domingo, 24 de abril de 2016

Alfarrábios do Melo

1978.

Tudo parte de um vexame.

Com efeito, a desmoralizante derrota sofrida em Porto Alegre, diante do Grêmio (2-5), acentua a percepção de que o Flamengo precisa rever seu elenco. Uma das posições mais questionadas é a de goleiro. Cantarele, que vem falhando ultimamente, acaba tido como um dos responsáveis pela derrota.

O veterano Raul, do Cruzeiro, não quer mais jogar bola.

Daí que o Flamengo, sem dinheiro para aventuras mais ousadas, percebe a oportunidade de contar com um profissional experiente, vitorioso e qualificado a baixo custo e enche a cabeça do jogador, que é convencido a adiar sua aposentadoria e desembarcar na Gávea.

Raul chega com status de titular. Já estreia na excursão que o Flamengo faz à Europa. Mesmo ainda visivelmente fora de forma, agrada, faz defesas importantes e é peça decisiva na conquista do Torneio de Mallorca, contra o Real Madrid (2-1). Retorna ao Rio com a posição de titular debaixo do braço.

O Flamengo, sempre com Raul em campo, parece enfim ter encontrado um conjunto. O time vai passando por cima de todos os adversários no Estadual e conquista por antecipação a Taça Guanabara, que corresponde ao Primeiro Turno. Nas palavras de alguns membros da comissão técnica, Raul impressiona pela sua liderança e ascendência sobre os jogadores do elenco, injetando doses de tranquilidade, pragmatismo e crua competitividade com as quais definitivamente o Flamengo não estava acostumado.

No entanto, Raul será traído pelo seu principal ponto fraco.

No início do Segundo Turno, o Flamengo vai se preparando para o encontro diante do Madureira. No recreativo da véspera da partida, Raul é “coagido” pelo elenco a participar do recreativo, atividade que detesta e da qual nunca fez parte (aliás, a aversão do goleiro aos treinamentos é notória e tolerada por Coutinho que, no entanto, exige do goleiro um desempenho de alto nível em campo). Deslocado para a linha, Raul vai disputar uma bola, estica demais a perna (movimento com o qual está desacostumado) e arrebenta a coxa. Distensão muscular.

Raul está fora da temporada.

O Flamengo atravessa o resto do ano com o instável Cantarele no gol. Mas Cantarele dessa vez agarra sua chance e corresponde, atuando de forma convincente nos jogos que darão ao rubro-negro o importante e ansiado Título Estadual, por antecipação (graças ao gol de Rondinelli).

1979 se inicia com Cantarele mantendo a condição de titular. Com efeito, Coutinho tem como prática somente trocar goleiro por motivo de lesão (desde que esteja atuando bem). Se o reserva entrar e corresponder, o antigo titular terá que aguardar sua vez.

Mas Cantarele não cede essa vez. O goleiro atravessa ótima fase, parece mais maduro, menos propenso a falhas. Manter um profissional da categoria de Raul no banco vai fazendo bem ao jovem goleiro, que dentro de campo vai empilhando vitórias e troféus. O Flamengo é bi, tri Estadual, sempre com Cantarele no gol. O “novo-velho” titular (que está no time principal desde 1973) não possui uma liderança tão carismática como o do seu colega, mas é sério e transmite uma imagem de suor, dedicação, empenho. É um dos primeiros a chegar aos treinos, e sai por último. Compensa os defeitos em saída de bola e posicionamento com um reflexo agudo. A regularidade, antes um problema, aos poucos vai se tornando uma marca positiva. Confiança.

A excepcional fase de Cantarele é contrastada pela acomodação de Raul. Visivelmente gordo e desmotivado, Raul parece farto da entediante rotina de treinos a que agora precisa se submeter. Atua em jogos esporádicos, oficiais ou amistosos. Sua postura passiva e aparentemente resignada acende na Gávea a sensação de que talvez seja o momento de descartá-lo, pois, ao final das contas, é um reserva recebendo salário de titular.

