domingo, 20 de março de 2016

Alfarrábios do Melo

Tava acabando.

Eu sabia, você sabia, todos nós sabíamos que tava acabando.

As pernas já pareciam pesadas, a mobilidade não era a mesma, sequer a camisa 9 era sua, perdida para um talentoso forasteiro. As taças, antes fartas, tornaram-se escassas, a alegria de outrora dera lugar à aridez, à desconfiança, às decepções.

E a solução era mudar de ares.

Naquele momento, já meio que se sabia de orelhada que você estava para sair pra Itália, o próprio Flamengo já estava atrás de outro forasteiro, começando outro desmonte no elenco, prática aliás corriqueira naqueles tempos.

Mas não ia ser assim, de qualquer jeito. Precisava de uma despedida. Você não era um qualquer. Não ia sair pelos fundos, em silêncio, apagando-se aos poucos, qual a tremeluzente chama de uma vela que se esvai, morosa, até fenecer, quase anônima.

O anonimato é para os coadjuvantes.

* * *

Você apareceu em 1990, pouco menos de um ano após o Bebeto nos largar. Tentamos Nando, Bujica, até o Borghi, que nem centroavante era. Alguns até viveram bons momentos, mas todos fracassaram. Aí você chegou. Veio no meio da semana e já foi pro jogo num domingo. Gávea, sol no lombo, Cabofriense. Sono. Dizem que o centroavante só estreia no dia que marca seu primeiro gol. Então você já estreou estreando. De cabeça. Sempre de cabeça. Jogou bem, deu passe. Termina o jogo, 3-1, os chacais dos microfones lhe seguem, vão atrás de alguma declaração deslumbrada, já querendo lhe elevar a um Van Basten, um Klinsmann da vida. Aí você desmonta os caras, “não joguei nada, estou fora de forma, um jogo desses era pra meter dois ou três”. A marra, a autoconfiança dos vencedores.

1990 foi um ano ruim, triste. A Copa do Brasil e a dupla que você fez com seu chapa Renato amenizaram aquela temporada. Ia melhorar no ano seguinte, quando o Luxemburgo e principalmente o Carlinhos montaram um time jovem, comandado pelo Júnior Maestro, cheio de garoto bom de bola e com alguns elementos de apoio escolhidos a dedo. Você encaixou magicamente naquele time... fazia gol a rodo...

Dizem que você só sabia cabecear (como se fosse pouco). Não. Além de chutar com a cabeça (me perdoe o clichê), você era veloz. Bom de contragolpe. E tinha bom passe. Tudo bem, não era propriamente íntimo da bola, mas se virava bem com ela. Sabia usar o corpo e fazer um pivô. Era um “falso lento”. Ao invés de travar o time, o acelerava. Aproveitava a bola parada do Júnior e os contragolpes dos meninos. A peça perfeita.

Aquelas tardes... as pilhas de vitórias sobre os rivais. Como você judiava do Botafogo, do Vasco... teve um clássico com o Vasco. Jogo pegadíssimo, pesado, rivalidade na flor. Time perdendo. Aí aparece um pênalti. No auge da tensão, você dá uma porrada no meio e sai com a bola na barriga, “vou pra galeeeera”. Êxtase. Depois o Nélio virou. E você foi pro Chico Anysio...

E com o Botafogo? Teve um jogo que o time fez dois, um seu, mas no final cansou e deu o empate. Jogo-extra na quarta, a imprensa toda animadinha, saudando a “ressurreição” alvinegra, lembrando 1989, uma conversa chata. Aí na quarta você cala a boca dos caras, chute seco, no canto. Campeão. Na entrevista, “E o Botafogo? Beijinho, beijinho, tchau, tchau. Que comprem uma TV pra nos assistir”.

E as comemorações? Cada gol era um trenzinho, um parquinho, uma dancinha. Aquele time era alegre, nos fazia alegres. Felizes. Felizes eram aquelas tardes de domingo, que se ia pro estádio só esperando a vitória do Flamengo, os braços estendidos, batendo palmas ou balançando as camisas em massa, enchente humana em preto e vermelho. E o Flamengo não falhava. Você não falhava.

