quarta-feira, 12 de junho de 2019

Alfarrábios do Melo


Incerteza e renovação.

O Flamengo busca se reinventar após a inacreditável eliminação no Campeonato Brasileiro, em que, numa chave com Bahia, Ceará e GE Brasil, “conseguiu” perder a vaga nas Semifinais para a modesta equipe gaúcha, mesmo contando com a ansiada volta de Zico. Junto com o revés, pesados prejuízos e (mais uma) turbulenta crise dentro das paredes da Gávea.

Como costuma acontecer nesses casos, o primeiro pescoço degolado é o do treinador, no caso Zagalo.

O “Lobo”, que contava com o título brasileiro para catapultar seu retorno à Seleção Brasileira, pagou por subestimar seus adversários e montar um planejamento equivocado, julgando que três empates fora de casa bastariam para a conquista da vaga (arrumou dois empates no Nordeste, perdeu em Pelotas e viu um desmotivado Bahia ser facilmente superado em casa pelos xavantes na última rodada, resultado que se tornou decisivo para definir a chave). Ademais, o pobre futebol apresentado por uma equipe coalhada de craques como Zico, Tita, Adílio, Bebeto, Jorginho, Leandro, Andrade, Mozer e Fillol (onde, em seis jogos, apenas os 3-0 sobre o Bahia foram convincentes), aliado ao desgaste natural ocasionado por um trabalho de mais de um ano sem conquistas expressivas, selaram a sorte de Zagalo, cuja demissão é decretada após a derrota no primeiro jogo de uma excursão pelo Brasil arranjada às pressas (0-1 Blumenau).

Enquanto os membros da Diretoria vão medindo forças e tentando emplacar seus preferidos para o lugar de Zagalo, o Flamengo segue seu cansativo “bye bye Brasil”, em busca de cachês que minimizem a perda das esperadas arrecadações milionárias das Finais do Brasileiro. Assim, no dia em que o Coritiba supera o favorito Bangu (que amassara o GE Brasil nos dois jogos das Semifinais, aumentando a irritação rubro-negra) e, diante de um Maracanã com 100 mil pagantes, conquista nos pênaltis seu primeiro (e provavelmente único) Brasileiro, o Flamengo, diante de uma animada plateia que se aboleta no pequeno Estádio João Krieck, em Rio do Sul-SC, goleia o Juventus local por 5-0.

Recomeço.

A próxima parada promete ser mais divertida. Tarde de domingo, Estádio Rei Pelé, Maceió-AL. O Flamengo irá enfrentar o CSA, numa partida que é badalada ao longo de toda a semana. O tira-teima. O grande duelo. Mais um capítulo do embate entre Zico e… Jacozinho.

Abre parênteses.

Jacozinho é um ponta-esquerda atarracado, arisco e espevitado como tantos que vicejam pelos campos brasileiros. Já aos 31 anos, acumula passagens discretas por equipes como Vasco-SE, Sergipe, Jequié, Leônico-BA e Galícia. No entanto, enfim consegue se destacar ao se transferir para o CSA, liderando o Azulão alagoano durante a disputa da Primeira Fase do Brasileiro. Suas boas atuações e seu perfil carismático chamam a atenção do jornalista Márcio Canuto, da TV Globo, que começa a criar reportagens em tom irônico, “sugerindo” a convocação do jogador para a Seleção Brasileira, que vive péssimo momento sob o comando de Evaristo de Macedo. A brincadeira (que mostra, entre outras piadas, Jacozinho indo treinar a bordo de um jumento, ou esperando a “convocação” bebendo água de coco deitado numa rede) dá certo, e Jacozinho se torna celebridade. A boa campanha do CSA (que se classifica para a Segunda Fase do Brasileiro) ajuda a amplificar a fama de Jacozinho, fazendo com que muitos, de fato, levem a sério os feitos do jogador.

Enquanto as peripécias de Jacozinho vão entretendo um público carente de bom futebol, o Flamengo enfim consegue realizar um sonho iniciado desde que seu ídolo maior, Zico, partiu em busca do eldorado italiano. Pois, no minuto seguinte ao da partida do Galinho (e, logo depois, da renúncia do Presidente que conduziu a negociação), o Flamengo erige a obsessão de repatriá-lo e, após dois anos e inúmeras idas e vindas, enfim consegue trazer Zico de volta à sua casa. E, em uma grande festa no Maracanã, o Galinho reestreia no amistoso em que o Flamengo enfrenta (e vence, por 3-1) os “Amigos do Zico”, uma seleção de grandes jogadores, como Maradona, Falcão, Júnior, Roberto Dinamite, Toninho Cerezo, Edinho, Oscar e… Jacozinho.

