quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos,

Têm sido recorrentes as queixas contra um suposto “excesso de profissionalização”, que estaria “matando a essência” do verdadeiro futebol. Tal argumentação, a despeito de conter, muitas vezes, vivo saudosismo, não é propriamente recente, e os mais atentos talvez se recordarão de ouvir reiteradas vezes algo semelhante, ao longo dos anos.

Isto posto, trago hoje alguns “causos” de uma era romântica. Talvez romântica demais. Histórias que talvez hoje soem divertidas, mas que faziam parte do cotidiano do esporte nas priscas eras. Então, boa leitura.

* * *

“BOLA PRO MATO”
Fluminense e Flamengo entram em campo para a última partida do Campeonato de 1916. O jogo possui caráter pouco mais que amistoso, se é que se pode assim denominar um match entre os dois rivais. De qualquer forma, a competição já está definida (o América é o campeão), e os dois clubes mandam a campo formações mistas, com vários titulares ausentes. O jogo é disputado em General Severiano, e a assistência, na maioria composta por associados do Botafogo, esquece sua antiga rivalidade com os fluminenses e prefere torcer contra o Flamengo.

A partida se prenuncia rija, disputada, férrea, já com poucos minutos. Com efeito, algumas divididas mais duras são inevitáveis, bem como os indefectíveis chutões para o alto. Num desses pouco edificantes lances, a bola, despejada por um bico de chanca mais rústico, é expelida para fora do perímetro da praça de esportes botafoguense, ultrapassando-lhe a cerca e indo alojar-se em uma vala de difícil acesso. O árbitro e o representante da Liga Metropolitana se entreolham. Não há bolas reservas. Dá-se o impasse. Os jogadores, mãos às cadeiras, desmobilizam-se, sentam-se ao gramado, alguns bocejam. Um ou outro gaiato sugere um baralhinho para passar o tempo. Enquanto o Botafogo e a Liga não chegam a um acordo acerca de como ou por quem se dará a recuperação da foragida bola, o público resolve se dedicar a uma longa, sonora, caudalosa e enérgica vaia. Berra pelo dinheiro de volta, xinga os da Liga, do Botafogo, do Flamengo e do Fluminense. Está indócil.

Quando a possibilidade de remarcação do jogo por falta de bolas parece real, eis que alguém aparece com um improvável trambolho. Uma trapizonga que consiste de um longo, muito longo, pedaço de pau, ao qual está presa uma corda com uma rede, dessas de pescar siri, em uma das pontas. O treco paira baloiçando sobre a cabeça dos presentes, assustando o público. Alguém irrompe com uma imensa escada, encaixa-a precariamente sobre a cerca demarcatória e, de forma algo desengonçada, maneja a joça até, de forma inverossímil, conseguir capturar o balão de couro, sob apupos, assovios irreverentes, tímidas palmas e mais vaias.

O jogo recomeça e, sob ameaça de nova interrupção por falta de luz natural, é vencido pelos das Laranjeiras por 3-1.

“O TAPA, ESSA INTERFERÊNCIA INTERNA”
Tem sido um ano frustrante para o Carioca FC.
A simpática agremiação rubra da Gávea conquistara o Torneio Início do Campeonato de 1919. E, com isso, apressadamente alguns elementos da crônica esportiva haviam-na alçado ao posto de candidata ao título de Campeã da Cidade. O inusitado galardão, como costuma acontecer ao ser conferido a equipes de menor estrutura, revela-se um peso demasiado alto para o modesto eleven.

O Campeonato vai chegando ao final e o Carioca vai arrastando-se na décima e última colocação. Recebe o Flamengo em seu campo, na Estrada Dona Castorina, na Gávea. Como esperado, o Flamengo se impõe e vai vencendo sem a menor dificuldade por 2-0, e pressionando para ampliar o marcador. Eis que, nervosos e sem o controle emocional adequado, os rubros começam a distribuir pontapés em quem lhes aparece à frente. Em um dado momento, um dirigente do Carioca invade o campo e desfere um chute no goleiro flamengo Laport, que revida, dando início a um colossal sururu em que todos batem e apanham. A duras penas, o árbitro consegue acalmar os ânimos, reiniciando o prélio.

