quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Alfarrábios do Melo



“Desastrosa, não. Chegamos na semifinal da Copa do Brasil, passamos de fase na Libertadores, que não vinha acontecendo e estamos brigando pelo Brasileiro. Sou flamenguista e lembro que antes a briga era embaixo.” (Duarte, Léo – 08 de novembro de 2018)

Saudações flamengas a todos.

Não sei qual o nível de catecismo que se pratica dentro da torre de cristal encerrada pelas quatro paredes do ermo Ninho do Urubu. Também nunca fui muito de prestar atenção a entrevistas de jogadores que, garroteadas pelas regras impostas pela postura politicamente correta de um código tácito de ética ou pelo mero “media-training” dos mais abastados, exalam declarações plásticas e anódinas de pouco efeito prático. No entanto, a repetição “ad nauseam” de platitudes como as desferidas pelo zagueiro Léo Duarte na antevéspera do vexame protagonizado no Engenhão (em que um time omisso, apático e frouxo tangenciou a perspectiva de sofrer uma goleada histórica), usualmente eivadas de auto-indulgência, conformismo, resignação e inaceitável familiaridade com a prática de se deleitar no fétido lodaçal em que se emporcalham os derrotados, não deixa de chamar indignada atenção para a mais absoluta desconexão entre o estranho CR Flamengo de hoje e os anseios e expectativas de sua gente.

Os alienados petardos expelidos pelo talentoso zagueiro evocam antigos subterfúgios entoados de forma quase dogmática pela entourage que, há seis anos, recebeu a incumbência de resgatar a dignidade de uma instituição solapada por anos e anos de administrações infelizes. Nas palavras do ilustre Duarte, ecoam-se, de forma subliminar e algo sutil, ou nem tanto, surrados bordões, como: “quem reclama quer a Patrícia de volta”, “mudamos de patamar”, “quando a bola entrar ninguém vai segurar”, entre outras direcionadas manifestações de uma conveniente fé.

Conveniente, visto que alude a espectros de uma percepção geral que se pretende transmudar qualquer elemento do passado mais recente do CR Flamengo em algo deplorável, ultrajante, indigno de qualquer cotejo com as práticas “modernas”, “sofisticadas” e, principalmente, “profissionais” dos eleitos a “salvar o Flamengo” de seus deletérios dirigentes pretéritos.

Pouparei a nós todos de pontuar que o Flamengo realmente subiu de patamar administrativo, que o trabalho de resgate foi fantástico, e blá, blá, blá. Qual o saudoso Odorico, sairei desses entretantos e migrarei logo para os finalmentes.

E nesses finalmentes os convido a imaginar o que o dileto Léo Duarte, ou qualquer membro deste Flamengo de hoje, diria ao ser confrontado com alguns cestos de resultados que a seguir serão apresentados.

Vamos ao primeiro:

“Quartas-de-final da Libertadores. Quarto lugar no Brasileiro. Quartas-de-final da Copa do Brasil. Campeão Estadual invicto”

Se o atingimento das Oitavas da Libertadores é tão celebrado no discurso atual, chegar às Quartas teria um efeito quase que de bálsamo, é de se concluir. E fico a pensar, diante de um trabalho que festeja um sexto lugar de Brasileiro, o que aconteceria diante de uma quarta colocação. Ocorreu-me imaginar a execução de uma animada volta olímpica.

Próximo pacote:

“Quartas-de-final da Libertadores. Final de Torneio Continental. Fase semifinal do Brasileiro. Semifinal da Copa do Brasil”

Pois. Mais um pacote bastante atrativo, na régua de avaliação de resultados da atual Diretoria. Quartas da Libertadores (com o adicional de ter sido eliminado pelo campeão). Finalista de um torneio sul-americano. E classificações “de protagonista” em competições nacionais, algo que, como se depreende das palavras do Sr. Duarte, é bastante valorizado pelo trabalho atual. Pode-se, portanto, inferir que os “donos do destino” do Flamengo apreciariam com certo gáudio encerrar uma temporada com tal coleta de êxitos. Haja bônus.

Encerro com uma derradeira coleção, para não tornar a brincadeira cansativa. Aí vai.

“Final de Torneio Continental. Final de Copa do Brasil. Semifinal de Brasileiro. Outras duas vezes semifinalista de Copa do Brasil. Campeão Estadual invicto. Final de Torneio Rio-São Paulo.”

Não é difícil imaginar o nível de entusiasmo com que esse conjunto de realizações seria tratado pelos paredros flamengos de hoje, haja vista o descomunal esforço de transformar em positiva a frustrante temporada de 2017.

Muito bem. Se vislumbrarmos que cada pacote de resultados aqui citado foi amealhado, cada um, ao longo de períodos de um a três anos, podemos, não sem certa razão, assumir que se trataram de momentos em que o clube desfrutou de certo protagonismo. Afinal, e sempre harmonizando-nos com a linha de pensamento azul-rosada, torna-se necessário manter a coerência.

Os mais sagazes certamente já terão percebido que os conjuntos de resultados aqui estampados se reportam, respectivamente, aos anos de 2010-2011, 1993 e ao período 1995-1997. Ou, em linguagem mais direta, aos “êxitos” enfeixados quando o clube estava sob o comando de Patrícia Amorim, Luís Augusto Velloso e Kléber Leite. Nomes que, fora de períodos eleitorais, costumam emular incontida repulsa dos arautos do “novo”.

O que não deixa de suscitar certa confusão. Pois, a despeito de terem (com inteira justiça, diga-se) entrado para a história como administrações lastimáveis, apresentaram resultados esportivos equivalentes ou melhores do que os deste "Flamengo de notáveis" de respostas prontas e unidimensionais.

O Flamengo já viveu outros momentos difíceis em sua história. Eras de escassez. Épocas de dor, sofrimento, derrota. Não é, especificamente, a falta de resultados expressivos a principal fonte de indignação, irritação. O que entorpece a um rubro furor de cólera, o que nos faz rebentar em caudais impropérios de fúria, é a cínica tranquilidade com que este Flamengo de hoje se atira à prática de se irmanar em inarredável comunhão com os preceitos da derrota. De dardejar alegremente subterfúgios e respostas prontas, de enlaçar números e os dispor da maneira mais adequada às teorias do momento, de repetir sempre as mesmas e mesmas práticas com o fito de, algum dia, pretensamente demonstrar o êxito de suas certezas.

Mais do que perder, o que incomoda nesse Flamengo de hoje é saber perder.

* Em tempo: assumindo que as recentes declarações do volante Cuellar, exprimindo inconformismo e indignação, são sinceras e espontâneas, há que se reconhecer talvez um sopro de vida nesse elenco letárgico. Que disso emerja, a partir de 2019, algo mais compatível com aquilo que todos nós ansiamos ver representado dentro de campo. Onze jogadores honrando o mais caro dos lemas flamengos: "Tua Glória é Lutar". Frase que hoje soa tão etérea e distante quanto os longínquos anos de ouro que muitos ainda insistem em evocar.