O Flamengo acaba de vencer.
Mas o clima no vestiário no Maracanã está longe, muito longe de ser festivo, embora também não haja tristeza. É uma espécie de silêncio um tanto constrangido, quase envergonhado, pelo que se passou na última hora e meia dentro do gramado do mitológico Estádio. Atmosfera que somente é quebrada por aquele rapaz esquálido, sentado encolhido num canto, que expele frases desconexas, picotadas, tremelicando, quase chorando de nervoso. Seu suor gelado denuncia algo que se assemelha a um estado de choque. Prudentes, os médicos do Flamengo o indicam um banho gelado, mas o jovem jogador não faz menção de sair do lugar, o que somente acontece após uma espécie de “condução coercitiva” do capitão da equipe.
É Tita que, aos palavrões e sopapos, leva um descontrolado Bebeto ao caminho do remédio que o recomporá.
* * *
“Eu disse e repito, reitero e confirmo: o Flamengo não sofrerá gol esta noite. Falo isso de forma categórica.”
O contundente desafio de Zagalo, que faz questão de repeti-lo diversas vezes em rádios, jornais e na TV, não deixa de se revestir de certo ato-falho, que denuncia o estado de espírito do Flamengo para o jogo que encerrará o Grupo 2 da Fase Semifinal da Taça Libertadores. Partida contra a Universidad Los Andes, ou ULA, de Mérida, Venezuela, no Maracanã. Em que o rubro-negro, dois pontos atrás do Grêmio, precisa da vitória para forçar a realização de um jogo-extra contra os gaúchos, cujo vencedor se classificará à Final contra o Independiente-ARG. O Grêmio, que lidera a chave com 14 gols marcados e 5 sofridos, somente perderá a vantagem do empate (na prorrogação) se o Flamengo (que tem 7 gols pró e 6 contra) superar os venezuelanos por uma diferença igual ou superior a 8 gols (igualando o saldo, o rubro-negro leva vantagem por ter marcado mais gols fora de casa em toda a fase).
Na Gávea, o discurso externo é de cautela, tranquilidade e essas coisas todas que se falam aos jornais. Mas, dentro do elenco, todos, quase sem exceções, creem que há, sim, uma possibilidade bastante concreta de se chegar ao tal placar de 8-0. A frase que Zagalo, inadvertidamente, deixa escapar sempre que indagado, não deixa de ser uma espécie de concessão à realidade anímica do plantel dirigido pelo Velho Lobo.
E, por pouco, não será seu epitáfio.
O ULA só não é uma equipe inteiramente desconhecida do público brasileiro porque alguns mais atentos se recordam que foi o destino de um jovem volante do Flamengo que, sem espaço, foi emprestado para ganhar experiência, entre 1977 e 78. E que, atuando como “camisa 10”, tornou-se destaque, chegando a ser o goleador da edição de 1978 do Campeonato Venezuelano. Seu nome, Andrade, que depois retornaria para compor entre os titulares da mais vitoriosa equipe da história do rubro-negro.
Este 1984 assinala a primeira vez que o ULA disputa a Libertadores. O campeão venezuelano alinha na Primeira Fase em uma chave com a Portuguesa FC, de Acarigua (Venezuela) e os peruanos Melgar e Sporting Cristal. E, após renhida disputa, os de Mérida conseguem a vaga às Semifinais, ao derrotar, em jogo-extra disputado em Cali-COL, o Sporting Cristal por 2-1. O ULA atua fechado, em contragolpes, explorando a força física do atacante brasileiro Itamar. Seu goleiro, Baena (que mais tarde será por anos titular da Seleção local), é um dos destaques. Chama a atenção o fato de que, em toda a Primeira Fase, o ULA sofreu apenas 5 gols em 7 jogos.
É um detalhe que parece passar despercebido por quem pensa em ganhar de oito.
