quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Alfarrábios do Melo


O Flamengo vence a série por 6-5.


O zagueiro Corti, do River Plate, ajeita a bola na marca da cal e se encaminha para a cobrança. Sem tomar muita distância, corre para a bola e manda uma bomba, um chute forte, no meio do gol, a tal “batida de segurança”. Mas o tiro não ganha muita altura e o goleiro Gilmar, que já antevera a intenção do argentino, consegue espalmar e realizar a defesa que classifica o rubro-negro para as Semifinais da Supercopa Libertadores, o que é comemorado com entusiasmo no gramado do Maracanã por jogadores, dirigentes e torcedores.

Mal sabem que o inferno está para começar.

Com a conquista da vaga na Supercopa, o Flamengo precisa conciliar os jogos decisivos da competição continental com a reta final do Campeonato Brasileiro. O rubro-negro disputa uma das vagas para a Segunda Fase, precisando, para isso, classificar-se entre os três primeiros em uma chave com oito equipes. O Corinthians de Mário Sérgio já está classificado e as duas vagas restantes são disputadas por Flamengo, São Paulo, Internacional e, correndo por fora, o Cruzeiro. Novembro se aproxima acenando para a disputa de jogos decisivos, contexto tão apreciado pelos flamengos.

O problema é o calendário.

A política da Diretoria que assumiu o clube em janeiro é bem clara. Ganhar tudo, sem priorizar. Os dirigentes entendem que apenas jornadas vitoriosas são capazes de perpetuar seus comandantes e fazê-los respeitados. Ainda são recentes na memória os mandatos de alguns Presidentes tachados com a pouco altaneira alcunha de “pé-frio”, pela falta de conquistas. Assim, o clube não pode “dar-se ao luxo” de desprezar nenhuma conquista. Carlinhos, no início do ano, tentou priorizar a Copa do Brasil e a Libertadores, disputadas simultaneamente com o Estadual. Essa iniciativa lhe custou o cargo.

Não que falte qualidade ao elenco. Ao contrário, o Flamengo reúne uma das melhores equipes do país, mesmo com baixas recentes (Gaúcho, W.Gotardo e Uidemar). A consagrada sistemática de mesclar jogadores de alto nível com jogadores formados pelo clube segue sendo adotada, e agora enfim os egressos da fabulosa Geração da Copa SP 1990 parecem de fato prontos a exercer o tão esperado protagonismo na equipe titular (apesar de uma baixa importante, o meia Djalminha, talvez o mais talentoso da safra). Com isso, o Maestro Júnior, agora treinador, dispõe de um respeitável time-base: Gilmar, Charles Guerreiro, Júnior Baiano, Rogério e Piá (Marcos Adriano); Fabinho, Marquinhos, Nélio e Marcelinho; Renato Gaúcho e Casagrande.

No entanto, ao contrário de recentes temporadas vitoriosas, há escassez de peças de reposição. A lenta e contínua debandada de jogadores iniciada em 1992 tem sido reposta com jogadores medianos ou que não conseguem se adaptar ao clube. O lateral-direito Jorge Antonio, o volante Eder Lopes e o atacante Edu Lima, com atuações frustrantes, estão em nível bem abaixo ao dos titulares. E os jovens da base ainda parecem “verdes” (com poucas exceções, como o zagueiro Gelson Baresi) para tamanha responsabilidade. O diagnóstico, portanto, é claro. Se quiser disputar o Brasileiro e a Supercopa no nível que as partidas finais exigirão, o clube terá que escalar força máxima. Em ambas.

Sábado dia 30 de outubro a tabela marca um confronto com o Internacional (adversário direto na disputa pela classificação no Brasileiro) no Beira-Rio. Na quinta dia 4, o jogo de ida contra o Nacional-URU pelas Semifinais da Supercopa (jogo no Pacaembu, pois o Maracanã está interditado para a realização de um show da cantora Madonna). Permanecendo em São Paulo, o rubro-negro enfrenta o São Paulo no domingo 7, no Morumbi. Depois, viagem a Montevideo para o jogo de volta contra os uruguaios na quarta, dia 10. Desembarque praticamente direto pro reaberto Maracanã, para na sexta, dia 12 enfrentar o Botafogo, pela penúltima rodada do Brasileiro. E, fechando a primeira fase da maratona, no domingo dia 14 a última partida, contra o Corinthians, também no Maracanã. 

Um total de 6 jogos num espaço de 15 dias.

E o Flamengo sobrevive.

