quarta-feira, 30 de maio de 2018

Alfarrábios do Melo


Manhã preguiçosa de sábado.

Entregue ao aconchegante abandono horizontal de um sofá, e ainda reencontrando meu centro gravitacional e existencial após certa travessura etílica na véspera, vou dedilhando sem pressa e sem atenção a tela do pequeno aparelho que me está à mão, ansiando para que a despreocupada, quase leviana busca por alguma nota relevante se descortine vã. Sem paciência para ruminar qualquer esboço de pensamento mais sofisticado que reações automáticas de aprovação ou negação ao que se me escorre aos olhos, que ainda teimam em se manter semicerrados, enfim me deparo com uma imagem que, por repetida, suscita emergir um laivo de irritadiça curiosidade. Afinal, por que catzo a foto do Petkovic comemorando o gol do tri parece brotar do chão qual joio?

Sim, naturalmente, alguém lembra lá de dentro da minúscula tela: amanhã faz aniversário.

Ainda ronrono, antes de renunciar à prerrogativa de tentar impedir que o sono complete sua obra: “Caramba, dezessete anos...”

Em que pese o quase irresistível ímpeto de recorrer a chavões recitando a “inexorabilidade do tempo”, a “percepção de como somos pequenos diante do passar dos dias” ou outras frases feitas que encontraram vasto abrigo no imaginário popular, e por isso mesmo se transmudaram nos tais clichês, prefiro trilhar outras vias, embora seja impossível escapar das reminiscências que nos fazem pulular espevitados, ignorando crateras temporais e nos trazendo a hoje o pretérito mais que perfeito. Memória.

Foi um campeonato místico. Não há outra definição que vista com mais propriedade a saga daqueles primeiros meses do ano da graça de dois mil e um. E o exercício da fé começava no nosso banco de reservas, com o Velho Lobo Zagallo, devoto de Santo Antônio, sim senhor. O homem que seria o condutor do tri, do qual já falava desde o final do ano anterior, com uma obsessão quase religiosa. Fé.

Os sinais começaram em outubro, 2000 ainda. O alemão Michael Schumacher, depois de bater na parede por três anos, enfim conseguiu se sagrar tricampeão de Fórmula 1, ao vencer o GP do Japão. Já virado o ano, a Imperatriz cantou a cana-de-açúcar no Sambódromo e cravou o tri do carnaval carioca. Ao longo de todo o primeiro semestre, as tevês cobriram entusiasticamente a preparação do tenista Gustavo Kuerten, em busca do tricampeonato de Roland Garros (que acabaria conquistando em junho).

“Schumacher, Imperatriz, Guga… Não tem jeito, esse ano é de tri”, eu perturbava meu amigo vascaíno.

Começou morno, como sempre começa. Com um regulamento mondrongo, que mesclava duas fórmulas de disputa diferentes para cada turno, o campeonato fez desfilar em suas primeiras rodadas as tediosas surras dos grandes sobre os pequenos. Melhor para o Flamengo, que aproveitou esses jogos contra os sparrings para entrosar seu ataque, e para o Capetinha Edílson, que começou a fazer gol de tudo que é jeito e tipo. Quatro escovadas contra Olaria, Americano, Volta Redonda e Bangu (essa última mais sofrida, 3-2 de virada) e pimba, lá estávamos em primeiro na chave, entre os quatro classificados para a fase seguinte da Taça Guanabara. Sem zebras, os quatro grandes classificados. Flamengo, Vasco, Fluminense e Americano.

E na Semifinal, o primeiro encontro com o Vasco. E mais uma manifestação esotérica. Pois, num jogo equilibrado em que desfilavam em campo jogadores como Romário, Juninho Paulista, Viola, Edílson e Adriano (que ainda não era o Imperador), quem fez a diferença foi o inacreditável Roma, que entrou no segundo tempo para incendiar o time e o jogo. Como que guiado por pés divinos, o limitadíssimo Roma (uma espécie de imitação chinesa de um genérico do Romário) começou a costurar meia defesa vascaína e assim iniciou a jogada que rebentou num cruzamento para a cabeça de Beto, a menos de dez minutos do fim. Flamengo 1-0, e ficou desse jeito.

Passou o Carnaval, veio a Final da Taça GB, num sábado para 70 mil no Maracanã. Flamengo sem Petkovic (lesionado) e Edílson (convocado para a Seleção), contra o Fluminense de Asprilla. Jogo ríspido, corrido, trancado e muito pouco inspirado. Evidentemente o Sobrenatural iria ter de agir. E soltou seus sinais. Primeiro, quando Reinaldo, o reserva de Edílson, marcou talvez seu primeiro gol de falta na vida, batendo perfeito no canto do goleiro, Zico assinaria. Depois, como que para arrebentar as retinas dos céticos, já na decisão de pênaltis decorrente de um empate árido, quando o lateral-esquerdo Cássio, jovem e razoável reposição para a saída de Athirson, executou mal sua cobrança, defendida pelo goleiro Murilo, mas a bola, numa trajetória transcendental, repicou, ondulou e quicou para dentro do arco tricolor. “Gol da bola”, gritaram os jornais. Era o além.

