segunda-feira, 18 de março de 2019

Eu, o Peñarol e a Libertadores

De pé: Diogo, Gutiérrez, Bossio, Olivera,
Morales e Gato Fernandez.
Agachados: Silva, Saralegui, Fernando Morena,
Jair e Venâncio Ramos.
Quarta-feira, 14 de setembro de 1977. Estava em curso o Segundo Turno do Campeonato Carioca e o Flamengo havia jogado no domingo, dia 11, contra o América, no Maracanã (3x1, gols de Zico, Adílio e Merica). O jogo transmitido pela Rede Globo para Brasília era um enfadonho América x Fluminense (0x3), com pouco mais de treze mil testemunhas no estádio. As imagens resgatadas da minha memória são comparáveis a uma transmissão de 4K/Ultra HD. Também pudera. O parâmetro é um Boca Juniors x Cruzeiro, final da Libertadores, disputado no Estádio Centenário, em Montevidéu, e transmitido por sei lá qual emissora. Chuto Record ou Bandeirantes, mas poderia ser até a TVE/Cultura. O certo é que a imagem era horrorosa, em preto e branco, contaminada por frequentes interrupções, isso quando a tela não era invadida por chuviscos e as mais exóticas faixas de interferência, emitindo variados ruídos, no melhor estilo “Poltergeist”. “Pai, a imagem tá horrível; por que você quer assistir a isso?!” E veio a resposta de quem sabia bem o peso daquele confronto, por haver assistido presencialmente, no Maracanã, ao Santos de Pelé triunfar sobre o Milan e o Benfica: “Filho, essa é a final da Libertadores da América, torneio mais importante do continente. Tem um clube brasileiro disputando contra um grande argentino.” E ficamos assistindo à final, apesar dos pesares. À medida que meus olhos foram se adaptando a tantas dificuldades, logo percebi que a batalha se diferenciava do sonolento espetáculo que se desenvolvia no Maracanã.

Daquele jogo eu tenho mais lembranças das cobranças de pênaltis, do Nelinho e do goleiro portenho Gatti, com seus cabelos longos e a faixa na cabeça, que em 1978 também enfrentou o Atlético/MG pela Libertadores (duas vitórias "Bosteras"). A final de 1977 foi muito marcante, ao menos para mim. Pesquisando aqui e acolá, descobri que aquele torneio só havia sido conquistado por dois clubes brasileiros, um deles o Santos de Pelé. Não é que o Campeonato Carioca tenha morrido para mim, mas desde aquele momento, na minha cabeça, começou a se estabelecer uma nítida diferença de importância entre os cenários local (estadual), nacional e internacional. Chamou-me bastante a atenção o fato de somente o Santos de Pelé até então ter sido campeão mundial interclubes. Ficava me perguntando: há algo maior do que ser campeão da América e do Mundo?

Dois anos depois, o Flamengo foi tricampeão estadual, incluindo uma edição especial, pois a normalmente programada havia acabado cedo demais… Porém, naquele mesmo ano (1979), no Campeonato Brasileiro espremido entre os meses de novembro e dezembro, o promissor Flamengo foi eliminado, em pleno Maracanã, após uma ótima campanha, por um Palmeiras repleto de jogadores medianos, mas comandado por um certo Telê Santana à beira do gramado. Intrigou-me como uma máquina de jogar futebol daquelas havia perdido para um clube que sabia que era grande, mas quase nunca jogava contra o meu. Para quem não se recorda, o Flamengo/1979 terminou a temporada com 82 (oitenta e dois) jogos, conquistando 62 (sessenta e duas) vitórias, contra 13 (treze) empates e 7 derrotas, e marcando 205 (duzentos e cinco) gols (!), 81 (oitenta e um) deles por Zico (!), e sofrendo 60 (sessenta). Natural que o único torneio perdido, ainda mais daquela forma, tenha despertado a minha cobiça.

Ainda em 1979, fiquei estupefato quando um time do qual jamais havia ouvido falar, chamado Olímpia, do Paraguai, havia sido campeão mundial, em Tóquio, em cima do Malmoe (Suécia), após derrotar o poderoso Boca Juniors na final da Libertadores. Como seria grandioso o Flamengo ganhar esses títulos, eu imaginava. Ainda no cenário nacional, não demorou e 1980 trouxe a saborosa vingança contra o mesmo Palmeiras, com os 6x2 no Maracanã, aplicados durante a campanha do inédito título brasileiro, que, por sua vez, foi conquistado após uma épica final contra o Atlético/MG, para mim até hoje o maior jogo de futebol de todos os tempos. E com o primeiro título brasileiro veio a oportunidade de disputar a primeira Libertadores, perseguida por outros grandes clubes brasileiros, como o Internacional, vice-campeão para o Nacional de Montevidéu ainda em 1980.

