destino a Lima, no Peru, partiriam.
Havia três ônibus da patrocinadora do Flamengo. Nome e identidade checados na porta, adentrei o ônibus e fiquei batendo papo com outros torcedores rubro-negros enquanto a viagem não começava. De dentro do ônibus vi alguns rubro-negros, com ingresso para o jogo mas sem passagem, tentando sensibilizar alguém, seja da empresa de ônibus, seja dos jornalistas que lá estavam para cobrir o início daquela epopeia, para ver se conseguiam uma “vaguinha”, tentando mesmo comprar a passagem ali na hora. Em vão.
Os três ônibus, marcados para sair às 10h, só começaram a viagem às 11h 30min. De cara, uma preocupação: o tão falado wi-fi do ônibus ficou fora do ar assim que saímos do posto. Não seria possível a comunicação com o mundo exterior pela internet.
Primeira parada dos ônibus foi em uma cidade na divisa do estado do Rio com São Paulo, do lado de lá. Todos almoçamos, usamos os banheiros, o wifi do restaurante era bom, tudo ali estava tranquilo. O tempo passou bem rápido para mim, e não me sentia nem um pouco cansado.
Quando fomos partir, uma surpresa: havia um “clandestino” no nosso ônibus, um cidadão que não tinha passagem mas embarcou mesmo assim. Esse torcedor não pôde voltar ao ônibus, ficando por ali naquela cidade mesmo.
A viagem, fora o wifi, continuava tranquila. Nem senti o tempo passar. Quando vi, já era noite. Depois de mais uma parada, continuamos o nosso percurso. Havia três motoristas, que se revezavam, em cada ônibus; assim não pararíamos para dormir, a viagem seguiria madrugadas a dentro.
Finalmente, peguei no sono, já era tarde da noite. Quando acordei, estávamos em Foz do Iguaçu, prontos para cruzar a fronteira com a Argentina. E foi aí que começaram os problemas.
Lembram-se que eu mencionei um passageiro clandestino no ônibus anteriormente? Pois é, a checagem dos documentos antes da saída do Rio não foi lá muito rigorosa... no posto de fronteira, os três ônibus ficaram parados por algumas horas, porque havia passageiros que não estavam com a carteira de identidade, documento necessário para a entrada na Argentina. Tinham CNH, carteira de trabalho, menos a identidade (ou passaporte). Conversa daqui, conversa de lá, no final não teve jeito. Os rubro-negros sem a identidade ou passaporte tiveram que deixar os ônibus e ficar no Brasil. Depois soube que a empresa que fretou os ônibus, patrocinadora do Flamengo, conseguiu passagens aéreas para que aqueles dois ou três fossem para o Peru. Parece que tiraram passaportes de emergência na Polícia Federal de Foz.
Bem, após a espera de mais de três horas na fronteira com a Argentina, finalmente conseguimos entrar no país hermano. Só que, dos três ônibus, dois “se mandaram” na frente e deixaram o terceiro, no qual eu estava, para trás, sozinho. No início não achei motivo para alarde, mas depois veríamos porque os três ônibus deveriam estar sempre juntos.
Nossos três motoristas, logo apelidados de “Os Três Patetas”, pareciam que não sabiam o caminho. Eles tinham um mapa de papel,e parece que só um havia feito aquele trajeto antes. Deveriam os três ônibus andar juntos para seguir o caminho correto. Mas não. Nos deixaram à própria sorte com os Três Patetas e seus desvios no trajeto. Como não sabiam onde ir, também não sabiam onde parar, e as paradas daqui para frente foram em lugares, digamos, muito longe das condições ideais.
Num barzinho argentino na beira da estrada, numa de nossas paradas, assisti pela TV a invasão da torcida no caminho do ônibus do Fla que iria do Ninho do Urubu até o aeroporto, contrastando com a saída do River, sem aquela massa de torcedores em volta. Fantástico.
Voltamos ao ônibus. Mais algumas horas vendo mato nos dois lados da estrada, começamos a subir. Era a Cordilheira dos Andes. Subimos, e subimos, e subimos... o ar ficou rarefeito. Muitos começaram a passar mal. Eu, incrivelmente, não senti nada. Mas um rapaz sentado na frente do ônibus sentiu e, quando ele começava a descer a escada (os ônibus tinham 2 andares), desmaiou. Caiu escada abaixo. Dos males o menor: abriu um corte grande abaixo do olho direito, sangrou, mas logo depois foi atendido se recuperou e estava doido para prosseguir viagem.
Continuamos a subir e chegamos à fronteira da Argentina com o Chile. Que estava fechada. Por causa dos atrasos devido aos Três Patetas se perderem no trajeto, chegamos à fronteira depois do horário de fechamento para os ônibus de turismo, que era às 23h. Chegamos uns 10 minutos depois, mas estávamos muito atrasados. Os outros dois ônibus, que nos largaram de mão, já estavam no Chile fazia horas.
Nosso ônibus, então, desce um pouco na estrada e para em um posto, onde passaremos a madrugada até a abertura da fronteira, às 8h.
8h da manhã do dia seguinte, a fronteira reabre, mas nosso ônibus não está lá. Os três patetas resolveram SAIR às 8h de onde estávamos, e não CHEGAR na fronteira naquela hora. Resultado: quando finalmente chegamos na fronteira já havia outros ônibus de turismo na nossa frente. E haja demora na travessia.
