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Estou fora.
-
Como é que é?
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Estou fora. Deu. Acabou. Tô saindo.
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Tem certeza, Paulo? Não é melhor se acalmar um pouco? Aqui, de
cabeça quente… Vá pra casa, pense melhor…
-
Não, não. Essa decisão eu já tinha amadurecido. Hoje a coisa só
apressou. Eu sei e você sabe como isso vai evoluir. Tô só
antecipando o que já é inevitável.
-
Não tem chance de reconsiderar?
-
Não. Nenhuma.
-
Então tá bom. Só lhe peço uma coisa. Segura isso até amanhã,
não fale a ninguém. Aí lá na Gávea a gente anuncia pra todo
mundo.
-
Ok. Isso eu posso fazer. Mas só até amanhã.
-
Fechado. Até mais, então.
Lívido
e aturdido, quase transtornado, o VP de Futebol sai se esbarrando,
aos tropeções, em sujeitos semi ou totalmente despidos, microfones
e câmeras que se acotovelam no úmido, abafado e confinado salão de
banho azulejado do Maracanã. Após alguns angustiantes minutos,
enfim encontra seu alvo. Esbaforido, aborda-o de trambolhão, quase
derrubando seu interlocutor.
-
Presidente, Presidente…
-
Pô, o que foi? Vai ter um treco, assim!
-
O Paulo, Presidente. O Paulo pediu demissão.
-
(…)
-
Ele falou comigo agora. Quer sair. Diz que não tem volta. Mas
garantiu que não vai vazar até amanhã.
-
Chama o pessoal. Vamos agora pro Le Coin.
O
Flamengo acaba de derrotar o modesto Tiradentes-PI por 2-0, num jogo
em que precisa de apenas 25 minutos para definir o marcador, com dois
gols de Zico. No entanto, a atuação apática e burocrática no
restante do tempo irrita a torcida, que passa a perseguir os
jogadores com vaias e ofensas. Não por acaso. Desde a perda do
Estadual e da Libertadores no final do ano anterior, há uma espécie
de divórcio entre o time e seu torcedor. Atuações apagadas
cobertas por vaias têm permeado a realidade do rubro-negro. No jogo
contra os piauienses, apenas o jovem atarracado ponta-esquerda Edson
vai mostrando algo parecido com um futebol moleque e alegre. Edson,
egresso da base, já deixara uma assistência e arrumado um pênalti,
que Zico desperdiçara, batendo pra fora. O “prêmio” ao garoto
baixinho é ser o “eleito” para sair, dando lugar à estreia de
outro jovem, o baiano Bebeto. A opção pela saída de Edson põe o
Maracanã abaixo, num coro de “burro”, “jumento”, “vendido”
e outros adjetivos pouco altaneiros desferidos ao treinador
Carpegiani. Que, ao final dos 90 minutos, desiste. E avisa que está
fora.

E
assim, Carlinhos, com 43 anos, sem nenhuma experiência prévia como
treinador profissional, é efetivado como o novo treinador do
Flamengo.
A
notícia da saída de Carpegiani é recebida com surpresa e
inesperada frieza. A sensação é de que o ciclo, encerrado nas
derrotas do fim do ano anterior, havia sido desnecessariamente
estendido. As vaias do Maracanã apenas sinalizaram a necessidade de
mudança premente. O Flamengo arrasta-se em campo, sem motivação ou
competitividade. Vai se impondo contra times mais fracos e, com a
exceção da ótima atuação no empate (1-1) em Porto Alegre contra
o Grêmio pela Libertadores, tem sido inapelavelmente superado por
adversários de melhor nível. Com a mudança na comissão técnica,
a expectativa é que o elenco reaja positivamente.
E
os sinais são animadores, ao menos nas declarações dos líderes do
plantel. Zico deixa claro: “Carlinhos é uma figura espetacular.
Merece todo nosso empenho e nossa dedicação. No que depender de
nós, terá passagem muito vitoriosa aqui no clube”.

O
clima político na Gávea ferve. O ex-Presidente dos tempos de FAF,
agora desafeto, dispara nos jornais: “Tudo isso é responsabilidade
do Presidente, que não conhece a real dimensão do Flamengo e não
sabe administrar conflitos. Porta-se como um gerentão que quer se
meter nos problemas do time e dos jogadores. Pode trocar o treinador.
Se não mudar o modelo, não vai demorar pra ter que trocar de novo.”
O
vaticínio da última frase logo irá se revelar inacreditavelmente
acertado.