E com essa percepção termina a temporada. Mas a reviravolta não tardará.

Cantarele se apresenta para a pré-temporada de 1980 com um estiramento muscular. Está, desde já, fora da primeira partida do ano, um amistoso contra o São Paulo no Morumbi, jogo festivo que marcará a despedida do tricolor Bezerra. Estádio lotado e transmissão para todo o Brasil.

O Flamengo vive um momento de incertezas. A devastadora eliminação diante do Palmeiras (1-4) trouxe uma série de questionamentos internos quanto à real capacidade do elenco.

Na semana do amistoso, as diretorias de Flamengo e Grêmio iniciam entendimentos para uma transação envolvendo a venda de Raul para o time gaúcho. As bases para a negociação são praticamente fechadas, restando pendentes alguns pontos secundários.

Sob pressão, o Flamengo vai ao Morumbi e, diante de 45 mil espectadores, realiza péssima apresentação, correndo o risco de sofrer uma goleada. Mas, ao final dos 90 minutos, o placar exibe um 0-0 teimoso, por conta, obra e graça de uma única figura. Raul defende absolutamente tudo o que lhe aparece pela frente, sendo quatro dessas intervenções realizadas à queima-roupa, cara-a-cara com o atacante oponente (quase sempre o goleador Serginho Chulapa). Uma exibição de gala, coalhada de esfuziantes aplausos da torcida. Adversária.

Acontece que Raul, contrariando sua natureza, resolvera se preparar como um garoto para essa partida. Treinara como se amanhã não houvesse. A pecha de “velho decadente” ferira de morte seus vaidosos brios. Não, não iria terminar assim.

Ao final do jogo, Raul é coberto de microfones, e declara “eu estou de volta. Para quem me quiser, naturalmente”.

Enquanto Raul segue atuando em uma série de amistosos do Flamengo (Cantarele segue fora, lesionado), Flamengo e Grêmio enfim fecham a transação. O goleiro será vendido, desde que acerte as bases contratuais, o que ocorrerá quando o rubro-negro retornar ao Rio. Mas o acerto não acontece. Raul não quer sair do Flamengo, não agora que está perto de retomar a posição. E o Grêmio acaba indo atrás de Leão, do Vasco.

Mantendo a coerência, Coutinho confirma Raul como titular da equipe que irá iniciar o Brasileiro. Cantarele, já recuperado, resmunga a perda do posto, o que gera um certo atrito. “Eu aguardei a minha chance, agora ele que espere a dele”, responde um irritado Raul a um repórter.

Desafiado, testado, motivado, Raul disputa um excepcional Brasileiro. É um dos melhores goleiros da competição, com algumas atuações tão boas que acabam lhe valendo o retorno à Seleção Brasileira. O novo treinador, Telê Santana, dá a Raul a condição de titular do escrete canarinho nos primeiros amistosos do time, mas logo desiste da ideia, contrariado com o que considera “rebeldia” do goleiro, excessivamente independente e irresignado com certos métodos de treinamento, que julga ultrapassados.

O Flamengo é Campeão Brasileiro e Raul segue intocável na condição de titular. Por enquanto.

Pode parecer (e é) clichê, mas o futebol é dinâmico. Talvez nisso resida seu encantamento. Pois no início de 1981 Coutinho se desliga do Flamengo (não resiste ao vazamento de uma suposta lista de “dispensáveis”, decorrente do ruim desempenho no restante da temporada de 1980). Assume Modesto Bria, que logo desiste das pressões da função. Chega Dino Sani, técnico de perfil “linha-dura”, similar ao de Telê Santana. De início, Dino não mexe no gol, mas uma falha de Raul na partida decisiva das Quartas-de-Final do Brasileiro contra o Botafogo acelera uma decisão já tomada pelo treinador. “Vai pro banco até que comece a treinar direito”, avisa a Raul, que segue se negando a alterar sua “suave” rotina de treinamentos. Irritado, Dino avisa que “comigo esse não trabalha”, e pede que Raul seja negociado, adicionando mais uma à lista de encrencas que arruma em poucas semanas (com efeito, além de Raul, Dino entrou em atrito com Rondinelli, Mozer, Andrade, Adílio e Tita, entre outros).