O Flamengo está em reconstrução. Após a traumática eliminação do Brasileiro, que custou o emprego do treinador Cláudio Garcia, o rubro-negro, sob o comando do experiente Zagalo, realiza uma série de amistosos pelo país, onde o Velho Lobo realiza alguns ajustes, dando continuidade à transição entre os heróis de 1981 e a nova e extremamente talentosa geração que surge. Raul já pendurou as luvas, Vítor e Marinho foram negociados, Zico foi brilhar em terras italianas e Lico e Nunes perderam espaço entre os titulares. E a última baixa é Júnior que, dias antes do início das Semifinais da Libertadores, é negociado com o Torino-ITA. É a hora de jovens como Bebeto, Guto, Élder, Heitor, Bigu, Adalberto. E a novidade é a contratação, para o lugar do Capacete, do lateral Jorginho, do América, capaz de atuar dos dois lados, que virá para viabilizar a ida de Leandro para a zaga. Mas Jorginho, que não está inscrito, não pode atuar na Libertadores.
Mas há percalços. A brilhante campanha da Primeira Fase da Libertadores (em que foi o melhor time, com cinco vitórias e um empate num grupo com Santos, América de Cali e Junior de Barranquilla) quase vira fumaça na estreia das Semifinais, onde uma equipe inteiramente despreparada (desfalcada de vários titulares e sem sequer dispor de camisas de manga longa para um frio de zero graus) leva 1-5 no Olímpico. A opaca vitória por 3-0 contra o ULA, na Venezuela (placar enganoso, construído com dois gols de pênalti) não anima muito, mas a categórica atuação no Maracanã, em que por pouco não devolveu a goleada aos gremistas (que se fecharam “garantindo” os 3-1) trouxe a crença na evolução da equipe. Agora, o Flamengo chega à última rodada precisando da goleada, ou na pior das hipóteses de uma vitória simples para o tira-teima contra os gaúchos.
Mas há um problema que dividirá a frente de batalha.
O Campeonato Estadual já está em seu início, inclusive com algumas rodadas já disputadas. O destaque é o Bangu, que goleia o Vasco de Edu Antunes, Vice Brasileiro, por 4-0. Mas o Flamengo consegue protelar sua estreia até o final das Semifinais da Libertadores. No entanto, a iminente necessidade de um jogo-extra faz com que o rubro-negro busque novo adiamento, pois, entre o jogo contra o ULA (quinta) e o desempate está marcado um clássico contra o Botafogo, partida que se anuncia extenuante. A Diretoria vai à FERJ, à CBF e até ao CND tentando adiar a partida, sem sucesso. Falta de datas, inclusão na Loteria Esportiva, necessidade de afastar suspeitas de favorecimento, vários são os argumentos usados para manter a partida no domingo. O Flamengo briga, esperneia, ameaça não ir a campo, mas acaba convencido a respeitar a programação prévia. Mais do que a perda no embate extracampo, a discussão (que terá levado quase uma semana) desvia a atenção do clube, que perde foco e não consegue emplacar, junto à Confederação Sul-Americana de Futebol (CSF), o local do jogo-desempate contra o Grêmio. Contra sua vontade, terá que jogar em São Paulo.
Isso se passar pelo ULA.
Não que a hipótese de perder a vaga seja sequer posta em discussão. Os venezuelanos vêm de uma humilhante derrota por 6-1 para o Grêmio no Olímpico (que atuou concentrado em ampliar seu saldo) e parecem desmotivados. Levam apenas TRÊS reservas para o Rio e não parecem dispostos a exercer algo mais que mero papel de sparring. “Sabemos que somos inferiores. Queremos fazer apenas um jogo digno”. A crônica carioca, sempre cruel, vale-se do trocadilho óbvio e começa a chamar a equipe visitante de “ULA de m...” Ninguém, absolutamente ninguém, crê em algo diferente de uma vitória maiúscula, folgada, verborrágica e caudalosa. Se vai ser de oito, isso suscita dúvidas. Mas a goleada está absolutamente fora de questão. “Não levaremos gols deles”, Zagalo, experiente, parece deixar-se contaminar.
