segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

O Acaso nos Protegerá (Ou Não...)

Salve, Buteco! Paulo César Carpegiani confunde-se com minhas memórias mais distantes sobre futebol. Lembro que chegou em 1977 para servir de referência a uma jovem geração que ainda estava por se impor não apenas nos cenários local e nacional. Nos momentos e apuros, Carpa era o mais procurado pela imprensa para falar sobre as expectativas de recuperação da equipe. Tempos de vacas magras e de reestruturação. Protagonista em campo dos históricos Estadual/1978 e Brasileiro/1980, como atleta jogou até maio/1981, quase um semestre após a saída de Cláudio Coutinho do clube, e após os insucessos de Modesto Bria e Dino Sani iniciou a carreira de treinador em plena Libertadores/1981, contra nada menos do que o Olímpia, no Maracanã, para depois levar o Mais Querido do Brasil, em sequência histórica, aos títulos da mesma competição, Estadual/1981, Mundial/1981 e Brasileiro/1982. Carpa, portanto, é um dos símbolos mais fortes da transformação de um time e de um clube de futebol.

Apesar disso, além de sua carreira como treinador não ter conseguido dar sequência ao sucesso no Flamengo, chega com muita desconfiança, que começa com suas ligações com Rodrigo Caetano, cujos critérios para contratação e gestão do Departamento de Futebol são legitimamente questionados há bastante tempo. Terá que se diferenciar pela seriedade e trabalhar com critério, ou do contrário o passado glorioso não será suficiente para distingui-lo de quem a torcida quer ver pelas costas.

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Independentemente do que se pense a respeito dos trabalhos de Zé Ricardo ou de Reinaldo Rueda, é inevitável indagar por que o Flamengo em momento algum da temporada chegou a ter a qualidade de jogo do Grêmio ou a eficiência pragmática do Corinthians, times mais exitosos do Brasil em 2017, dados o elenco, treinadores e a estrutura do Mais Querido.

Expressiva parte dos torcedores e até de jornalistas que acompanham o futebol brasileiro atribuem a Renato Gaúcho o envolvente futebol do tricolor gaúcho, que valoriza a posse de bola e a troca de passes verticais, sempre em busca do gol. Porém, o Grêmio tem um projeto para o futebol do clube, que envolve desde a formação dos atletas na base até a escolha dos profissionais (atletas e funcionários do Departamento de Futebol), passando pelos critérios de trabalho, sempre dentro de uma filosofia. Renato Gaúcho, que aparentemente não é fã desse formato, conforme demonstrou essa entrevista de Eduardo Cecconi ao Blog Ninho da Nação, herdou a estrutura e dela se beneficiou, ainda que aparentemente não a valorize. É importante compreender que Renato Gaúcho não é o responsável pelo conceito, porém na execução agregou outros importantes fatores, como suas experiência e visão de jogo, que lhe permitiram tomar as decisões certas nos momentos mais difíceis, dentro e fora de campo. Os opostos se uniram em uma espiral positiva e vencedora, porém me pergunto se a longevidade e o crescimento de quem não acredita no projeto não acabarão prejudicando sua continuidade.

Em 2017, Renato Gaúcho adotou uma controversa e arriscada estratégia ao priorizar a Libertadores em detrimento do Brasileiro. A expressiva quantidade de jogadores veteranos (para mim, de qualidade atual questionável) que participaram da rodagem do elenco pode ter pesado em favor do pragmatismo ou, a depender da opinião de quem analise, ter sido uma das chaves do sucesso. O tricolor gaúcho teve 100% de êxito, ao apresentar o mínimo de regularidade, quase que em proporção exata, para conquistar a quarta posição na competição nacional e o caneco da Libertadores.

Mais curioso ainda foi o que aconteceu com o Corinthians, que no campo tático jogou rigorosamente da mesma forma que todo o restante dos times brasileiros atuais, com um futebol feio e pragmático (quando mandante, posse de bola para o adversário; fora de casa, propondo o jogo). O diferencial foi a execução perfeita dessa proposta, que praticamente levou à conquista do título antecipadamente no primeiro turno.

Em ambos os casos, apesar dos modelos táticos opostos, o trabalho extracampo, muito superior à media nacional, criou o ambiente favorável para se criar um ótimo conjunto de profissionais que, em sua maioria, individualmente não se destacavam no cenário do futebol brasileiro. A mim parece óbvio: a melhor maneira de se montar um time de qualidade e/ou eficiência dentro de campo começa pela filosofia e o método de trabalho empregados fora dele. O Corinthians vem há alguns anos comprovando esse fato, mas o Grêmio também é um ótimo exemplo, ainda que mais recente. Outros clubes tentam copiar o modelo mais ainda não acertaram a mão, como o Atlético/PR, que acaba de demitir o responsável pela idealização do modelo de jogo e Departamento de Futebol.