Enquanto aguardávamos, parados no alto do morro, resolvemos sair um pouco do ônibus. Esticar as pernas. E, quando olhamos para trás, o que vemos: um ônibus da torcida do River Plate! Todo mundo ficou meio ressabiado, “será que vai rolar briga aqui?”, mas era o sentimento também dos torcedores argentinos. Alguns vieram falar comigo, que emendei um espanhol bastante meia-boca mas conseguimos nos comunicar.
Ao meio-dia conseguimos cruzar a fronteira com o Chile. E, no Chile, mais morro e deserto. Ficamos sabendo que os dois ônibus que nos largaram ficaram parados num protesto na estrada. Bem feito.
Nossos motoristas, perdidos, pararam em alguns locais para pedir informação. Sorte que nos indicaram os caminhos certos. Numa parada, o ônibus foi abastecer. Na hora de pagar, os Três Patetas não tinham peso chileno, a moeda local. Um torcedor pagou o combustível no cartão de crédito. Mas vamos que vamos.
Chegamos à fronteira com o Peru. Nessa não demoramos muito. Mas ainda tínhamos um longo caminho a percorrer. Depois de tanto subir montanha, achamos que tudo melhoraria agora, pois iríamos pelo litoral. Ledo engano. As estradas no litoral do Pacífico são em cima do morro – a gente via o mar lá embaixo. E a estrada é estreita, parece que a qualquer momento o ônibus iria despencar de lá de cima.
Num movimento brusco do ônibus, outro torcedor machucou o ombro, deslocando a clavícula. Enquanto ele reclamava que queria ser atendido num posto de saúde ou hospital, estávamos próximos apenas de cidades pequenas, e, se desviássemos do nosso trajeto, talvez nem chagássemos a Lima a tempo do jogo. Acalmamos o rapaz e falamos que quando chegássemos a uma cidade maior, como Cusco, a chance de ter um hospital seria bem maior.
Chegamos a Cusco. Estávamos mais perto da cidade da Final, Lima. O rapaz que lesionou o ombro foi embora para um hospital e abandonou o ônibus. Seguimos viagem. Estávamos na noite de sexta-feira, dia 22/11. Era para termos chegado naquele dia à tarde em Lima, mas, por causa de tantos contratempos, estávamos muito atrasados.
Quando derradeiramente chegamos a Lima era manhã de sábado dia 23/11, dia da final. Eu estava cansado, revoltado com o atraso, sem tomar banho há 2 dias... mas feliz de ter chegado. Fui para o albergue que havia reservado, mas porque chegamos tarde (minha reserva começaria na sexta), eu perdi a reserva. Logo, não teria lugar para ficar. Por muita sorte, o atendente do albergue me indicou um outro albergue, próximo dali, em que havia apenas UMA vaga disponível. Saí correndo para garantir o quarto, mas o check-in só estaria disponível às 15h. 15h era o horário do início da partida. Eram onze e trinta da manhã. Fui num banheiro coletivo do albergue e tomei banho, depois de dois dias. Deixei minha mochila na “sala de malas” (pois não podia entrar no quarto, só após o check-in) e saí. Parei num boteco para comer alguma coisa (um sanduíche e uma coca-cola). Peguei um táxi e fui para o ponto final (ou inicial) de um ônibus especial que levava os torcedores até o estádio.
Cheguei ao estádio próximo das 13h. A entrada foi tranquila, apesar de andar bastante pois o estádio era longe de onde os policiais montaram as barreiras impedindo o trânsito de veículos. A polícia também, não deixava entrar com nada: faixa, bandeiras, cartazes... tudo deve que ser deixado num muro próximo à entrada.
Entrei no estádio, arquibancada toda cheia de pó (não aquele pó...) e grades separando os torcedores do gramado. Para quem já se acostumou com os novos padrões dos estádios brasileiros, parecia uma viagem aos anos 90.
Não estava nem um pouco cansado naquela hora, apesar de tudo. Ainda tive que aturar a abertura com um show de Anitta e uns cantores argentinos que nem sei quem eram, uma enrolação da Conmebol antes do que interessava: a partida. Depois de 6 dias de viagem, passando por quatro países, era chegada a hora da ver o Mengão campeão. O que, como todos sabem, aconteceu da forma que aconteceu.
Bem, esse foi meu relato da viagem de ida para a final da Libertadores de 2019. A minha “Ilíada”, por assim dizer. Já a “Odisseia”, a viagem de volta, foi bem mais tranquila. Dessa vez, os três ônibus foram em caravana, um atrás do outro. Muita gente não voltou no ônibus, seja porque já tinham passagens de avião, seja por medo mesmo; medo de acontecer novamente o que aconteceu na ida. Esses ficaram no Peru e ganharam, da empresa que fretou os ônibus, passagens aéreas para voltarem, como forma de desculpas. Mas tinham que ficar em Lima por mais uma semana, pois o avião só partiria no sábado seguinte. Eu, como tinha que voltar ao trabalho e nem dinheiro tinha mais, fui no ônibus. Na quarta-feira dia 27/11 estávamos em Foz do Iguaçu, de onde assistimos, num restaurante, a vitória do Flamengo sobre o Ceará pelo campeonato Brasileiro. Nos primeiros minutos da sexta-feira estava chegando em casa, no Rio, com a missão cumprida e boas histórias para contar.

Jean Valjean