No Brasileiro, o time “perde quando pode” nos jogos fora de casa e consegue encaminhar a vaga ao derrotar (2-0) o moribundo (mas supostamente turbinado por uma “ajudinha” financeira externa) Botafogo e administrar um empate contra os corintianos, resultado suficiente para assegurar a classificação. E, na Supercopa, o time, apesar de desperdiçar a chance de golear em São Paulo (vencia por 2-0, perdeu inúmeros gols e sofreu um preocupante tento nos descontos), profana o Estádio Centenário e enfia retumbantes 3-0 no Nacional, placar que não resulta ainda mais elástico em função das pedras atiradas pelos torcedores, o que suspende o jogo a quinze minutos do fim.

Mesmo assim, há problemas. O evidente desgaste físico começa a expor os nervos dos jogadores. Nélio é expulso com apenas seis minutos de jogo na partida contra o Corinthians, obrigando o time a correr com um jogador a menos por quase noventa minutos numa ensolarada tarde de um Maracanã sob horário de verão. Renato reclama publicamente de ter sido substituído por Júnior na vitória sobre o Nacional no Pacaembu, e o Maestro, também publicamente, o adverte diante do elenco. As desavenças de Renato com os “pratas da casa” seguem intensas, especialmente com Júnior Baiano. Rogério não se entende com Gilmar, queixando-se da gesticulação excessiva do goleiro em lances de gol. Casagrande, após bom início, cai de rendimento e demonstra dificuldade em lidar com as críticas que entende excessivas. Como agravante, o elenco não recebe salários há três meses, e os jogadores extraem da Diretoria o aviso de que a crise financeira somente poderá ser amenizada com vitórias e títulos.

É esse Flamengo, esgotado fisica e mentalmente, que irá começar a decidir os títulos da Supercopa e do Brasileiro.

17 de novembro, quarta-feira, três dias após o empate contra o Corinthians. O Flamengo está em campo novamente. É o primeiro jogo da Final da Supercopa, contra o São Paulo, no Maracanã. Muito se comenta sobre um paralelo entre o desgaste das duas equipes, já que os paulistas enfrentam um calendário tão severo quando o do rubro-negro. Mas há atenuantes para os de Telê, que lidam com mais naturalidade com a perspectiva de poupar alguns titulares quando necessário, sem falar na diferença de estrutura entre os clubes, que começa a se fazer notar de forma inapelável. Por exemplo, enquanto o tricolor paulista freta aviões para suas viagens, o rubro-negro, assolado em dívidas, faz uso de voos comerciais, retendo seu plantel por até três horas nos aeroportos.

O Flamengo faz bom jogo. Inicia perdendo, mas vira a partida com dois gols de Marquinhos e pressiona para ampliar o placar quando Júnior Baiano acerta uma voadora em Cafu e é expulso. Com um a mais, o adversário cresce na partida e chega ao empate de 2-2. A atitude do zagueiro acende nova crise no vestiário. “Se não inventasse querer fazer o que não sabe, seria um ótimo zagueiro”, dispara Renato.

Não há tempo para germinar crises. Sábado, dia 20. Agora o Flamengo está na Fonte Nova para enfrentar o Vitória, primeiro jogo da Segunda Fase. Além dos baianos, Santos e Corinthians completam o grupo do qual sairá um dos finalistas. O jogo, disputado sob sol escaldante, é equilibrado e decidido quando Renato Gaúcho comete um pênalti infantil em Pichetti, que é convertido por Roberto Cavalo. O Flamengo larga mal na disputa. Pessimista, o Presidente desfere mais um de seus “vaticínios reversos”: “Perdemos pontos irrecuperáveis. Esse time do Vitória é muito fraco e não vai tirar ponto de mais ninguém”.

Alheios ao dirigente, os jogadores seguem se desentendendo. De alma lavada, Júnior Baiano devolve cada alfinetada aos jornais: “Pois é. Perdemos. Jogador não resolve lá na frente, vem aqui pra trás fazer bobagem. Acontece.”

Quarta-feira, dia 24. Data da Final da Supercopa, no Morumbi. A grande chance rubro-negra de erguer um troféu na temporada, embora o adversário seja considerado, não sem razão, franco favorito. Joga em casa e possui uma das melhores equipes do planeta (até porque é o atual Campeão Mundial). Mas o Flamengo, jogando com muito brio e inteligência, protagoniza um dos mais espetaculares jogos da temporada, que termina em um novo 2-2. Nos pênaltis, Marcelinho (um dos destaques da equipe) desperdiça sua cobrança e o título escorre pelo ralo. O jovem, triste, dá de ombros: “Até Zico, que é Zico, perdeu pênalti decisivo. Tem que levantar e seguir.”

