domingo, 3 de abril de 2016

Alfarrábios do Melo

Sonhou com isso a vida inteira.

Brigou, falou muita bobagem, indispôs-se com quem não devia, foi afastado, reintegrado, perdeu uma Copa do Mundo. Perdeu o carinho de uma nação inteira.

Rendeu-se às circunstâncias, negociou com o destino, adaptou-se, tornou-se vencedor. Ganhou tudo. Aos 23 anos, já era um dos mais vitoriosos atletas em atividade no país. Inclusive com gol de título no currículo.

Mas, no fundo, era um coadjuvante. Uma escada. Um pilar para que outros jogadores brilhassem.

Uma sombra.

Não nascera para isso. Não entendia ser esse seu papel. Tinha talento, sabia disso. Talento para ser referência, protagonista, craque do time. Ocupar um papel que, enquanto ELE estivesse jogando, jamais seria seu.

Camisa 10.

E seguiu, a seu modo, brigando, falando bobagem, indispondo-se.

Até que o ciclo de vitórias arrefeceu. Surgiram reveses. E sua cabeça foi entregue numa bandeja a uma horda enfurecida. Que, paradoxalmente, diante dos seus despojos, gemeu de remorso.

Amor e ódio.

Foi parar nas geladas terras do Sul. O futebol pesado, brigado, de contato, casou bem com seu estilo impetuoso, aguerrido, competitivo. Rapidamente tornou-se o centro de criação. O nome. O cara. O 10. Fez gol e deu gol de tudo que é jeito, virou um dos melhores em atividade, ganhou jogos, batalhas. Títulos. O continente.

E enfim se sentiu amado. Ídolo.

E o Flamengo, sem sua presença, até demorou, mas voltou a brilhar. A erguer taça. A alojar-se no topo. A separação mostrando-se acertada e abrindo a todos o caminho das vitórias.

Mas não há certeza que perdure no volátil mundo da bola. Acontece que ELE acabou sendo negociado. Seguiu o caminho do eldorado italiano. Abriu-se a única lacuna capaz de desestabilizar suas certezas, seus planos, seu chão.

A sonhada camisa 10, objetivo de toda uma vida, estava livre.

O Flamengo tenta um punhado de jogadores. Nenhum funciona. Craque, jogador rodado, aposta, garoto. Todos são incinerados. Isso aumenta sua ansiedade. Vê seu elemento de cobiça ali, balançando no varal, parecendo estar apenas e tão somente à sua espera.

Não há como se manter indiferente.

Seu rendimento cai. Os gols e grandes jogadas rareiam. A luta, sempre presente, está intacta, mas as cobranças passam a se avolumar. “A cabeça está no Rio”, resmunga a impaciente torcida gaúcha.

O empréstimo termina em dezembro. Há o Mundial Interclubes. Mas, diante de uma crise que teima em se instalar na Gávea, o Flamengo manda emissário ao Sul. Quer tê-lo de volta. Já. Agora. Para assumir a Camisa 10. Caso contrário, contratará um jogador de ponta. De seleção. Já há negociações.

O cavalo está passando selado.

Com todo o respeito ao Sul, à torcida gaúcha, ao Mundial Interclubes, à carreira até aqui muito bem sucedida em Porto Alegre, a resposta é sim. Aceita antecipar o retorno para a disputa do Estadual.

Chega o dia da apresentação. Da assinatura (simbólica) de contrato, reajustado para valores mais robustos. E da entrega da Camisa.

Recebe o pano negro e vermelho. Acaricia ansiosamente a malha, procurando pelo verso, onde está estampado o número. Pousa detidamente os vidrados olhos naqueles algarismos filetados, tingidos em branco.

E chora. Chora copiosamente, aos prantos, corredeiras de lágrimas. Qual um recém-nascido.

Agora, é o Camisa 10 da Gávea. O craque. O líder.

O capitão.
* * *

Fillol, Jorginho, Leandro, Mozer e Júnior (Adalberto); Andrade, Adílio e Tita; Bebeto, Nunes e Lico (Élder).


Com esse time-base, o Flamengo atravessou dois anos sem títulos, marca que não amargava desde 1977. Na temporada de 1984, sofreu três goleadas em jogos oficiais, o que não acontecia desde 1969. O jejum de títulos somente seria encerrado em 1986, com a conquista do Estadual.