Quando veio o título da Libertadores em 1981, sucedido pelo épico 3x0 sobre o Liverpool em Tóquio pela Copa Intercontinental, não teve jogo do ladrilheiro que me balançasse da mesma forma, por maior que fosse a emoção dos confrontos contra os rivais cariocas. Na minha cabeça, com apenas 11 (onze) anos de idade, já havia entendido bem a diferença entre o Estadual e o Brasileiro e a Libertadores.

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Talvez pelo orgulho que represente para os torcedores do Vasco da Gama, noto que a maioria das menções ao segundo semestre de 1982, envolvendo o Flamengo, aludem à derrota na final do Estadual (0x1, 5/12). Não é que para mim tenha sido irrelevante, até porque nenhum jogo do Flamengo o é, mas o ano já havia sido por demais sofrido em razão da derrota da Seleção Brasileira no Sarriá (2x3 Itália, 05/7) e da maior decepção que tive com o Flamengo em minha infância/juventude: a eliminação da Libertadores/1982, após a derrota para o Peñarol no Maracanã (0x1, 16/11), em frente a mais de 90 mil pagantes. O que mais doeu foi, logo em seguida, ter que assistir ao Peñarol superar o Cobreloa (aquele mesmo de 1981), na final da Liberadores, e o Aston Villa (Who?), em Tóquio, pela Intercontinental, sagrando-se campeão mundial e impedindo o Flamengo de repetir o feito do Santos de Pelé, alcançado pelo São Paulo de Telê Santana no início da década de 90 (bi mundial).

Aston Villa! As-ton, Vil-la! Fiquei inconformado e inconsolável. Quantos clubes tiveram a "teta" de decidir um mundial contra o Aston Villa? E o Flamengo esteve muito perto do bi-mundial, pois o caminho para Tóquio era inclusive mais curto do que no ano anterior. É que, naquela época, o campeão da edição anterior da Libertadores pulava a fase de grupos e já entrava nas semifinais, disputadas em sistema de ida e volta em dois grupos com 3 (três) clubes. O mesmo era feito na Copa do Mundo. Assisti a duas (1978 e 1982) nesse formato. O curto caminho do Flamengo, porém, tinha o Peñarol que, naquele ano, conquistaria seu último título mundial. Afinal de contas, quem era Aston Villa defronte ao todo-poderoso e multi-campeão sul-americano? Um abismo existia entre as duas camisas. O desfecho não poderia ter sido outro.

Após estreia com derrota por 0x1 para os uruguaios em um Centenário lotado e fervendo como um caldeirão, duas vitórias categóricas sobre o River Plate (3x0 no Monumental e 4x2 no Maracanã) me fizeram acreditar que tudo terminaria bem. Afinal de contas, (quase) tudo terminava bem com aquele Flamengo de Zico. Infelizmente, eu e toda a torcida rubro-negra estávamos mal-acostumados.

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Passei a minha adolescência odiando profundamente o Peñarol e o brasileiro Jair, habilidoso camisa 10 e autor do gol de falta que sacramentou a eliminação do Flamengo. Não estou brincando. Direcionei meu ódio juvenil contra ambos com todas as forças. A senha para me ensandecer completamente, em questão de segundos, era apenas mencionar a semifinal de 1982, o Peñarol e o Jair. Nem mesmo a vitória no Mundialito em 1983, na Itália (2x0, transmitido pela Globo), aplacaram a minha ira. Seja porque não era a Libertadores, seja porque não foi com a presença do Zico ou mesmo porque o adversário utilizou horrorosa camisa toda amarela, e não a tradicionalíssima com faixas verticais pretas e amarelas, tudo foi pretexto para descarregar a minha bílis venenosa contra os uruguaios.

Na minha cabeça, a energia do Peñarol era negativa para o Flamengo. O único título internacional do Botafogo (clube que meu pai me ensinou a detestar) foi conquistado em cima de quem? Do Peñarol. O Grêmio, terrível adversário do Flamengo nas décadas de 70 e 80, conquistou sua primeira Libertadores em cima de quem? Do Peñarol. No último título sul-americano conquistado pelo Flamengo (Sul-Americana/1999), os jogadores foram covardemente agredidos, no que talvez tenha sido, ao lado da final contra o Cobreloa em Santiago (1981), o cenário mais hostil que o clube já encarou além das fronteiras brasileiras, logo após eliminarem, no Centenário, o… Peñarol.

