domingo, 7 de fevereiro de 2016

Alfarrábios do Melo

Certas pessoas parecem ter nascido para determinadas tarefas.

Edvaldo é Operador de Rotuladora da Turma Omega de Envasamento da maior cervejaria do país. Mais do que isso, Edvaldo é o melhor dos operadores à disposição da empresa.

Desde o início da carreira, demonstra exímio domínio das habilidades necessárias à função. Dotado de vasta sensibilidade, consegue, através de uma refinada capacidade intuitiva e dos conhecimentos adquiridos por uma incessante sede de aprendizado, manejar a miríade de variáveis que compõem o funcionamento de uma das mais complexas máquinas de um parque de engarrafamento de cervejas.

Com efeito, não é fácil encontrar o ponto correto de regulagem das buchas de aplicação de cola, sincronizando-os com os bicos injetores do fluido adesivo, ou com a respectiva pressão de aplicação nas garrafas. Da mesma forma, as escovas de fixação dos rótulos nos vasilhames precisam manter-se no ótimo estado de utilização, evitando seu desgaste prematuro, assegurando assim máxima vida útil, dentro dos preceitos de desempenho otimizado. Ou seja, cola demais gera desperdício e papel “sambando” no vidro, cola de menos ocasiona fixação inadequada, perda de papel e retrabalho. Esponjas com excesso de pressão se desgastam mais rápido, baixa pressão não espalha a cola direito. Escovas gastas não prendem o rótulo corretamente, escovas muito “apertadas” fazem o papel “correr” pela garrafa. Fora isso, há a configuração da velocidade de entrada das garrafas, que deve ser compatível com a regulagem das buchas e escovas, há o controle de umidade na estocagem do papel, há a forma correta de preparo e despejo da cola no compartimento correspondente, há o controle da maquineta datadora (que consiste em um finíssimo bico injetor de tinta, programado para borrifar as informações referentes a data, hora e local de envase), que deve incidir sobre uma área previamente determinada do rótulo, há o sensor de garrafas defeituosas (mal-cheias ou sem rótulo), que deve estar funcionando a contento.

Todas essas habilidades são dominadas com maestria por Edvaldo, que é capaz de farejar o mais remoto sinal de anomalia, sanando-a com uma precisão cortante. Sua turma costuma obter, de longe, os melhores números em eficiência de rotulagem, operando a uma taxa média de 70.000 garrafas/hora, enquanto as outras duas turmas mal alcançam as 65.000 gfs/h. A qualidade do trabalho de Edvaldo já chamou a atenção da direção, que anda impressionada com a sofreguidão com que o funcionário costuma devorar os livros, manuais e outros materiais técnicos postos à disposição da equipe.

Edvaldo parece ter potencial para ir longe.

Acontece que o contramestre acaba de ser demitido. Andou excessivamente entusiasmado por uma das meninas do Farol (equipamento de inspeção de impurezas nas garrafas), moça brejeira, cabelos lisos, pele em brilhante âmbar, corpo sinuoso, olhar cúpido que instiga os mais lúbricos pensamentos e..., enfim, o contramestre foi flagrado amassando a garota na Sala de Cápsulas em pleno pico de produção. Vala. Rua. Pros dois (não sem certa hesitação do Gerente em despedir a moça, mas isso não vem ao caso). E a empresa se vê diante de uma dificuldade. Precisa de um novo contramestre.

Reúne daqui, telefona dali, confabula-se de lá. E o martelo está batido. Edvaldo está promovido. Será o contramestre da Turma Omega.

A função de contramestre requer outras habilidades. O conhecimento técnico específico dos equipamentos é desejável, mas seu aprofundamento é dispensável. O profissional não precisa conhecer a fundo uma Rotuladora, mas precisa ter a exata noção do funcionamento básico de uma Paletizadora/Despaletizadora, Encaixotadora/Desencaixotadora, Lavadora de Garrafas, Farol Cheio, Farol Vazio, Enchedora de Garrafas, Pasteurizador e, naturalmente, da Rotuladora, além das redes auxiliares de insumos e requisitos de estocagem e armazenagem. Visão sistêmica é imprescindível, a partir do momento em que a falha no funcionamento de uma dessas máquinas compromete toda a linha de envase. Ademais, como líder de equipe, o contramestre terá que lidar com uma variável muito mais complexa do que os inúmeros parâmetros de regulagem de escovas e sensores: o comportamento humano.

Vai começar a tormenta.

As dificuldades logo surgem. Uma linha de Envasamento possui uma dinâmica própria, feérica, pulsante, sem espaço para hesitações. Acostumado a processar múltiplas variáveis na cabeça. Edvaldo demonstra falta de traquejo na identificação de problemas específicos que atrapalham o rendimento da linha como um todo. Precisa de cumplicidade, de troca, de confiança com os demais operadores. Mas, com seu jeito excessivamente tecnicista, racionalista, pragmático, não consegue “seduzi-los” profissionalmente. Desprovido de carisma, desde o primeiro momento vê-se eivado por uma desconfiança intrínseca, confundindo cautela com simples sonegação de informações. Seus novos comandados o testam, e Edvaldo sabe disso. No entanto, seu jeito introspectivo, contido, que internaliza as intempéries acaba por intensificar e consolidar um fosso no relacionamento com seus novos comandados. Corroído por essa certeza, Edvaldo começa a ser tragado pela nova realidade.