Seguir em frente é o lema. Até porque não há espaço para divagações, já que a saga continua. Inacreditavelmente, o Flamengo, menos de 48 horas após a Batalha no Morumbi, está novamente em campo, dessa vez para enfrentar, em uma gelada noite de sexta, o Santos no Maracanã. Alguns jogadores parecem no limite da estafa. Casagrande, esgotado, chama os jornais e se entrega: “Não quero mais jogar pelo Flamengo”.

As instruções táticas são transmitidas durante os voos, com conversas entre Júnior e os jogadores. O Flamengo adota a prática de viajar apenas horas antes das partidas, tentando proporcionar ao elenco um mínimo de descanso. Os atletas são orientados a permanecerem deitados e dormindo nos espaços entre os deslocamentos. Não há treinamentos desde outubro. É apresentar, viajar, jogar e descansar. Uma rotina quase desumana que acaba por se tornar, mais do que os adversários, o principal inimigo do Flamengo na temporada.

O jogo contra o Santos termina empatado, 1-1. E domingo, DOIS dias depois, tem jogo de novo, dessa vez contra o Corinthians, também no Maracanã, em mais uma tarde de calor de cerca de 30 ºC. Alguns jornalistas demonstram indignação. “É algo inacreditável. O Flamengo está jogando quase diariamente”.

O público, saturado e desconfiado, permanece em casa. Contra o Santos, 4 mil testemunham o melancólico empate. Na partida diante dos corintianos, cerca de 13 mil vão ao Maracanã presenciar um enredo já repetitivo. O Flamengo, enquanto tem pernas, inicia pressionando, valendo-se da maior qualidade de seus jogadores. Abre o placar. E começa a rodar a bola para administrar a vantagem. No entanto, o time cansa na segunda etapa. E o adversário, já conhecendo o ponto fraco flamengo, começa a imprimir maior velocidade. Chega ao empate e não vence por conta das defesas milagrosas de Gilmar, cuja fase o levará à Copa do Mundo do ano seguinte. Foi assim contra o Santos. É assim contra o Corinthians. Mais um empate. Outro 1-1. O Flamengo respira por aparelhos no Brasileiro.

O rubro-negro ainda não está eliminado porque os outros resultados, com muitos empates, embolam a chave, num enredo parecido com o do ano anterior (que terminara em final feliz). Ainda resta o returno e o Flamengo depende somente de si para chegar à Final. Mas a “decisão” será na quarta-feira seguinte, contra o Corinthians, no Morumbi. Somente a vitória interessa.

E, atuando no limite extremo das suas forças, o Flamengo realiza uma das suas melhores exibições do ano, impondo-se ao adversário (de nível técnico inferior ao do São Paulo), dominando e controlando amplamente as ações. Mas esbarra na atuação lastimável do árbitro Renato Marsiglia, que deixa de assinalar um pênalti clamoroso em Renato, expulsa o goleiro Gilmar após este ter recebido uma entrada criminosa de Rivaldo, inverte e inventa faltas próximas à área rubro-negra, a ponto da equipe que transmite o jogo pela TV pontuar que “é uma atuação muito ruim, mas estranhamente ele só erra para um lado”. Assim, a partida, também extremamente emocionante, termina com mais um empate, um 2-2. É o fim.

No sábado seguinte, o Flamengo, extenuado e desmotivado, arrasta-se em campo e é derrotado pelo Santos (2-1), num jogo em que o único fato positivo é a atuação do jovem Sávio, que enfim recebe uma oportunidade entre os profissionais. Na quarta, diante do Vitória que, ao contrário das “previsões” do Presidente, lidera a chave e precisa apenas de um empate para chegar à Final, o Flamengo novamente atua de forma apática (muitos jogadores, irritados com a arbitragem no Morumbi, parecem não demonstrar muita vontade de correr para classificar justo os corintianos) e encerra a temporada com um melancólico 1-1, comemorado “discretamente” pelos pouco mais de 1.500 torcedores que se aventuram a ir ao Maracanã.

E assim, após uma sequência de 14 jogos em 38 dias, termina a temporada 1993, com números eloquentes. 103 jogos (9 com reservas). Seis competições. Nenhum título.

Estão chegando as férias.

Vai começar o desmanche.