quarta-feira, 27 de março de 2019

Alfarrábios do Melo


Saudações flamengas a todos,

Este mês de março tem sido rico em efemérides. Aniversário especial de jogador vivo, de jogador que se foi, as já tradicionais saudações “Natalinas”, enfim. Efemérides são úteis para nos fazer recordar as obras e as trajetórias de figuras caras à nossa memória, ajudando a mitigar o risco de que suas passagens restem reduzidas a manchas progressivamente opalescentes em alguma fresta da nossa memória.

No entanto, a recente oferta de lembranças evocando datas importantes de figuras que demarcaram de forma tão expressiva a história flamenga fez-me irromper uma inusitada reflexão. Pois. Há jogadores que sucumbem ao desafio de se erigir à estatura do Manto Sagrado. Outros o transpõem, não sem certa dificuldade. Há alguns, no entanto, em quem o sacro pano em negro e rubro se lhes veste suave, diáfano, quase se amalgamando à pele. E há, por fim, os que, mais do que inteiramente à vontade nas terras flamengas, logram conquistar vitórias, galardões, troféus e, principalmente, corações. Não são guiados, guiam. A esses está reservado o bálsamo da primazia da idolatria.

E se chega ao ponto da minha introspecção.

Neste ano da graça de 2019, completam-se exatos quarenta anos desde que me vi, pela primeira vez, torcendo e gritando em um jogo do Flamengo. Dessas quatro décadas pra cá, contam-se nos dedos das mãos a quantidade de jogadores que me vi erigindo à condição de ídolos. Na verdade, nos dedos de tão somente uma das mãos. Evidentemente, a coleção de soldados do Manto pelos quais nutri profunda simpatia, admiração e até reverência é um tanto mais ampla, embora igualmente não muito vasta. Donde, pus-me a pensar na coisa.

E, nesse processo, grandes jogos, atletas, temporadas, vão-se passando como um filme. Sensações adormecidas pousam em retorno à mente, momentos de euforia, êxtase e dor giram em uma farândula que faz passar décadas em segundos. Um processo do qual emerge, à guisa de “hall da fama” (na falta de termo menos vulgar), uma relação de “eleitos”. Os jogadores pelos quais desenvolvi, em minha existência de torcedor, algo mais do que o mero contrato em que se reza que “vestiu rubro-negro, não tem pra ninguém”, cujo corolário faz concluir que, a partir do momento em que não representa mais nossas cores, resta a vala do anonimato.

Assim, trago, de minha mais absoluta convicção pessoal, que não precisa nem deve ser semelhante à de mais ninguém, duas listas. Uma, contendo aqueles que foram admirados, reverenciados, queridos, festejados. A outra, bem mais restrita, contendo os jogadores que por mim foram idolatrados. A eles, pois.

OS QUASE-ÍDOLOS

LEANDRO
Encabeça a lista justamente o jogador que motivou estas reflexões. Homenageado com toda justiça nestes últimos dias, Leandro talvez tenha sido o último dos atletas com alma de amador. Defender o Flamengo se lhe bastava. Ignorando as severas limitações físicas que lhe impunham a desumana necessidade de suportar dores lancinantes a cada partida, Leandro exibiu durante cerca de uma década seu futebol exuberante, luxuoso, sofisticado, uma espécie de Domingos reencarnado. Seja como zagueiro ou lateral, cada desarme, cada intervenção fazia-me o chão sumir, desconcertado com o nível do seu talento. De personalidade extremamente sensível, emotiva, sempre à flor da pele, o “Peixe-Frito” era como aqueles passarinhos aos quais só interessa voar em liberdade, pleno, sem amarras, gritando de peito aberto sua alegria de ser rubro-negro. Impossível manter-se indiferente à forma como exalava Flamengo em todos os seus poros.