O auge. As finais com o Fluminense. O lindo gol de cabeça, quase uma homenagem ao Rei Dadá. Depois, o Brasileiro. Você começou voando, gol a cacho, a gente começando a pedir você na seleção. O jogão com o São Paulo no Maracanã, todo mundo vendo, Parreira no estádio. E você meteu dois.

Veio a lesão. A demora na volta. A dor. Dois meses fora. No retorno, dois gols contra o Goiás. Parecia que tudo iria bem. Mas algo havia mudado. Alguma coisa estava diferente. Os jogos em branco começaram a se suceder, os gols repentinamente a sumir, como em uma maldição. E nós sofríamos a cada revés seu. Passaram-se seis jogos. 45 dias. Uma eternidade até que você, meio manquitolando, meio escorregando, meio derrapando, acertasse uma varada no meio das redes do Santos, nos colocando na Final do Brasileiro. O rádio no meu ouvido, joguei longe. E dei um pulo, berrando: “Gaúúúúúúúúúúúúúúúúcho!!!”. Como era legal ganhar com um gol seu...

A imprensa, como sempre, dava o Botafogo como favorito. E, como sempre, fomos os campeões. Com gol seu no primeiro jogo. E que gol... Uma cabeçada que quase rebentou a rede. Segunda partida, você lá no banco, copo de cerveja na mão, impaciente, querendo festejar. O topo.

E o começo do fim.

* * *

Faltavam poucos jogos. A gente sabia.

Tava lá na tabela: Fla-Flu. O Nilson tava vindo de lesão, voltando aos poucos, você tinha retomado a posição. Era jogo grande. Valia liderança da Taça Rio. O Fluminense vinha invicto e os jogadores deles tinham falado umas bobagens. O clima estava armado. Tinha que ser domingo. Mais uma vez. O último encontro. A despedida.

E o Maracanã se encheu de gente em uma linda tarde de sol. Traje de gala, dia de festa. E o torcedor lhe recebeu, braços estendidos, palmas compassadas. E sonhou com a vitória. Com um gol seu.

E você jogou muito... Você jogou o lindo jogo dos tempos felizes, correndo, mordendo cada bola, dando passes açucarados, puxando contragolpes, catimbando a zaga, finalizando. Uma atuação de gala, uma partida do velho Gaúcho de guerra...

O time deles abriu 2-0. Mas aquele dia era nosso. Podia fazer quatro, que o dia era nosso. Fomos pra cima, o Paulo Nunes diminuiu. Depois do intervalo, caímos pra dentro da área deles, encurralamos, acuamos, esprememos. Fomos Flamengo. Aí, já perto dos trinta, cruzaram uma bola. E você arrumou o corpo, saltou e mandou uma porrada. Uma porrada com a cabeça. A bola foi na gaveta, ainda tilintou no travessão. E o Maracanã foi abaixo. E você e seus Gaúcho's Boys saíram em manada pra comemorar com a torcida. Mas não teve dancinha, não teve rodinha. Foi na euforia de sentir a massa, de se misturar, de se amalgamar, de se imiscuir com a gente flamenga uma derradeira vez. De sentir a galera. O tempo poderia ter parado ali.

Mas não parou, havia um jogo a ser vencido. Não demorou muito, lhe jogaram outra bola na área. Você fez a parede e escorou pro Maestro mandar a bomba. Ele também estava perto de ir embora. E viramos. E vencemos. E pulamos, e cantamos. Pela última vez.


“Ê ô, ê ô, o Gaúcho é um terror...”

E aí você se foi.

Você nos fez muito felizes, parceiro. Essa semana, você nos entristeceu. Uma única vez. Uma derradeira vez. Assim são as coisas.

Vai com Deus, mermão. Lá em cima, vai ter jogo. E vai ter gol do Gaúcho. De cabeça.