Com Cantarele no gol e Dino no banco, o Flamengo conquista a Taça Guanabara, válida pelo Primeiro Turno do Estadual. No entanto, Cantarele falha estrepitosamente no segundo gol de Éder, na estreia da Libertadores, contra o Atlético-MG, no Mineirão (2-2). Mas é mantido, numa rara demonstração de paciência de Dino Sani.

Após mais uma turbulência ocasionada por uma reação intempestiva de Dino (mandou multar o jovem Mozer em 40% do salário porque o zagueiro tentou driblar um atacante do Serrano na frente da área, em lance que quase terminou em gol), a diretoria, farta das confusões, demite o treinador, num desfecho até certo ponto esperado. Assume o auxiliar Carpegiani, que em princípio mantém Cantarele no gol. Mas Cantarele falha novamente pela Libertadores, agora no empate contra o Olimpia (1-1), no Maracanã. O goleiro (junto com o resto do time) sai vaiado, e volta a mostrar a velha e decantada irregularidade.

Carpegiani, cauteloso, avisa que irá implantar um”rodízio” entre os goleiros. Assim, Cantarele atua pelo Estadual, contra o Volta Redonda (1-1), e Raul retorna na partida seguinte, contra o Atlético-MG, no Maracanã (2-2). Agora, virão as batalhas de Assunção, pela Libertadores, jogos complicadíssimos, nos quais o Flamengo precisará marcar, no mínimo, três pontos para seguir vivo, numa situação de pressão extrema. Cantarele sofre uma lesão às vésperas da partida contra o Cerro Porteño, Raul assume a vaga, vai muito bem nas duas partidas (o Flamengo obtém os tais três pontos), ganha a posição de vez e Carpegiani (discípulo de Coutinho) desiste do rodízio. Raul está de volta ao gol.

Raul permanecerá cerca de um ano como titular. Nesse período, conquistará rigorosamente tudo o que entrar em disputa, tornando-se um dos mais vitoriosos jogadores da história do futebol brasileiro. Mais do que titular, Raul é, juntamente com Zico e Júnior, uma referência de voz ativa no elenco.

O Flamengo disputa alguns amistosos durante a Copa de 1982. Raul atua com dores nas costas, que se tornam mais intensas, até comprometer sua permanência em campo. Após bateria de exames, conclui-se que uma cirurgia é necessária. “Opero, volto e paro”, decide o veterano goleiro.
Assim, Cantarele está de volta ao time.

Cantarele disputa todo o Estadual e a Libertadores de 1982. E vive, talvez, seu melhor momento técnico no Flamengo, realizando algumas exibições espetaculares (em uma derrota para o Peñarol, em Montevideo, operou vários milagres, evitando a goleada). No gol, conquista o Pentacampeonato da Taça Guanabara (Primeiro Turno do Estadual), coroando uma série de atuações vistosas e seguras.
Na reta final da temporada, Raul volta aos treinamentos. Mas Cantarele é mantido, em função do nível de suas atuações. No entanto, o goleiro é criticado no gol que elimina o Flamengo da Libertadores (não pulou na cobrança de falta de Jair), partida que faz nascer um princípio de crise na Gávea. Cansado, desmotivado e vivendo alguns problemas de relacionamento, o Flamengo arrasta-se em campo e começa a acumular derrotas inesperadas. Carpegiani, demonstrando estar sentindo a pressão do mau momento, começa a tomar decisões precipitadas. Uma das mais polêmicas é a escalação de Raul, completamente fora de ritmo, para a Final do Estadual contra o Vasco, sacando Cantarele, que sentira uma lesão leve mas treinara normalmente na véspera da partida.

