quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Alfarrábios do Melo

Parece um domingo qualquer.

Dia de Flamengo no Maracanã, Campeonato Brasileiro, contra um time de “menor investimento”, para lançar mão de um eufemismo tão em voga nesses tempos politicamente corretos e hipócritas. Pequeno não pode, “menor investimento” pode. Enfim, jogo tranquilo. Tranquilo de ir, não de jogar, porque ultimamente nenhum jogo do Flamengo pode ser chamado de tranquilo. Aliás, o tal time de “menor investimento”, interior gaúcho, raras vezes saiu derrotado pelo rubro-negro carioca. Por dolorosa que seja a constatação, não há favoritos.

O Flamengo parece esboçar, muito lentamente, uma recuperação institucional, após um início de década duríssimo, em que por muito, mas muito, e quando se fala muito, é muito mesmo, por muito pouco o time não se viu rebaixado à Série B, com o clímax vivido na temporada passada, em que, se milagre existe, foi materializado na inacreditável fuga de uma queda que beirava os 90% de certeza matemática. Agora, há alguns jogadores interessantes, o time foi reforçado, já rabiscou um ou outro jogo melhor, mas precisa de um conjunto, uma formação-base. Ademais, os problemas estruturais atrapalham.

Estamos em abril e o rubro-negro já avança pelo segundo treinador, que ainda vive seus primeiros jogos. A estreia no Brasileiro foi ruim, uma derrota até esperada em tese, mas injusta e definida por um grosseiro erro individual de um dos zagueiros. Na Copa do Brasil a situação soa algo melhor, o time já nas Quartas-de-Final após passar com relativa tranquilidade por três fases anteriores.

A diretoria consegue, sabe-se lá como, quitar todos os salários atrasados do elenco. Com sinceridade invulgar, os dirigentes se reúnem com o elenco no meio do gramado, antes do treino e avisam: “Que se virem. Queremos a vitória de qualquer jeito.”

Enfim, é domingo. Parece uma tarde qualquer.

Tarde nublada, mas sem chance de chuva. Clima ameno, 20 mil é um público até bom, considerando que se está apenas na segunda rodada de um Brasileiro que sempre começa morno.

Antes da partida, o setorista de campo vai extrair a tradicional e protocolar declaração do treinador à beira do campo. À pergunta genérica de praxe, o técnico soa evasivo, ao menos aos desatentos. “Como pensa em superar a retranca do adversário?”, “Daremos um jeito”. As entrelinhas não mentem. As coisas não estão bem.

O primeiro tempo termina com o Flamengo vencendo por 2-0, especialmente por conta de dois fatores: a postura agressiva do rubro-negro e a fragilidade da defesa adversária. Se bem que seu treinador, que gosta de propalar seu ódio e seu rancor pelo Flamengo, atribui o revés, nos microfones, ao “péssimo e desonesto árbitro”, que teria validado um gol “irregular”. Enfim, coisas de um domingo qualquer.

Volta do intervalo, Flamengo vencendo por 2-0, acomodando-se em campo, trocando passes burocráticos. O adversário entende a mensagem e parte pra dentro. Passa a controlar o jogo e a rondar perigosamente a cidadela rubro-negra. Diante do ambiente ruim, do histórico recente complicado, do emocional desestabilizado, um gol sofrido terá consequências imprevisíveis. Um atacante recebe sozinho na frente do goleiro flamengo. Olha, escolhe o canto, capricha... e manda nas arquibancadas. O gol do inimigo parece iminente.

Então, a torcida, até então sonolenta, resolve agir.

Como num coordenado e ensaiado movimento coletivo, os vinte mil parecem olhar simultaneamente para o banco de reservas, parar, pensar e escolher seu eleito. Garoto do interior mineiro, mirrado, de apelido esquisito mas, aparentemente, capaz ao menos de dominar uma bola, como mostrou na Copa do Brasil, ao se tornar sensação de quinze minutos de fama por eliminar equipes mais qualificadas e ganhar, de prêmio, um contrato com o Flamengo.

E o Maracanã irrompe feérico, pulsante, vibrante como nos seus melhores dias, vinte mil vozes que se multiplicam a cinquenta, cem, duzentos mil, em uníssono, o mais inusitado dos gritos, compassado, berrado, som gutural: “Mi-nho-ca, Mi-nho-ca, Mi-nho-ca!”

E então se dá o sobrenatural, o inominável, o etéreo, o inexplicável.

Não se desafia os deuses da bola com tamanha audácia. O torcedor do Flamengo, ao berrar por Minhoca como por suas vidas, parece provocar forças estranhas, profanando preceitos sagrados, afrontando toda uma mística erguida por décadas de sangue e lágrimas, que forjaram toda uma gloriosa saga de campeões, vencedores. Num templo onde brilharam Zico, Maestro Júnior, Romário, Petkovic, Dida, Gerson, Doval, Joel, Evaristo, clama-se por Minhoca. Não, não pode ser um domingo qualquer.

E não será.

O treinador, sempre sensível à rouca voz das arquibancadas (talvez sensível demais, às vezes), prontamente atende ao assertivo chamado e coloca o intrépido Minhoca em campo. A entrada do pitoresco jogador acende um halo, uma aura, um brilho nos olhos de todos os espectadores. Eis seu homem.

Primeiro lance. Minhoca recebe a bola e, com um suave toque de calcanhar, deixa um atacante na cara do gol, mas a chance é perdida. Logo depois, Minhoca pede no meio e se livra de um contrário com um lençol curto, artístico, definitivo e irretorquível. O estádio vai abaixo. De repente, diante dos seus olhos, o mirrado mineiro de Ipatinga começa a jogar o fino, a trazer um laivo de irreverência, de classe, de talento, de categoria, de carinho com uma bola tão maltratada. Com uma torcida tão judiada.

É evidente que não é o Minhoca que está em campo. O futebol apresentado pelo garoto não é o futebol do Minhoca. Nem tampouco a bola de um semideus, de um monstro sagrado, de algum ídolo do passado que encarna nas finas pernas do jovem mineiro. Ali, senhoras e senhores, ali no sacrossanto gramado do Maracanã, ostentando o Manto número 29, está a própria torcida do Flamengo. A Nação em chuteiras. A massa que, literalmente, desce ao palco e, elegendo um protagonista improvável, apropria-se de seus pés e, num apelo quase desesperado, exibe, de forma despudorada, escancarada, arreganhada, um futebol de sonhos. “É assim que queremos!”

E aos pés de Minhoca a Nação enxerga um espaço no bico direito da área e solta um passe milimétrico, cirúrgico, primoroso, para o lateral-direito, que desloca o goleiro num leve toque e amplia para 3-0. Gol do Flamengo, assistência da torcida. Uma torcida que agora canta, dança, pula, entoa suas músicas maravilhosas, “Oh, Meu Mengão, Eu Gosto de Você...”. Está feliz.

Não, definitivamente não terá sido um domingo qualquer.


Walter Minhoca nunca mais exibiu um futebol sequer parecido ao mostrado nos pouco mais de 20 minutos de sonho em que esteve em campo neste Flamengo 3-1 Juventude. O Flamengo seguiu em lento processo de recuperação e, com a torcida cada vez mais próxima, conquistou a Copa do Brasil, título que é considerado o marco inicial do processo que acabaria conduzindo o rubro-negro ao hexacampeonato brasileiro, em 2009.