Flamengo campeão. “Falta só uma etapa pro tri”, e a frase de Zagallo já avisava como seria a Taça Rio. O Segundo Turno se arrastaria em uma longa fase de pontos corridos. Acomodado e vivendo seus problemas internos (salários atrasados, elenco desunido), o Flamengo logo se viu fora da disputa ao perder dois jogos seguidos para Americano e América (ambos por 2-1). Melhor para o Vasco, que enfim reencontrou sua competitividade e ganhou com facilidade o turno, com direito a espancar o Botafogo por 7-0. Na última rodada, Flamengo e Vasco, num jogo que virou “amistoso”, meteram os seus respectivos reservas. Aliás, o Flamengo nem o Manto principal vestiu, arrumou uma camisa vermelha pra colocar em campo. E só o loirinho Nélio valeu a pena naquele cansativo 0-0, emulando Sávio e se revestindo no maior craque de todos os tempos de um jogo só.

E para surpresa de ninguém, Flamengo e Vasco se encontraram pela terceira vez seguida para mais uma final de campeonato. E pela terceira vez seguida o Vasco era tido como favorito. Vivia momento melhor (vinha de títulos das Copas Mercosul e João Havelange) e seu time era considerado mais equilibrado que o rubro-negro. E sua Diretoria vinha obcecada em impedir que o clube sofresse a terceira derrota seguida para o maior rival em finais. Romário, Juninho Paulista, Jorginho, Viola, Euler, Helton, Alexandre Torres, contra Júlio César, Juan, Gamarra, Leandro Ávila, Petkovic, Adriano e Edílson, essas eram as duas bases.

E depois do primeiro jogo pareceu mesmo que aquela seria a vez da caça. O Flamengo jogou melhor, incomodou mais, abriu o placar com um belo gol de Petkovic, mas duas falhas individuais no final da partida deram a vitória aos vascaínos por 2-1. Pela primeira vez nessa trilogia o Flamengo teria que construir uma vantagem de dois gols para conseguir o tão almejado tri.

Mas ainda havia um jogo a ser disputado, e aqui o clichê me pede licença para avisar que “estava escrito”. E foi quando o infernal Edílson, logo no começo do segundo tempo, finalizou de cabeça uma jogada espetacular de seu desafeto Petkovic e abriu 2-1 no placar que sobreveio a certeza. Porque ficou tudo na conta do drama. E, quando se abre espaço para a emoção, o épico, a epopéia, a batalha cardíaca, o Flamengo está à vontade, talhado que está para viver as sensações mais extremas. E, de mãos dadas com todas as divindades da bola, sua gente se preparou para a glória que lhe estava esboçando sorrir. É como se soubesse como as coisas terminariam.

Entretanto, foi necessário exercitar a fé. Crer. Entender os sinais divinos, presentes em cada intervenção do jovem goleiro Júlio César, cujas defesas definitivamente não eram resultado de uma obra humana. Havia algo de bíblico em cada um dos milagres que se multiplicavam das suas mãos como fungos ao longo daqueles trinta, quarenta minutos restantes. E aquele dois a um teimava em repousar pétreo no placar do Maracanã, derramando escaldantes tintas de extasiado desespero aos dois lados do apinhado estádio. O relógio escorria, célere, aproximando-se do abismo. O Flamengo, exangue, parecia impotente diante da parede montada pelo Papai Joel Santana. Parecia amparado apenas e tão somente pela crença de sua gente, que seguia cantando nervosa a sua esperança de felicidade. “Seremos campeões”.

Quarenta e três minutos. Um ataque suicida, falta. A bola está distante do gol. Petkovic, que durante o jogo dispôs de um punhado de oportunidades semelhantes e invariavelmente despejou a bola para as arquibancadas, persevera. Não admite interferência. Ajeita a pelota. E, subitamente, rebenta o mistério divino. Uma multidão de dezenas, centenas, milhares, milhões de flamengos ergue as mãos aos céus. Invoca sua fé. Clama, chama, evoca, invoca a santos, orixás, anjos, arcanjos e tudo o que é de mais sagrado, numa irresistível e inesquecível manifestação de força coletiva. E se dá o milagre da união, da sintonia de todos os povos flamengos canalizada e concentrada em apenas uma e uma só vontade. Não há quem não se arrepie. Petkovic segue ajeitando a bola. Alessandro reza. Reza o estádio. Reza a cidade. Reza o país. Reza a Nação. Trila o apito. Petkovic parte pra cobrança.

Dezessete anos. Tempo pra burro.