Parece um
domingo qualquer.
Dia de
Flamengo no Maracanã, Campeonato Brasileiro, contra um time de
“menor investimento”, para lançar mão de um eufemismo tão em
voga nesses tempos politicamente corretos e hipócritas. Pequeno não
pode, “menor investimento” pode. Enfim, jogo tranquilo. Tranquilo
de ir, não de jogar, porque ultimamente nenhum jogo do Flamengo pode
ser chamado de tranquilo. Aliás, o tal time de “menor
investimento”, interior gaúcho, raras vezes saiu derrotado pelo
rubro-negro carioca. Por dolorosa que seja a constatação, não há
favoritos.
O
Flamengo parece esboçar, muito lentamente, uma recuperação
institucional, após um início de década duríssimo, em que por
muito, mas muito, e quando se fala muito, é muito mesmo, por muito
pouco o time não se viu rebaixado à Série B, com o clímax vivido
na temporada passada, em que, se milagre existe, foi materializado na
inacreditável fuga de uma queda que beirava os 90% de certeza
matemática. Agora, há alguns jogadores interessantes, o time foi
reforçado, já rabiscou um ou outro jogo melhor, mas precisa de um
conjunto, uma formação-base. Ademais, os problemas estruturais
atrapalham.
Estamos
em abril e o rubro-negro já avança pelo segundo treinador, que
ainda vive seus primeiros jogos. A estreia no Brasileiro foi ruim,
uma derrota até esperada em tese, mas injusta e definida por um
grosseiro erro individual de um dos zagueiros. Na Copa do Brasil a
situação soa algo melhor, o time já nas Quartas-de-Final após
passar com relativa tranquilidade por três fases anteriores.
A
diretoria consegue, sabe-se lá como, quitar todos os salários
atrasados do elenco. Com sinceridade invulgar, os dirigentes se
reúnem com o elenco no meio do gramado, antes do treino e avisam:
“Que se virem. Queremos a vitória de qualquer jeito.”
Enfim, é
domingo. Parece uma tarde qualquer.
Tarde
nublada, mas sem chance de chuva. Clima ameno, 20 mil é um público
até bom, considerando que se está apenas na segunda rodada de um
Brasileiro que sempre começa morno.
Antes da
partida, o setorista de campo vai extrair a tradicional e protocolar
declaração do treinador à beira do campo. À pergunta genérica de
praxe, o técnico soa evasivo, ao menos aos desatentos. “Como pensa
em superar a retranca do adversário?”, “Daremos um jeito”. As
entrelinhas não mentem. As coisas não estão bem.
O
primeiro tempo termina com o Flamengo vencendo por 2-0, especialmente
por conta de dois fatores: a postura agressiva do rubro-negro e a
fragilidade da defesa adversária. Se bem que seu treinador, que
gosta de propalar seu ódio e seu rancor pelo Flamengo, atribui o
revés, nos microfones, ao “péssimo e desonesto árbitro”, que
teria validado um gol “irregular”. Enfim, coisas de um domingo
qualquer.
Volta do
intervalo, Flamengo vencendo por 2-0, acomodando-se em campo,
trocando passes burocráticos. O adversário entende a mensagem e
parte pra dentro. Passa a controlar o jogo e a rondar perigosamente a
cidadela rubro-negra. Diante do ambiente ruim, do histórico recente
complicado, do emocional desestabilizado, um gol sofrido terá
consequências imprevisíveis. Um atacante recebe sozinho na frente
do goleiro flamengo. Olha, escolhe o canto, capricha... e manda nas
arquibancadas. O gol do inimigo parece iminente.
Então, a
torcida, até então sonolenta, resolve agir.
Como num
coordenado e ensaiado movimento coletivo, os vinte mil parecem olhar
simultaneamente para o banco de reservas, parar, pensar e escolher
seu eleito. Garoto do interior mineiro, mirrado, de apelido esquisito
mas, aparentemente, capaz ao menos de dominar uma bola, como mostrou
na Copa do Brasil, ao se tornar sensação de quinze minutos de fama
por eliminar equipes mais qualificadas e ganhar, de prêmio, um
contrato com o Flamengo.
E o
Maracanã irrompe feérico, pulsante, vibrante como nos seus melhores
dias, vinte mil vozes que se multiplicam a cinquenta, cem, duzentos
mil, em uníssono, o mais inusitado dos gritos, compassado, berrado,
som gutural: “Mi-nho-ca, Mi-nho-ca, Mi-nho-ca!”
E então
se dá o sobrenatural, o inominável, o etéreo, o inexplicável.
Não se
desafia os deuses da bola com tamanha audácia. O torcedor do
Flamengo, ao berrar por Minhoca como por suas vidas, parece provocar
forças estranhas, profanando preceitos sagrados, afrontando toda uma
mística erguida por décadas de sangue e lágrimas, que forjaram
toda uma gloriosa saga de campeões, vencedores. Num templo onde
brilharam Zico, Maestro Júnior, Romário, Petkovic, Dida, Gerson,
Doval, Joel, Evaristo, clama-se por Minhoca. Não, não pode ser um
domingo qualquer.
E não
será.
O
treinador, sempre sensível à rouca voz das arquibancadas (talvez
sensível demais, às vezes), prontamente atende ao assertivo chamado
e coloca o intrépido Minhoca em campo. A entrada do pitoresco
jogador acende um halo, uma aura, um brilho nos olhos de todos os
espectadores. Eis seu homem.
Primeiro
lance. Minhoca recebe a bola e, com um suave toque de calcanhar,
deixa um atacante na cara do gol, mas a chance é perdida. Logo
depois, Minhoca pede no meio e se livra de um contrário com um
lençol curto, artístico, definitivo e irretorquível. O estádio
vai abaixo. De repente, diante dos seus olhos, o mirrado mineiro de
Ipatinga começa a jogar o fino, a trazer um laivo de irreverência,
de classe, de talento, de categoria, de carinho com uma bola tão
maltratada. Com uma torcida tão judiada.
É
evidente que não é o Minhoca que está em campo. O futebol
apresentado pelo garoto não é o futebol do Minhoca. Nem tampouco a
bola de um semideus, de um monstro sagrado, de algum ídolo do
passado que encarna nas finas pernas do jovem mineiro. Ali, senhoras
e senhores, ali no sacrossanto gramado do Maracanã, ostentando o
Manto número 29, está a própria torcida do Flamengo. A Nação em
chuteiras. A massa que, literalmente, desce ao palco e, elegendo um
protagonista improvável, apropria-se de seus pés e, num apelo quase
desesperado, exibe, de forma despudorada, escancarada, arreganhada,
um futebol de sonhos. “É assim que queremos!”
E aos pés
de Minhoca a Nação enxerga um espaço no bico direito da área e
solta um passe milimétrico, cirúrgico, primoroso, para o
lateral-direito, que desloca o goleiro num leve toque e amplia para
3-0. Gol do Flamengo, assistência da torcida. Uma torcida que agora
canta, dança, pula, entoa suas músicas maravilhosas, “Oh, Meu
Mengão, Eu Gosto de Você...”. Está feliz.
Não,
definitivamente não terá sido um domingo qualquer.
Walter
Minhoca nunca mais exibiu um futebol sequer parecido ao mostrado nos
pouco mais de 20 minutos de sonho em que esteve em campo neste
Flamengo 3-1 Juventude. O Flamengo seguiu em lento processo de
recuperação e, com a torcida cada vez mais próxima, conquistou a
Copa do Brasil, título que é considerado o marco inicial do
processo que acabaria conduzindo o rubro-negro ao hexacampeonato
brasileiro, em 2009.