ZÉ CARLOS
Quando somos crianças/jovens, em algum momento chega a desagradável hora de, nas peladas de rua, ir para o gol. Logicamente, aconteceu comigo. E eu não me apertava. A cada defesa, desajeitada ou não (até que eu me virava bem), gritava, a plenos pulmões o nome do goleiro flamengo “da hora”. Mas foi Zé Carlos quem me suscitou o maior prazer na incorporação do papel. Com efeito, o “Zé Grandão”, desde que entrou no meio de um jogo contra o Bangu, substituindo por contusão o instável Cantarele, a quem acabou barrando, encantou-me com um carisma advindo de uma simplicidade e uma genuína vontade de defender as cores flamengas. Bem antes das atuais “comemorações” midiáticas de defensores que esbravejam com estardalhaço um simples desarme, Zé Carlos exalava um prazer e uma satisfação arrepiantes a cada vez que impedia que o negro e rubro bastião inexpugnável fosse vazado. Uma alegria surda, digna, que saltava dos olhos. Zé Carlos era aquele cara que a gente torcia pra dar certo. Pra fazer as coisas acontecerem. E, efetivamente, o fez. Intervenções portentosas em jogos grandes, decisivos (Goiás-90, Atlético-87, Vasco-86, entre várias outras). Uma pena que, quando voltou anos mais tarde, não exibiu o mesmo nível. Houve goleiros melhores, mais completos. Houve goleiros de passagem mais duradoura. Mas poucos foram tão marcantes como Zé Carlos. O “Zé Caaaaaarlos” das minhas peladas de menino.

JÚNIOR
Uma das figuras mais emblemáticas de toda a história do Flamengo, colocando-se a serviço das cores rubro-negras por quase vinte anos. Primeiro foi o Capacete, bravo escudeiro de Zico, tido como seu sucessor natural na tarefa de liderar a equipe dentro de campo após a saída do Galinho para a Udinese. Mas não houve tempo, pois Júnior acabou seguindo a rota dos “fuoriclasse” da época, indo brilhar em campos italianos. Sua saída, em 1984, a poucos dias das Semifinais da Libertadores (em cuja Primeira Fase o Flamengo, num grupo dificílimo, voou e cravou a melhor campanha do torneio), foi mais um duro golpe do qual se demorou a absorver. Sem Júnior, perdeu-se um pouco da malandragem sadia, da malícia, da habilidade, da versatilidade e da irreverência que se revestia numa segunda pele flamenga capaz de esmurrar um torcedor do Fluminense que, invadindo o gramado do Maracanã, ousou tripudiar do Manto Sagrado. Voltou anos depois, e aí estampou-se a segunda etapa da sua trajetória. Agora era o “Vovô Garoto” que, como um vinho que soube maturar com primor, contrapôs com classe o ímpeto gaiato de uma jovem geração que surgia. Enfim, o timoneiro, o comandante que levou o Flamengo a mais duas conquistas nacionais, entre outros títulos. O Maestro. Júnior, por tudo o que significa e o que significou, evoca-me reverência. Respeito. E gratidão.

PETKOVIC
Marrento, enfezado, encrenqueiro, criador de caso. Mas dotado de um talento cintilante. Admito que um Camisa 10 típico, daqueles que chegam a andar meio de lado, com aquela passada de boleiro, um Camisa 10 desses é algo extremamente prazeroso de ver atuar. E Petkovic era desses. Dono de um drible curto e desconcertante, exímio finalizador, ótimo lançador, o sérvio chegou a me fazer deslocar para o inóspito Estádio do Barradão para apreciar seu luxuoso talento ainda defendendo as cores do EC Vitória. Mais tarde, já no Flamengo (com cuja contratação exultei), mostrou-se flamante, porejando passionalidade em seu futebol nervoso e sua incrível capacidade de arranjar desafetos. Protagonista dos dois mais festejados títulos do Século XXI e ao mesmo tempo capaz de processar o Flamengo em semana de jogo decisivo (Semifinais da Copa Mercosul, 2001), Pet foi daqueles caras peculiares, incapazes de suscitar qualquer sentimento que remeta à indiferença. Daqueles que se ama odiar. E amar.