Ainda há mais. Em uma boa trama, o Flamengo, como previsível, chega ao seu terceiro gol. Mais confusão. Um zagueiro levanta o braço, o goleiro reclama de algo. Os do Carioca cercam o indefeso árbitro, que, sem pestanejar, aponta para o centro do campo. Até que o intrépido Buíca, meia rubro com físico de guarda-roupas, corre célere, imparável, bufante, olhos dardejantes, em direção ao juiz. Sem uma palavra, sem um pio, sem sequer alterar a expressão colérica de seu rosto, Buíca aproxima-se do referee e apresenta sua linha de argumentação, desferindo-lhe um sonoro e estalado tapa na planta da orelha e um “cachação” na testa do pobre juiz.

Diante de tão persuasiva interferência externa, o árbitro tenta catar no gramado os andrajos do que resta de sua dignidade e “desmarca” o gol, assinalando bola ao chão. Ninguém entende nada. “Foi gol ou não foi”? A confusão se manterá até o final da partida. O Flamengo ainda marca outro tento, sacramentando a fácil vitória. No dia seguinte, metade dos jornais do Rio cravará o placar de 3-0, considerando anulado o gol. Outra metade defenderá o score de 4-0, entendendo que, apesar da bolacha sofrida, o árbitro consignara o tento. O imbróglio somente é resolvido dias depois, quando a Liga Metropolitana homologa a vitória flamenga por 3-0, banindo o valentão Buíca dos gramados.

“ESSAS CORES SÃO NOSSAS”
Confusa é a definição do formato do Campeonato de 1917. Uma rebelião dos clubes menores quase leva à cisão a Liga Metropolitana. A questão repousa na irreversível expansão e popularização do futebol na capital federal, o que leva a uma grita por um maior número de vagas no Campeonato da Cidade, restrito a apenas sete equipes. Os clubes menores desejam um campeonato com pelo menos 14 participantes. Os grandes batem o pé e não abrem mão do formato com sete membros, que permite a realização de excursões e amistosos. Após interminável impasse, reuniões, encontros, ameaças de ruptura, tabelas divulgadas e depois canceladas, enfim se chega a um acordo. O Campeonato terá dez equipes participantes por divisão, mantendo-se o rebaixamento/promoção de um clube por temporada.

Quando a paz parece reinar, eis que o SC Mangueira, um dos clubes içados à elite pela canetada, envia um requerimento à Liga. Exige que o CR Flamengo altere suas cores, alegando que, por ser rubro-negro e ser filiado há mais tempo na Liga (o clube tijucano fora fundado em 1906), possui prioridade e precedência de escolha. E, no entender de seus dirigentes, sua camisa confunde-se demasiadamente com o novo Manto Flamengo (que recentemente eliminara os frisos brancos de seu uniforme). O Flamengo, naturalmente, recusa-se frontalmente a sequer discutir o assunto, não aceitando interferências externas na definição de suas cores, um assunto íntimo da instituição.

A questão, embora seja tratada como um “assunto menor” pela imprensa (“não vemos motivo para tanta balbúrdia. Um clube joga com listras verticais, outro as usa horizontais. É perfeitamente possível distingui-las em campo”), já chama a atenção para um debate mais amplo. No ano anterior, um incidente parecido numa partida entre Andarahy e Botafogo (ambos os times usando camisas brancas com listras escuras verticais) quase anulara o match. Vários espectadores, especialmente os que se situam nos lugares mais distantes dos estádios, têm registrado queixas sobre a distinção dos uniformes. Em dias chuvosos e campos enlameados, o problema se acentua.

A Liga resolve a questão mostrando raro bom senso. Flexibiliza a regra do uniforme único e institui que, em jogos onde houver choque de cores, o time da casa deverá utilizar camisas brancas. E, assim, em 03 de junho, o Flamengo alinha contra o SC Mangueira, na Rua Paysandu, ostentando, pela primeira vez em sua história, um uniforme reserva composto de camisas inteiramente brancas. A camisa “dá sorte”, e o Flamengo vence o jogo (em que era franco favorito) por 2-1.

“PRECISA TREINAR? ANUNCIE AQUI”
O futebol amador dos anos 1910 é desprovido de departamentos, comissões e outras estruturas permanentes. O eleven resta a cargo de um “ground commitee”, e o capitão, eleito pelo grupo, torna-se o responsável pela comunicação entre a diretoria e o plantel. Nesse contexto, os treinamentos, após marcados, são anunciados nos jornais, qual classificados.