O treinador do ULA, Alfredo Lopez, chega ao Rio e parece um tanto incomodado. Avisa, “nunca havia levado de seis antes”, e, tomado de genuíno inconformismo, declara: “se sofrer outra derrota semelhante, largo o futebol”. Ninguém presta atenção, ninguém leva a sério. Lopez, indagado sobre o que fazer para evitar a tal goleada de 8-0, é seco, enfático: “não há a menor chance disso acontecer”.
A imprensa, irritada com as idas e vindas dos bastidores, que estão atrapalhando seu trabalho de promover o jogão de domingo entre Flamengo x Botafogo (e há elementos: o Botafogo, imaginando que ainda está nos anos 60, avisa que já separou o bicho e pagará dobrado), despeja sua ira no torneio continental. Um célebre cronista assinala: “Na semana de um jogo importante contra o Botafogo os rubro-negros precisam parar pra jogar contra um tal de ULA que nem dinheiro pras passagens tinha (…). Abre-se o Maracanã, interrompe-se o trabalho de preparação para o campeonato carioca, tudo isso pra jogar com mais uma dessas sucatas do futebol do continente. A Libertadores é a baba dos torneios.”
Enfim, após tanta controvérsia, chega o momento onde as coisas de fato se decidem. O campo de jogo.
O Flamengo está escalado com Fillol, Heitor, Leandro, Mozer e Adalberto; Andrade, Adílio e Élder; Bebeto, Tita e João Paulo. Apenas 22 mil pagantes vão ao Maracanã assistir a Flamengo x ULA Mérida. E quem está no Estádio assiste ao rubro-negro iniciar a partida com uma postura extremamente agressiva. Os de Zagalo posicionam-se inteiramente no campo ofensivo e partem pro abafa desde o pontapé inicial. Com menos de cinco minutos, o zagueiro Cosme, do ULA, já salva duas bolas em cima da linha do gol. Nervosos, os venezuelanos não conseguem sair de sua intermediária. Presencia-se a verdadeira expressão de um massacre. O início realmente leva a crer na construção de algo elástico e de grande porte.
Dura 12 minutos.
Numa rara escapada dos visitantes, facilitada pela pouca disposição ao combate pelos flamengos (que esperam o previsível erro adversário para recuperar a bola), há um escanteio. E a bola é alçada exatamente na cabeça de Itamar, que, apenas contemplado por Leandro e Fillol (imersos num "deixa que eu deixo"), escora sem a menor dificuldade a bola para dentro das redes. Parece inacreditável, mas o ULA abre o placar no Maracanã.
Zagalo, do banco, coça a cabeça. Em silêncio.
O gol do ULA transforma e transtorna a partida. Inteiramente sem chão, o Flamengo demora a se recompor do golpe e, de forma inteiramente descoordenada, tenta corrigir a distorção. No entanto, perde-se pelos nervos. E começa a errar. E erra além do limite do aceitável. Precipitados, jogadores como Adílio, Tita e, principalmente, Bebeto, mandam bolas às arquibancadas a cada minuto. O ULA, agora, quer guerrear. E usa suas armas. Tranca-se inteiramente em sua área, executando o seu sistema defensivo de razoável eficiência já testado em outras ocasiões. Nenhum jogador do Flamengo tem espaço para raciocinar. Para pensar. Com a entrada da área inteiramente engarrafada, o jeito é apelar para as bolas alçadas. E para mais erros. O lateral Heitor, numa noite particularmente infeliz, erra tudo o que lhe chega aos pés. É coberto com vaias e mais vaias. Aliás, a torcida, impaciente ao rubro, começa a vaiar até lateral. E a equipe, inteiramente descontrolada e desarvorada, não cria absolutamente nada nos minutos que restam. É uma das piores atuações do Flamengo em toda a década.
Termina o primeiro tempo. O Flamengo desce ao vestiário espancado por vaias e mais vaias.
Zagalo esboça reclamar do árbitro. Está tenso. Começa a passar em sua memória o filme da Libertadores de 1971 em que, quando dirigia o Fluminense, líder da chave e precisando de dois pontos para se classificar, “conseguiu” perder e ser praticamente eliminado, em pleno Maracanã (0-1), para o indigente Deportivo Italia, também da Venezuela, equipe que, quinze dias antes, goleara por 6-0 na Venezuela. Agora, dirigindo o Flamengo, vê a sombra do vexame pairar novamente sobre sua cabeça.