ROMÁRIO
A segunda quinta-feira do ano pode ser apenas mais um dia útil, sem nada especial no calendário. Não para os baianos, que nesse dia comemoram a Lavagem do Bonfim, mais importante festa pré-carnavalesca do verão. E foi num dia de Lavagem do Bonfim que, após dias de apreensão, foi confirmada a bombástica contratação de ninguém menos que Romário, o melhor jogador do planeta, Campeão Mundial meses antes na Copa dos EUA. Completamente mergulhado num porre de felicidade, lembro-me de parar o trânsito do Centro de Salvador dançando no meio da rua, qual um trôpego Gene Kelly, aos gritos de “Romááááááário!”. O sujeito tinha tudo para virar-me ídolo. Mas, em que pese uma trajetória que varou meia década, faltou clube e jogador se “entenderem” melhor. Romário foi, seguramente, na minha opinião, o melhor atacante que vi vestir as cores rubro-negras. Desnecessário tecer loas à sua eloquente capacidade de marcar gols e mais e mais gols. Irrequieto, provocador, polêmico ao extremo, e genuinamente impressionado com o ardor da Nação Flamenga, Romário viveu uma passagem que, embora tão prolífica em gols, mostrou-se pálida em conquistas (nas quais, ironicamente, foi coadjuvante ou mesmo ausente nos momentos finais). Restou a frustração que marcou uma Era.

ADRIANO
Aos súditos, eis o Imperador!”. O menino grandalhão e meio desengonçado, que, aos insultos de “boneco de posto”, saiu da Gávea quase escorraçado, voltou consagrado como um dos mais letais atacantes do mundo. E, após tolerar coisas como Dimba, Dill, Negreiros e Josiel, vi pousar diante dos meus olhos aquele leviatã de dimensões descomunais devastando, qual um trator, sistemas defensivos inteiros. Um monstro imparável, imarcável, indomável. Que retormou ao Rio para ser feliz de pés descalços marcando gols pelo Mengão. Durou um ano. Um ano turbulento, regado a gols, troféus e encharcado de confusões e escândalos. Adriano apenas queria ser feliz na favela em que nasceu. E nos fez feliz. De um jeito meio estabanado, abilolado, quase irresponsável. Mas fez. Com todos os problemas, com todo o sofrimento de uma “Ressaca do Hexa” que durou meses, com toda a deprimente tormenta à qual a Nação Rubro-Negra foi forçada a se submeter, Sim, Adriano me deixou enfurecido com suas confusões e sua imaturidade. Mas é impossível deixar de lembrar com carinho da sua passagem tão efêmera quanto grandiosa.


OS ÍDOLOS

GAÚCHO
Ê ô, ê ô, o Gaúcho é um terror!”. Até hoje me arrepio à lembrança de 70, 80 mil vozes cantando e gritando em festa, camisas girando às mãos, as peripécias de Gaúcho. Era o início dos anos 90, e Gaúcho, centroavante de técnica mediana e cabeceio mortífero que andava encostado no Palmeiras foi a improvável solução que o Flamengo arrumou para fazer a torcida se esquecer de vez do apóstata Bebeto. Coisas do Flamengo. Gaúcho, cria da Gávea que, a exemplo de Nunes, precisou ser dispensado e correr mundo até ser repatriado, “chegou chegando”, assumindo responsabilidade, marcando gol atrás de gol. Não demorou pra se tornar o “menino grande” que, junto com a brilhante “Geração 90”, tornou-se a cara de um time competitivo e vencedor. Carismático, virou “Seu Boneco”, mandou “beijinho beijinho, tchau tchau” aos botafoguenses, decidiu jogos e campeonatos. Ergueu taças. E bagunçou o coração de uma torcida que, após alguns anos de apreensão, enfim se via representada em campo com talento e sangue. Quando o Flamengo ganhava, eu ficava feliz. Mas, se a vitória viesse com gol de Gaúcho, aí a festa estava completa. Gaúcho foi a essência do que eu penso de um atacante, de um Camisa 9. Um jogador que vivia do e para o gol. Vertical. Sem floreios. Recebeu, manda. Nisso, decidia jogos e tirava onda. Machucava rivais. Não pipocava (certa vez, na Bombonera, esbofeteou um zagueiro que o intimidava). Mas o futebol cobra preços. E um dia, Gaúcho precisou ir embora. Restou a saudade de tardes de sol faiscante, em que uma torcida enlouquecida estremecia o Maracanã enquanto os Gaúcho's Boys rodopiavam em mais um trenzinho à beira das gerais. Sim. Foi muito intenso. Foi febril. Foi Flamengo.

