quarta-feira, 18 de maio de 2016

Alfarrábios do Melo

A melhor coisa de ser menino é jogar bola.

Às vezes nem precisa ser bola. No pátio da escola, a gente jogava com coquinho seco, que caía das árvores e enfeitava o chão. A trave era um portão de madeira, e aí eram uns vinte contra vinte. Já fiz muito gol chutando coco. Na falta do coco, podia ser lata vazia de guaraná, resto de copo de plástico, um pedregulho maiorzinho ou até um sapato velho. Sim, chutava sapato velho quando não tinha bola.

A bola, quando aparecia, era chuveirinho, de borracha, que ficava legal depois de amaciada por alguns dias. Tinha que jogar descalço pra sentir. Pro goleiro era um problema, porque o chute quando carimbava ardia. Assava, a gente dizia.

Todo lugar era lugar. Podia ser no meio da rua (era uma rua estreita, passava pouco carro), um par de chinelo marcando cada trave, o pé despido no meio do asfalto, chegando todo ralado em casa. Baba com peão de obra, com zelador de prédio depois do trabalho, com playboy de apartamento, com quem quisesse bater uma bolinha. Às vezes aglomerava, tinha que organizar. Regra, regulamento? Era criado na hora, na base da conversa e do grito.

Podia ser também no campinho de terra batida, as traves de gravetos, que rebentavam a cada bomba. Baba de se melar todo de barro, de chutar toco, de esfolar a unha no buraco.

Acho que fui bater baba com trave de rede já maior um pouco.

Não tinha mistério nem complicação. Juntava a turma, escolhia dois, que batiam par ou ímpar e iam puxando os melhores pros seus times. Se não tivesse ninguém na “de fora”, sobrando, o baba ia a tarde toda com o mesmo time. Do contrário, marcava tempo ou dois gols, e os times iam se revezando. Simples.

Cada um tinha seu jeito, seu estilo. A tática era de uma sofisticação sem par: quem gostasse de atacar ia pra frente, quem fosse de defesa jogava atrás. Quando perdia a bola, todo mundo tinha que voltar. Se o baba fosse de goleiro, tinha que revezar cada vez que levasse gol. O melhor do time era o que fazia mais gol e não se falava mais nisso.

Nada de fardamento, equipamento cheio de frufru. Quando era baba de pouca gente, tinha que decorar quem era do time. E ai de quem errasse. Se o baba fosse maior, aí fazia o esquema de “com-camisa” e “sem-camisa”, o que às vezes era problema, porque a maioria vinha jogar sem blusa. Mas no fim sempre dava certo. Tinha que saber improvisar.

O baba de golzinho era o mais divertido porque era o que dava mais confusão. Quando a bola ia pro gol rasteira era beleza. Mas e se o chute fosse alto? Era fora? “por cima do gol”? Ou se pensava numa linha “imaginária”? Normalmente acabava numa ruma de menino batendo boca. O que tinha de moleque mudando de ideia de acordo com o lado que acontecia o lance era uma festa.

Um dia apareceram uns pivetes no nosso baba. Vieram na paz, queriam bater uma bola. E assim se fez. E, embasbacado, rebentei a caixa de cristal da realidade do menino de apartamento, posto que fanático. Porque aquilo que os moleques faziam com a bola não parecia de Deus. Era futebol cru, no mais puro estado da arte. Não corriam, zuniam. Sumiam na nossa frente. Escondiam a bola. Parecia que a bola era uma extensão de seus pés. Competitivo, ficava contrariado de jogar contra, a derrota certa. Mas extasiado. Coisa linda de ver. Um dia não apareceram mais.

Jogar bola era mais legal que assistir na tevê, se o jogo que tivesse passando não fosse do Flamengo ou do Brasil. Apareciam aquelas conversas chatas de esquema tático, impedimento, volante, marcação homem a homem ou por zona, jogador que tinha que derivar na ponta, esse tipo de coisa que um garoto não tava muito a fim de entender. Na cortante lógica infantil, bastava um time ser melhor que o outro, atacar mais e fazer mais gols. O resto era teoria e papo furado.

Mas havia um. Tinha um que jogava como guri. Que provocava risadas e alegria quando a gente ligava a tevê. Que andava gingando, negaceando, driblava até no caminhar. Que parecia que, a qualquer momento, ia tirar a camisa e as chuteiras. Que fazia o diabo com a bola. Que costurava, rabiscava, cerzia, perfurava sem pudor maciços blocos de zagueiros. Que chamava um companheiro pra tabelinha, endoidecendo os adversários e a torcida. Que parecia ter asas. Que era de borracha. E que fazia tudo isso rindo. Feliz. Brincava de bola. Brincava como o moleque que driblava jogadores, iludia complexos esquemas táticos, ludibriava sistemas, enganava adversários poderosos. Fintava a vida.

Apenas se divertia. Seu jogo gargalhava como o dos pivetes do nosso baba. Quando tinha a bola, nada parecia ser importante, relevante. Apenas a mais pura, a mais límpida, a mais cristalina essência do jogo de bola. Brincar, iludir, driblar, fintar, tabelar, chutar, fazer gol. E nisso nos espelhávamos. Nos enxergávamos. Nos identificávamos. Nos sentíamos jogadores de bola. E, arrepiados, nos deixávamos abandonar, olhos faiscantes, reluzentes, úmidos, pela encantadora e lírica poesia do seu jogo. Um jogo feérico. Pulsante. Moleque. Irreverente. Flamengo.

Obrigado, Adílio. Muitos anos de vida.