Pela primeira vez, Cantarele demonstra, de forma incisiva, insatisfação e o desejo de trocar de clube.

Mas isso não acontece, ao menos por enquanto. Em 1983, Raul avisa que esta será a sua última temporada. Carpegiani, apesar da pesada crise, é “prestigiado” e mantido, mesmo com os reiterados sinais de que perdera o vestiário. Não durará muito.

Após uma frustrada experiência com o ainda inexperiente Carlinhos, o “capita” Carlos Alberto Torres assume o comando do time. Uma de suas primeiras providências é uma conversa com os líderes do elenco (Zico, Júnior e Raul) para discutir detalhes do funcionamento da equipe. Raul, naturalmente, segue como titular, e se torna peça importante, com excepcionais atuações nas partidas da reta final do Campeonato Brasileiro, que o Flamengo conquista pela terceira vez.

Ao final da competição, o Flamengo empresta Cantarele ao Náutico. O goleiro agrada, mas em dezembro retornará à Gávea, insatisfeito com os atrasos salariais no clube pernambucano que, por sua vez, desiste da compra por considerar o jogador caro em excesso.

O segundo semestre é violentamente turbulento. A venda de Zico acende uma das mais fortes crises da história do Flamengo. O time simplesmente entra em colapso. Perde quatro dos cinco clássicos da Taça Guanabara. Sofre derrotas contundentes. Escapa de goleadas humilhantes. Um, e apenas um jogador, escapa incólume às pesadas críticas despejadas sobre o elenco: Raul, que com atuações verdadeiramente antológicas impede que o quadro se torne ainda mais grave. O goleiro está obcecado em uma despedida “em alto estilo” e efetivamente vai empilhando uma grande atuação atrás da outra. É figura fácil no quadro “O Goleiro do Fantástico”, que premia a melhor exibição de um arqueiro no domingo. Defende pênalti contra o América, fecha o gol contra o Bonsucesso, faz o diabo. Um dia, não pode jogar, contra o Bangu. Entra Abelha, jovem que se destacou no Brasileiro pela Ferroviária-SP, que o Flamengo trouxe para a reserva. O time leva de seis. E Abelha falha em pelo menos dois gols.

A situação melhora no Segundo Turno, em que o Flamengo aproveita a pausa para a Copa América e refaz parte da equipe. As vitórias voltam (o Flamengo vence todos os cinco clássicos), Raul segue mantendo grandes atuações e conquista seu último troféu, a Taça Rio (Segundo Turno). Durante o percurso, o Flamengo anuncia a contratação, para o ano seguinte, de Ubaldo Fillol, tido como um dos melhores goleiros do mundo. Raul, ao saber do nome que irá substituí-lo, rende-se e, numa rara manifestação de emoção, emenda:

“É a maior demonstração de reconhecimento que o Flamengo pode me dar. Não serei substituído por qualquer um. Estou sensibilizado.”

Cantarele permaneceu no Flamengo até 1989, quando encerrou a carreira. Nesse percurso, ocupou a reserva de Fillol, assumindo a condição de titular em 1985, com a venda do goleiro argentino. Manteve-se à frente do gol rubro-negro até a reta final do Estadual de 1986, quando torceu o joelho e perdeu a posição, que não mais recuperaria, para Zé Carlos. Seguiu, até o final, alternando grandes atuações com falhas grosseiras.


Raul largou o futebol em dezembro de 1983, como prometera. Seu jogo de despedida reuniu praticamente todos os grandes jogadores brasileiros em atividade, inclusive atuando no exterior, como Zico, Edinho e Falcão. O amistoso, entre Flamengo e “Amigos de Raul” (terminado com o placar de 3-2 para o combinado), foi realizado no Maracanã, para 41 mil pagantes. Daquele que foi o melhor time da história do Flamengo, apenas Zico também logrou despedir-se do futebol em um grande jogo no Maracanã.