Carlinhos,
visivelmente nervoso, quase gaguejando, tenta manter o otimismo.
“Nossa atuação foi maravilhosa, os jogadores estão de parabéns.
Pode ver que o goleiro deles foi o melhor em campo. Estamos no
caminho certo”
A
questão é que o empate com o Palmeiras complica a situação do
Flamengo no Grupo. Para passar à Terceira Fase, o rubro-negro
precisa de um empate contra o Americano, no alçapão do Godofredo
Cruz. Mobilizada, a diretoria campista promete um bicho milionário e
acena com a perspectiva de lotação máxima do acanhado estádio.
Para piorar, Zico apresenta fortíssimo inchaço em um olho, que está
quase fechado por conta de uma cotovelada sofrida contra o Palmeiras.
Animado, o treinador do Americano proclama: “Vamos vencer.”
E
por pouco não consegue. O Americano aproveita-se da péssima
qualidade do gramado e do nervosismo do Flamengo (mesmo com Zico, que
atua no sacrifício) e chega a estar duas vezes à frente no
marcador, mas dois gols de Baltazar asseguram o empate em 2-2 e a
sofrida classificação rubro-negra. Aos trancos e barrancos, o
Flamengo segue no Brasileiro. Agora é a hora de se concentrar na
Libertadores.



Mas
o pior ainda está por vir.
Após
o péssimo resultado em Santa Cruz, Carlinhos começa a ser
questionado pela imprensa. Poucos entendem porque o treinador sacou
Marinho do jogo (“eu estava bem, não senti nada”, alega o
zagueiro), desperdiçando a chance de mexer no meio ou no ataque. Ou
a incompreensível opção por fazer praticamente estrear entre os
profissionais, logo num jogo de Libertadores, o jovem ponta-direita
Felipe, jogado numa desnecessária fogueira.
Os
sintomas de problemas no ambiente interno seguem expostos. Criticado
por um suposto cansaço excessivo dos jogadores no final do jogo, o
preparador físico não poupa palavras: “O time está correndo. É
só ver a quantidade de chances que criam até o final. Agora, eu não
posso ser culpado se os jogadores não põem a bola dentro do gol.”
Visivelmente
tenso, o Flamengo alinha para o decisivo duelo de La Paz, contra o
bom time do Bolívar e, principalmente, contra a temida altitude da
capital boliviana. Carlinhos, irritado com as entrevistas de Marinho
questionando sua substituição em Santa Cruz, saca o zagueiro do
time. O jovem Felipe, dessa vez, entra desde o início, em mais uma
demonstração de confronto. “Felipe tem bom desempenho físico. Eu
sou o treinador, e coloco e tiro quem eu quiser”. A pretensa
manifestação de força é recebida como demonstração de
insegurança. E isso passará pro campo.

E
o Flamengo explode em crise.
A
confiança em Carlinhos se vaporiza. Mesmo o elenco, que antes
apoiava o treinador, perde a crença em seu trabalho, após as
escolhas erradas na Bolívia. Um dos líderes do elenco dá um recado
velado: “Agora é hora de parar e começar tudo de novo". A percepção é que, embora flexível e com boa capacidade de "enxergar" o jogo, Carlinhos ainda não reúne a experiência necessária para agir com desenvoltura em um ambiente impregnado de pressão, como é o cotidiano do Flamengo.

A
Diretoria age rápido. “Rebaixa” Carlinhos à condição de
interino enquanto procura um nome mais experiente no mercado. Tenta
Evaristo de Macedo, mas não consegue tirá-lo do Qatar, onde está
preso por um bem amarrado contrato. Enquanto isso, o jovem treinador
junta os cacos para o jogo contra o Goiás, na estreia da Terceira
Fase do Brasileiro.
Carlinhos
saca Figueiredo e Edson do time, voltando com Marinho e deslocando
Adílio pra ponta-esquerda. Os jogadores barrados reclamam, “viramos
os bodes expiatórios”, e Adílio não esconde seu incômodo em
atuar, novamente, em uma posição que detesta: “Que jeito, né?
Pior que tenho que render, senão vão dizer que estou de corpo
mole.”


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Capita, e se…?
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E se… o que?
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E se… Isso mesmo que você está pensando. Topa?
Com
quatro meses de atraso, vai começar o ano de 1983.