Mas essa era uma avaliação de um torcedor mais jovem e emotivo, naturalmente muito menos racional do que o de hoje, que nutre até certa admiração pelo algoz de outrora... Ou será que não? Confesso estar curioso sobre o que sentirei quando, após 37 (trinta e sete) anos, os dois clubes voltarem a se enfrentar pela Libertadores da América.

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Naquele início dos anos 80, o futebol uruguaio ainda vivia anos de grande prestígio, inclusive por conta dos títulos conquistados por seus maiores clubes: Nacional e Peñarol. De 1980 até 1989, cada um conquistou duas edições da Libertadores, feito nada desprezível, representando o dobro das conquistas brasileiras naquela década. Ao todo, o Peñarol conquistou nada menos do que 5 (cinco) Libertadores e 3 (três) Copas Intercontinentais, feito notável de um verdadeiro gigante sul-americano.

Todavia, tragicamente (para eles), o cenário mudou e hoje o Peñarol não mete medo em mais ninguém. A última conquista da Libertadores remonta a 1987, ano no qual foi derrotado (1x2), em Tóquio, debaixo de pesada nevasca, pelo fortíssimo Futebol Clube do Porto de Mlynarczyc, Geraldão, Rui Barros e Madjer. De lá para cá, apenas uma boa campanha, no vice-campeonato para o Santos de Neymar (2011), e incontáveis reveses, como, só para citar alguns, os vexames do vice-campeonato da Copa Conmebol para o Botafogo (1993), da eliminação na Sul-Americana para o Goiás (2010) e, pasmem, ter chegado, em 2018, a sua sexta eliminação seguida na fase de grupos da Liberadores nos últimos sete anos (!), ficando atrás ou não vencendo adversários do nível de Arsenal de Sarandi, Huracán, Deportivo Anzoátegui, Emelec, Jorge Wilsterman e Atlético Tucumán.

Apesar disso, o clube tenta reconquistar seu prestígio internacional. Um importante passo foi a construção do Estádio Campeón del Siglo, com capacidade para 40 mil pessoas e inaugurado em 28 de março de 2016, com uma goleada de 4x1 sobre o River Plate (o “original”, não o genérico uruguaio). Porém, até o momento o estádio não foi suficiente para levar o Peñarol sequer às oitavas de final da Libertadores, inobstante a conquista de mais um título uruguaio, seu 50º, em 2018.

Que a volta por cima não se dê justamente em 2019...

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Flamengo e Peñarol parecem destinados a se cruzar em cenários importantes e dramáticos. Desde os fatídicos confrontos pela Libertadores em 1982, os dois únicos jogos oficiais ocorreram justamente em 1999, pela Copa Sul-Americana. No Maracanã, o Mais Querido aplicou 3x0 com autoridade (Leandro Machado, Maurinho e Lê), mas em Montevidéu (Estádio Centenário) o pau quebrou após eliminação dos uruguaios, que venceram apenas por 3x2 (gols de Athirson e Reinaldo). A então Confederação Sul-Americana de Futebol suspendeu 10 (dez) atletas do Peñarol e ainda multou o clube no valor de U$ 10 mil.

Posteriormente, os clubes se enfrentaram em um amistoso, também no Estádio Centenário, onde, por sinal, o Flamengo perdeu todos os confrontos oficiais disputados contra o Peñarol até hoje. Vitórias rubro-negras contra o mesmo adversário, em Montevidéu, foram três, mas apenas em amistosos: duas no Centenário e uma no Campus Municipal, palco da última delas, em 1981. No Maracanã, ocorreram dois confrontos, dois deles vencidos pelo Mais Querido e um pelos uruguaios, logo aquele...

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Essas são apenas as minhas memórias de tempos que já se foram, nos quais os uruguaios disputavam em igualdade de condições os confrontos contra quaisquer gigantes dos cenários Sul-Americano e Mundial. Fica para outro dia o papo sobre o atual time "Carbonero" e o seu desempenho na temporada 2019. Antes, porém, deixo para vocês uma pergunta: o Peñarol encolheu ou apenas passa por uma longa crise?

Bom dia e SRN a tod@s.