Significa que, caso deseje se inteirar da data, hora e local do próximo treinamento de seu team, o sportsman precisará estar atento à página de sports de algum jornal de grande circulação do Rio de Janeiro. Lá constará a convocação para algum training ou match-training (jogo-treino), com detalhes sobre a apresentação, ponto de encontro e outros aspectos práticos.

Consta que, em determinados momentos, o Flamengo tem enfrentado dificuldades para reunir todo seu elenco para os treinamentos.

“O JUIZ ANÔNIMO”
Flamengo e Andarahy se preparam para iniciar a partida válida pela penúltima rodada do Campeonato de 1916, já sem qualquer interesse e influência para o desfecho da competição. As arquibancadas do Estádio da Rua Paysandu estão quase vazias, denotando a baixa importância do prélio.

Os times vão realizando seu trabalho de aquecimento no gramado, quando alguém sussurra aos seus respectivos capitães. “Não há juiz”. “Como assim, não há juiz?”. “O juiz não veio. Nem o juiz, nem o substituto”.

É um problema, em que pese inusitado, relativamente previsível. Sem uma estrutura de formação e prospecção de árbitros, a Liga se vale do tradicional e já anacrônico modelo de nomear jogadores de equipes terceiras para arbitrar as partidas de seu Campeonato. Ou seja, um match entre Flamengo e América é dirigido por um jogador do Botafogo, já uma partida entre Fluminense e São Cristóvão terá arbitragem de um player do Andarahy, e assim sucessivamente. No entanto, o futebol a cada dia se torna um esporte de competição, onde os preceitos de “fair-play” e cavalheirismo em campo vão sendo confinados a limites bastante estreitos. Nesse contexto, não é raro um árbitro deixar o campo sob pontapés, pedradas, cusparadas ou xingamentos de toda espécie. Ironicamente, acontecera exatamente há poucos minutos, na preliminar dos segundos teams, onde o árbitro encerrara prematuramente a partida, abatido a tapas pelos jogadores do Andarahy, que acabaram inapelavelmente expulsos. Todos eles.

Agora, no jogo principal, eis que rebenta o problema. Não há árbitro.

No entanto, antes que a ausência do referee seja ecoada para todo o ground e percebida pela assistência, eis que irrompe do firmamento um rapaz mirrado, impecavelmente engalanado com um reluzente blazer branco entremeado por retintos adornos em negro, cabelos minuciosamente penteados e ostentando um brilho ofuscante, e banhado em um perfume que se faz sentir em todos os recônditos do campo. Adentra saltitante o gramado e, gestual excessivo mas firme, avisa, solerte, voz em falsete.

“Eu serei o referee!”

Os jogadores se entreolham, mãos à boca, tentando em vão disfarçar o riso. Dirigentes conferenciam à beira do campo. O captain do Flamengo reúne os seus em roda, para discutir o caso. O homenzinho, já esboçando alguma irritação, bola sob os braços, parece apressado: “vamos, vamos, o tempo está se esvaindo!”

Alguém se lembra de trazer a hilária situação à realidade. Indaga, “quem é o senhor?”. O rapazinho se apresenta como jogador do River FC, clube filiado e, portanto, apto a dirigir partidas. “possui identificação, o cartão da Liga?”, referindo-se ao documento distribuído pela Liga aos sportsmen aptos a atuar como referees. “Er... bem... não está aqui comigo, não sabia que era necessário”. Cria-se o impasse.

O que há de concreto: dois times prontos para jogar, um público que, embora pequeno, já demonstra impaciência, um árbitro que faltara e é substituído por um estranho e desconhecido voluntário, e uma tabela quase sem datas para remarcação de jogos.

Eis que alguém, mais movido por um senso prático do que por algum juízo, chama os captains e argumenta: “Olha, vamos ter o jogo. Estamos todos aqui, então que haja o match. Deixa o rapazola apitar. Na pior das hipóteses, se se comprovar tratar-se de um embusteiro, de um charlatão, anulamos a partida na Liga e fazemos um rematch. Mas, se ele estiver falando a verdade, já teremos cumprido o compromisso da tabela.”

E assim, o espevitado moço é autorizado a dar início à partida. Que, sonolenta, termina em um aborrecido 0-0. O anônimo e suspeito referee surpreende com uma atuação perfeita, sendo elogiado pelos dois teams.

Mais tarde, comprovará tratar-se do Sr. Veira, do River FC, e o resultado será confirmado e mantido pela Liga.


Boa semana a todos,