É claro que compor um bom elenco e escolher o melhor treinador possível também são medidas de enorme importância nesse processo. Afinal de contas, quem executará todo o planejamento e o projeto do clube? O ponto é: existe uma equação entre todos esses fatores, que podem perfeitamente coexistir e interagir positivamente entre si; porém, quando se fala em trabalho a longo prazo, um ambiente com projeto contendo filosofia e métodos de trabalho para o clube é o que faz mais sentido, inclusive porque otimiza todo o restante e minimiza os efeitos negativos das inevitáveis transferências de atletas e saídas de treinadores. Ao contrário, quando esse projeto não existe, o treinador e o elenco não têm todo o seu potencial explorado e o trabalho passa a ser mais personalizado. Não chega a impedir necessariamente que um time seja campeão, mas com certeza torna muito mais difícil dar continuidade ao que produz resultado.

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Mas o que tudo isso tem a ver com Paulo César Carpegiani? Sabemos que, na prática, o Flamengo até o momento passou bem longe de trabalhar com esses conceitos. Por enquanto, tudo ficou no gogó dos Dirigentes. Como atribui-se a Carpegiani a pecha de ultrapassado, sua inserção em um ambiente de trabalho que peca pela falta de critérios na teoria forma um cenário perigoso, talvez até temerário.

Tenho alguns contrapontos, pois acredito que essa avaliação de Carpegiani seja um pouco imprecisa. É que seus conceitos a respeito de futebol estão muito longe de serem retrógrados; ao contrário, desde o início da carreira se sintonizam com o que hoje há de mais avançado em nível tático. Como Renato Zanata Arnos apontou neste tuíte, nosso novo treinador aposta na movimentação e na inversão de posicionamento e funções entre os atletas dentro de campo. Quem assistiu ou se informou minimamente a respeito de como jogava o legendário Flamengo da "Era Zico", cujo auge se deu quando ele era o treinador, sabe que aquele time adotava muitos desses conceitos, praticados no que é hoje o primeiro mundo do futebol. Além disso, Carpa prestigia atletas com qualidade individual para executar suas ideias, e na minha opinião em nada deve a Renato Gaúcho nas qualidades que destaquei (experiência e capacidade de tomar as decisões certas).

Por que será então que esse treinador não teve uma carreira vitoriosa após sua primeira passagem pelo Flamengo? Todo mundo teme a repetição do que ocorreu em sua mais recente passagem pelo clube, encerrada após o "Chocolate da Páscoa", quando o que se viu foi uma desastrosa aplicação dos mesmos conceitos que acabei de exaltar. Por exemplo, se um zagueiro é escalado para jogar na lateral, desde que não se trate de um atleta de qualidade abaixo da média o resultado variará a depender do grau de entrosamento do time e de como consegue executar defensivamente ideias como a da famosa "compactação". Ocorre que, para se executar um conceito tático é preciso método para transmiti-lo ao time e há razões mais do que fundadas para supor que, naquela época, Carpa não tinha o necessário para tanto. A profissão de treinador é complexa e não prescinde do domínio de diversos aspectos, que abrangem a evolução e adaptação de conceitos à intensa dinâmica do futebol moderno, assim como métodos de treinamento atualizados, gestão de grupo e noções básicas a respeito das múltiplas atividades que são exercidas em um Departamento de Futebol.

É isso que pode pegar. Não sei o que Carpa fez ou deixou de fazer para se atualizar, mas a Diretoria tem a obrigação de saber. Considerando os padrões atuais do Flamengo, é realmente possível que Carpa continue sendo "defasado". Suas qualidades podem ser melhor utilizadas, assim como suas deficiências supridas a depender da equipe e do contexto no qual trabalhar. O ambiente deve facilitar o aproveitamento do que o treinador tem de melhor e não ser outro obstáculo. O que será que a Diretoria do Flamengo está fazendo a respeito? O tempo trará as respostas.

Em termos práticos, para ter sucesso Carpa precisará ao menos nivelar-se à média nacional dos treinadores. Se isso ocorrer, outros fatores poderão contribuir, tais como qualidade do elenco, estrutura do Departamento de Futebol e saúde financeira do clube, além do que talvez seja o mais importante: conquistar os jogadores e fazê-los correr pelo treinador. O exemplo de 2013 ainda vive.

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Geralmente o destino ajuda quem trabalha com competência. É bom lembrar que o futebol não é uma ciência exata. Múltiplas variáveis sempre se fazem presentes. Renato Gaúcho e o Grêmio, por exemplo, tiveram uma boa dose de sorte, afinal de contas enfrentar Barcelona de Guaiaquil e Lanús é em tese muito melhor do que Palmeiras, San Lorenzo ou River Plate, o que facilitou a imposição do bom trabalho e da tradição do tricolor gaúcho.

Carpa e o Flamengo terão que fazer mais do que esperar pela sorte.

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Semana que vem eu escreverei a respeito do elenco.

A palavra, como sempre, está com vocês.

Bom dia e SRN a tod@s.