RENATO GAÚCHO
Esse time do Inter, pra chegar ao nível do nosso, precisava de mais uns seis jogadores. Não tem a menor condição de nos tirar o título no Maracanã”. Poucos mortais teriam a capacidade de, a poucos dias de uma nervosa Final de Campeonato Brasileiro, desferir tal petardo sem sequelas futuras. Mas Renato Gaúcho, detentor de uma autoconfiança que resvalava à insensatez, falava, provocava e fazia acontecer. Era arrepiante a sua capacidade de agigantar-se nos grandes palcos, de crescer nos momentos que separavam os homens das crianças. Tal como o Flamengo. Bon-vivant, falastrão e mesmo capaz de angariar amizades e desavenças (muitas das quais movidas por ciúmes), Renato, a despeito da personalidade controversa (que, suspeita-se, derrubou treinadores e mesmo dirigentes), era dos que puxavam fila em treino. Jamais sonegou uma gota de suor dentro dos gramados, exigindo dos companheiros o mesmo comportamento. Um verdadeiro dínamo de sangue e músculos, fazia o diabo com as defesas adversárias, semeando terror e caos entre torcidas em pânico. Meus olhos brilhavam, febris. Sempre vi naquela máquina de dribles e arrancadas algo de Flamengo em essência. De vitalidade. De vontade de vencer. De se negar a sair de campo derrotado. Talvez por isso, tenha se conectado tão bem ao rubro-negro, ao qual sempre se manteve atraído qual ímã. Quatro passagens, algumas vitoriosas (dois títulos nacionais), outras controversas. Lembro-me de, numa delas, jogar peladas com uma fita na cabeça, emulando o sujeito. Infelizmente, depois virou treinador e andou, em outros clubes, falando umas bobagens. Também, contrariando seu comportamento nos gramados, já deu umas pipocadas quando confrontado com a oportunidade de se reencontrar com o Flamengo. Enfim. Se o Portaluppi atual parece algo reticente e assustado com a expressão e a grandeza do Flamengo, resta a lembrança da época em que o camisa 7 (depois, 9) arrebentava defesas dentro e fora de campo. Do tempo de uma relação que foi intensa e pulsante enquanto durou.

ZICO
Complicado falar de Zico sem cair no lugar-comum. O Galinho, mais do que ídolo, foi meu super-herói de infância, o 10 do meu jogo de botão. O cara que comandava o Exército do Bem, engalanado de vermelho e preto, contra as coloridas falanges do Mal. E que, invariavelmente, vencia jogos e taças. Zico executava com perfeição todos os fundamentos da bola, sabia atuar em todas as posições do meio pra frente, possuía notável inteligência e leitura de jogo. Mas o que mais tornava-lhe especial era a forma como se entregava de maneira quase desumana ao ímpeto de defender as cores flamengas. A absoluta recusa de sair de campo sem que o Flamengo retivesse a última palavra. A competitividade extrema, sem concessões. Tudo isso dentro do mais perfeito espírito de jogo limpo, ético. Exemplos que levei, e levo, para toda a vida. O que Zico sofreu e padeceu durante dois anos, e sua espetacular reviravolta por cima, Brasil a seus pés, é algo de roteiro de Hollywood. Zico, mais do que a personificação do Flamengo, era o próprio Flamengo em campo. Poucas instituições se confundiram de forma tão indelével com um atleta como a relação estabelecida entre o Flamengo e Zico. Uma relação cuja energia até hoje movimenta e impulsiona toda uma Nação.

* * *

Restou, ao final dessa variada rodagem, a constatação de que, com toda a admiração, o respeito, a reverência e a idolatria que esses, e outros não listados, nomes merecem, minha relação maior de devoção, de fé, de fanatismo quase religioso, jamais se estendeu a qualquer jogador, por mais expressivo que fosse. Com efeito, percebo que nunca, jamais, em tempo algum, ostentei em algum Manto Flamengo algum nome que identificasse algum atleta do clube. Não que alguém não se me merecesse. Longe, muito longe, disso. Mas é que, nesse arco de quatro décadas, agora percebo que, independente de quem venha ou vá, quem de fato arranca-me das entranhas arroubos taquicárdicos, faz-me perder a vez, a voz e a razão, nubla-me os olhos, embota-me de sangue a existência, quem me faz rebentar em suspiros e urros capazes de me sequestrar a existência, é o próprio CR Flamengo em si. O Flamengo, e não mais do que o Flamengo, é o que paira sobre um altar anímico ao redor do qual deixo, entregue, minha alma exangue a cada jogo. E assim é, e assim será enquanto vivo for.

Sou Flamengo. E uma vez assim, será até perecer. Como no Hino.