Mas não será sem luta. O Velho Lobo, irritado com a inoperância de Heitor, puxa Leandro de volta à lateral-direita, trazendo Guto para a zaga. E a alteração funciona já aos três minutos, quando Leandro encontra Tita e, num cruzamento finalmente certo, faz com que o Camisa 10 meta de testa para as redes de Baena. O Flamengo empata a partida.
No entanto, o que parecia tranquilizar acaba por estontear ainda mais o time. Ansioso para chegar logo à virada, o Flamengo abusa e usa do direito de desperdiçar chances. Consegue, é verdade, ser mais agudo, mas esbarra nas defesas de Baena e na própria incompetência. Cruza, ao todo, 38 bolas na área do ULA. Élder, Bebeto, João Paulo, todos vão errando sistematicamente as bolas alçadas. Mesmo Leandro sente o ritmo e começa a afunilar pelo meio. Sem sucesso.
E as chances vão se sucedendo. Tita marca de novo, num chute de longe, mas o gol é anulado por impedimento de Bebeto. Zagalo, aos gritos, tenta esbofetear o árbitro. É contido com dificuldade. Segue a hecatombe. O Flamengo faz a bola zunir ao arco de Baena, em tiros longos, curtos, altos, rasteiros. O torcedor, antes irritado, sente o momento e começa a gritar “MEEENGOOOO”, plenos pulmões. Agora é a própria sobrevivência que está em jogo.
O relógio começa a escoar perigosamente seus minutos finais. Adílio acerta a trave. João Paulo, em seu último lance, faz Baena se esticar em grande defesa. Tita e Bebeto perdem na cara do gol. Estamos chegando aos 40 minutos. Adílio recebe na esquerda, contorna um, dois, vira o corpo pra chutar, mas vê uma parede de venezuelanos. Resignado, desiste do arremate e abre pra Tita, que cruza. E enfim São Judas Tadeu parece farto de tanto sofrimento e faz com que a bola desvie levemente na orelha de um contrário. O que é suficiente para que encontre a cabeça de Adílio, que de leve, meio desajeitado, consegue tirar de Baena e marcar, enfim, o gol que expia a agonia de toda uma Nação. O Flamengo se livra do vexame e põe 2-1 no marcador.
Nos minutos finais, o rubro-negro, exausto, ainda cria mais umas duas ou três chances, mas o marcador não é mais alterado. No vestiário, os semblantes fechados denunciam a sensação de amargo alívio. Bebeto, após o banho, parece mais calmo. Tita não esconde a irritação: “não adianta jogar pelas pontas se quem está por lá não sabe cruzar”. Zagalo, em silêncio, balbucia algo como “era um risco, tudo isso era um risco”.
E, em silêncio, jogadores, profissionais e dirigentes vão deixando o Maracanã. Contritos, parecem impressionados com a viva lição que acabam de receber das coisas da bola. Lição que, doravante, seguirá sendo repetida, episodicamente, ao longo dos anos.
Mas que parece nunca ser aprendida.
* * *
* O Flamengo, no domingo seguinte, entrou em campo para enfrentar o Botafogo, pela estreia da Taça Guanabara. E, num jogo duríssimo, em que o adversário chegou a perder um pênalti, venceu por 1-0, gol do ressuscitado ídolo Nunes, que andava fora dos planos da comissão técnica;
* Exatamente uma semana após derrotar o ULA, Flamengo e Grêmio realizaram o jogo-desempate em um Pacaembu lotado de quase 50 mil rubro-negros. O Flamengo lutou muito, foi sempre superior, mas não conseguiu superar a retranca dos gaúchos. Cansado após o esforço dos dois últimos jogos, o rubro-negro não saiu do 0-0 no tempo normal e na prorrogação, resultado que classificou os gaúchos para a Final da Libertadores. Assim, pela segunda vez em três anos, o Flamengo se viu fora da Final do torneio continental justamente por um jogo.