A partida é transmitida para todo o país, com exclusividade, pela TV Manchete, emissora que participara ativamente da operação montada para a volta de Zico ao Flamengo, com boletins diários e mesmo a produção de um filme exibido em horário nobre. No entanto, numa manobra de notável esperteza de Canuto, Jacozinho é “encaixado” de última hora na lista de convidados a integrarem o time dos Amigos do Zico. Assiste a todo o amistoso do banco de reservas, entra no final da partida, recebe lançamento açucarado de Maradona, dribla Cantarele e marca, para delírio do estádio, o gol de honra do Combinado. Finda a festa, irritado com a presença do intruso (especialmente por conta de ser um “produto” de uma TV concorrente), Zico torce o nariz: “Forçaram a barra aí. Acho que a organização deu mole”, o que é maldosamente interpretado como uma reação “ciumenta”.

Alguns jornais, com efeito, não perdoam: “Jacozinho rouba a festa de Zico”.

Fecha parênteses.

Os jornais de Maceió abrem manchetes garrafais, promovendo o “tira-teima” entre Zico e Jacozinho. “Depois de brilhar no terreiro de Zico, agora Jacozinho vai cantar de galo em sua casa”, “Jacó roubou a festa de Zico e vai mostrar quem é que manda aqui”, entre outras provocações.

Além da envergadura do adversário e do peculiar contexto criado para a sua promoção, a partida também ganha importância para o torcedor do CSA, uma vez que provavelmente assinalará a despedida de Jacozinho. É aguardada a presença, na capital alagoana, de um dirigente do América-RJ, que deseja contratar o jogador. Botafogo e Santa Cruz também manifestam interesse, e os Dirigentes azulinos sabem que o momento de negociar Jacozinho, no auge de sua valorização, é agora. Assim, não são poucos os que tratam esse amistoso contra o Flamengo como a “Despedida de Jacozinho”.

Tal como o Flamengo, o CSA pereceu na Segunda Fase do Brasileiro. Mas, enquanto a eliminação caiu como um vexame na Gávea, a participação da equipe alagoana (superada por Atlético-MG, Guarani e Ponte Preta), que fechou em 13º um campeonato com 44 participantes, foi recebida com orgulho por sua torcida. Que acredita, sim, que o Azulão é capaz de se impor ao poderoso Flamengo de Zico.

Tarde ensolarada, cerca de 20 mil no Rei Pelé. Fogos acolhem a entrada em campo das equipes. Zico e Jacozinho se cumprimentam enfaticamente antes da partida, para satisfação dos inúmeros jornalistas e fotógrafos que recobrem o gramado. Dão entrevistas, prometem um grande jogo, essas coisas que todo jogador fala. Evacuado o gramado, vai começar o jogo. Mas o que tem início é um monólogo.

16 minutos. Zico a Andrade, que aciona Jorginho, que cruza. O goleiro Zé Luís solta nos pés do centroavante Chiquinho, que empurra para o gol: Flamengo 1-0.
21 minutos. Escanteio para o Flamengo. Élder cobra, Zé Luís sai de soco e Adalberto, na risca da grande área, acerta bela cabeçada por cobertura. Flamengo 2-0.
23 minutos. Chiquinho arranca pela esquerda, dribla um zagueiro e bate fraco. Zé Luís bate roupa e Zico, na corrida, emenda pro gol. Flamengo 3-0.

E assim, com metade da primeira etapa transcorrida, o Flamengo já vence por 3-0, imprimindo um ritmo fortíssimo, vertical, de marcação por pressão e velocidade, como havia sido pedido nos treinamentos por seu treinador interino, o preparador físico que, consciente de que os jogos da excursão serão uma oportunidade para mostrar serviço, faz questão que a equipe mostre competitividade, ignorando o caráter festivo dos amistosos. Seu nome: Sebastião Lazaroni. Ainda não é chegada sua hora. Mas um bom trabalho nessas partidas será seu passaporte para o início de sua carreira futura de treinador.

Há outras novidades. Com Fillol negociado com o Atletico Madrid e Cantarele lesionado, um jovem goleiro começa a ganhar suas primeiras chances na equipe. É Zé Carlos, que impressiona com sua envergadura. Outros nomes, como Ronaldo Torres, Paulo Henrique, Nem e Ailton, entre outros, também vão ganhando minutagem e sendo avaliados, já tendo em vista a transição de gerações que começa a ganhar contornos inevitáveis.