O desempenho da Turma Omega começa a cair assustadoramente. As antigas 70.000 gfs/h decrescem para 68, 65, até se estabilizarem em algo em torno de 60 mil. A outrora premiada Omega agora é a pior turma da Fábrica. Edvaldo introjeta, absorve, somatiza o golpe. Cada Boletim de Produção com os pífios resultados lhe fustiga, lhe apunhala. Edvaldo torna-se taciturno, soturno, lúgubre. O olhar distante e melancólico denuncia a mágoa com as piadas, a chacota das “resenhas” da peãozada. Mantém-se próximo de uns três ou quatro, em quem (ainda) confia. A relação com aqueles que deveria liderar se deteriora a um nível de tolerância tácita. Não há troca, não há intercâmbio, não há confiança, não há nada. Os operadores não o vêem como comandante, ele não os vê como colegas. As mútuas trocas de olhares sugerem medo. O medo do fracasso. O medo do revés. Que, ao se apresentar verborrágico, caudal, inapelável, deságua na indiferença. Na passividade.

Edvaldo sabe que está por um fio. Tem plena noção de que, na avaliação externa da cúpula, sua atuação tem sido insatisfatória. Trocou-se um excepcional operador por um contramestre medíocre, inapto para o cargo. É alvo de pressões diárias por melhoria no desempenho, mas a continuidade dos maus resultados não o incomoda mais, e muito menos aos operadores, mais preocupados com o relógio de ponto ou com as “cruzetas” nos bares e quebradas da vida. A situação chega ao limite do insustentável.

Chega a baixa estação e o recesso coletivo. O retorno trará várias surpresas.

A empresa resolve investir na linha de produção. Alguns equipamentos são modernizados, outros são simplesmente trocados por unidades mais modernas. Vários profissionais são substituídos, especialmente na Gerência e no Controle de Qualidade. Edvaldo, que chega a ser cotado para sair, é mantido como contramestre, mas recebe algumas sinalizações bastante enfáticas do novo Gerente. Precisará dar resultados, e logo. Receberá o apoio que julgar necessário, mas será cobrado de uma forma muito mais próxima e clara, inclusive com planilhas de indicação de desempenho individual. A empresa está investindo muito dinheiro e quer retorno. A curto prazo.

Edvaldo parece concentrado. A definição de parâmetros de medição individual de desempenho o fará identificar eventuais focos de resistência à sua liderança, algo outrora intuitivo. Os novos equipamentos são realmente bons, modernos, o que reduzirá a necessidade de improvisações, sempre dependentes de “macetes” e “gambiarras” nocivos ao ambiente corporativo. O período de treinamento e capacitação transcorre com certa tranqüilidade, todos curiosos e ansiosos em conhecer as novas traquitanas com que trabalharão.

Mas, assim que a nova linha roda, algumas conclusões surgem. Os resultados são aceitáveis. Poderiam ser melhores, mas, dentro de um contexto de aprendizado organizacional, ainda há como tolerá-los. No entanto, a Turma Omega segue atrás das outras. Sistematicamente, seus boletins ainda são os piores de toda a Linha do Envasamento. O nível de pressão e cobrança sobre Edvaldo começa a atingir patamares extremos. Não há mais espaço para piadas. Surge o ódio. Edvaldo agora é o pária que está atravancando o êxito da Companhia. É o estorvo. É a pedra. É o obstáculo que precisa ser removido do caminho. Fala-se abertamente na contratação de um novo contramestre. Comenta-se que já se prospectam nomes no mercado. Capaz de terem inclusive iniciado, reservadamente, um processo seletivo.

Edvaldo não faz mais reuniões. Está melancólico. Reativo. Pensa. Pensa, e pensa. E se sair? Sabe que tem potencial, na pior das hipóteses voltará a ser um mero Operador. Diz-se que os chineses estão investindo em linhas de produção, é possível que se interessem em importar know-how. Mesmo no mercado nacional, sabe que ainda possui certo espaço. Mas e a sensação de derrota, de fracasso? E se sair e a fábrica der um salto nos resultados, salto esse que tem plena certeza que irá acontecer? Carregará a pecha de culpado único? Receberá sozinho o fardo da responsabilidade pelos fracassos pretéritos?

Sem chegar a qualquer conclusão, Edvaldo resolve seguir estudando, buscando se aprimorar tecnicamente. Afaga sua farta barba, enquanto se perde em mais e mais divagações. Sim, com os resultados ele poderá responder a todos. Calar bocas. Silenciar críticas. Expor seus desafetos.


A sirene toca. É hora de voltar ao trabalho.