Tudo sob o comando de Zico, que vai regendo a equipe, enjoando de fazer lançamentos e passes açucarados para seus companheiros, que invariavelmente “arrumam uma forma” de desperdiçar as chances criadas. O Galo vai mostrando um posicionamento um tanto mais recuado e uma índole mais organizadora. Vai assumindo o papel de regente, de “arco” da equipe. E mostrando que, em forma e com ritmo de jogo, sobrará no futebol brasileiro, tão carente de talento.

Resta a Jacozinho aceitar seu papel de coadjuvante. É bem verdade que o irrequieto ponteiro emplaca uma ou outra jogada mais plástica, que serve apenas para divertir os presentes e aporrinhar o lateral Jorginho. Apagado, apenas chama a atenção quando, na descida para o intervalo, cercado por microfones, abre um sorriso e, resvalando para a desfaçatez, desfere sua frase de efeito:

“Vamos virar!”

Evidentemente, o CSA não vira a partida. Aliás, não chega nem perto disso. É bem verdade que o Flamengo tira um pouco o pé, e com isso os alagoanos melhoram de produção, passando a circular um pouco mais nos arredores da meta de Zé Carlos. Mas, tirando um saçarico de Jacozinho que rabisca a defesa flamenga e se perde pelo caminho e uma cobrança de falta perigosa que exige uma boa defesa de Zé Carlos, os da casa pouco produzem. E é o Flamengo quem, novamente, consegue as melhores oportunidades, a maioria criada por minuciosos lançamentos de Zico. Num deles, Ronaldo Torres se projeta e entra sozinho na área, mas é derrubado pelo estabanado goleiro Zé Luís. Pênalti, que Zico cobra mal, fraco, nas mãos do goleiro alagoano, uma das poucas cobranças que desperdiça em toda a sua carreira.

Mas ainda há tempo para o grande lance da partida. E ele não é protagonizado por Zico, nem por Jacozinho. Nem tampouco pelos outros jogadores de Seleção que ainda estão em campo. A jogada começa com Zico, que cobra uma falta rasteira, com força. A bola espirra em um zagueiro e, na sobra, Chiquinho, o improvável Chiquinho, o espevitado, o “grosso”, o caneludo Chiquinho dá um lençol espetacular num contrário e acerta belíssima cabeçada, que encobre matreiramente o goleiro, indo às redes de forma sutil, suave, numa jogada sensacional. Flamengo 4-0, o segundo de Chiquinho, que é ovacionado por um resignado Estádio.

É o bastante. Nada mais de interessante acontece, e o amistoso termina com o escore de 4-0 estampado no placar do Rei Pelé e nas páginas dos jornais alagoanos. Nenhuma menção a “duelo”, ou “embate”, ou “tira-teima” é recordada, até por conta de sua constrangedora inexistência. Afinal de contas, o Flamengo e Zico vieram a Maceió e protagonizaram algo como um coletivo de luxo, contra um adversário de nível semelhante ao que eliminara o rubro-negro do Brasileiro, para desespero das vozes que seguem sibilando nos corredores da Gávea. Mas a vida seguirá. Jacozinho e o CSA ficam para trás. Dali a dois dias, o Flamengo monta seu acampamento em Aracaju.

Afinal de contas, o espetáculo não pode parar.

* O Flamengo, depois de golear o CSA, ainda realiza três amistosos pelo Nordeste. Vence todos, jogando um futebol elogiado. O desempenho, os resultados e o minucioso relatório preparado no retorno ao Rio impressionam a Diretoria, que passa a prestar mais atenção em Sebastião Lazaroni.
* Após quase fechar com Ênio Andrade e chegar a anunciar Edu Antunes, voltando atrás após protestos e pichações promovidas por algumas torcidas organizadas, o Flamengo contrata o experiente Joubert (Campeão pelo rubro-negro em 1974) para o comando técnico da equipe, o que é considerado um retrocesso. Joubert não resiste à péssima campanha na Taça Guanabara e é demitido. E, enfim, chega a hora de Lazaroni.
* O América desconfia de leilão e desiste da contratação de Jacozinho, que assina com o Santa Cruz. Na equipe pernambucana, não consegue repetir o brilho das atuações no CSA, e logo retorna ao clube alagoano. Depois, perambula por mais algumas equipes nordestinas e encerra a carreira, de forma quase anônima.
* Zico marca mais dois gols nos amistosos restantes, seguindo como o grande nome da equipe. Na estreia pela Taça Guanabara, anota duas vezes nos 5-0 sobre o Bonsucesso. Na rodada seguinte, surge Márcio Nunes. E o resto é história.

Esta coluna entrará em recesso junino. Retorno previsto em 17 de julho.