terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Alfarrábios do Melo

1915.

A próspera cidade de Belém do Pará já se movimenta para as festividades que celebrarão, em janeiro do ano seguinte, os 300 anos de sua fundação e emancipação. Não serão poupados recursos nem esforços para que o aniversário da cidade se revista de um acontecimento magnífico, espetacular, inesquecível.

Nesse contexto, programa-se uma grande partida de futebol, esporte que já mobiliza milhares de pessoas nos vários recantos do país. Um match entre o scratch paraense e a seleção da capital federal. Em jogo, a Taça do Tricentenário de Belém.

Destarte, a Liga Paraense remete, em meados de setembro, telegrama à Liga Metropolitana de Sports Athleticos (LMSA), na prática a Federação Carioca, convidando-a para enviar seu scratch para a disputa do troféu em partida amistosa, a se realizar em janeiro. O convite é prontamente aceito, gerando forte expectativa entre o mundo esportivo local, que irá, pela primeira vez, receber os representantes do principal centro futebolístico do país.

Passa-se o ano, e a LMSA, em que pese o sucesso de público do seu campeonato (vencido pelo Flamengo pela segunda vez consecutiva, agora de forma invicta), vê-se envolta em controvérsias de toda ordem. Com efeito, as partidas começam a se tornar mais inflamadas, e o espírito amador que as permeia tem-se deteriorado com expressiva rapidez. Os problemas extracampo, com invasões e inclusive necessidade de anulações de partidas, passam a se suceder em número preocupante. As decisões dos árbitros, antes soberanas, já são abertamente questionadas na imprensa. E, para complicar, a própria Liga tem dificuldades de organizar e preparar sua seleção, que recentemente amargou uma humilhante derrota para o scratch paulista (8-0), a pior de sua história, sem ter disputado previamente sequer um treino.

Diante da necessidade de honrar o convite dos paraenses, uma LMSA criticada e dividida começa a solicitar dos clubes filiados a cessão de jogadores para a longa e penosa viagem até Belém, a se realizar num barco a vapor. O Flamengo e o São Cristóvão prontamente se dispõem a ceder atletas e o Fluminense libera dois elementos. O Botafogo e o América não respondem ao chamado, e assim a formação de uma equipe efetivamente representativa vai sendo ameaçada. O prazo para a viagem vai se escorrendo, mas a Liga já não parece muito preocupada com o problema.

E não é sem surpresa que em dezembro, a uma semana da data programada para a viagem (que não pode ser adiada, pois não há mais linhas regulares capazes de chegar a tempo ao destino), a LMSA envia telegrama à Liga Paraense, onde informa que infelizmente não será possível atender ao convite, sem fornecer mais detalhes. Lamenta muito, mas não poderá fazer parte do grande amistoso.

A versão apurada pelos jornais dá conta de certo desentendimento quanto ao número de passagens a serem bancadas pelos paraenses, uma vez que a LMSA exigia o fornecimento de bilhetes para camarotes individuais para cada membro da delegação, algo já indisponível na embarcação agendada. Mas há quem sustente que, diante da indolência dos clubes em ceder jogadores, a LMSA tenha desistido previamente da viagem, deixando para comunicar em cima da hora sua decisão para que os paraenses não pudessem chamar outra Federação rival (notadamente a de São Paulo).

O comunicado da LMSA consterna e indigna a Liga Paraense. Toda a logística do grande jogo já está montada. Ingressos vendidos com antecedência e devidamente esgotados, desfiles, personalidades ilustres já convidadas para as tribunas, despesas já empenhadas com deslocamento e hospedagem da delegação visitante, tudo agora corre o risco de vir abaixo. A se cancelar o amistoso, uma humilhação e uma decepção sem precedentes chocariam a sociedade local. Algo precisa ser feito. Até que alguém dá a ideia. Será arriscado. Ferirá suscetibilidades. Dificilmente será levado a termo. Mas é imperioso que seja tentado.

Com isso, a Liga Paraense resolve, diante da desistência da Liga Metropolitana, enviar um telegrama, em caráter de urgência urgentíssima, ao seu campeão, o Clube de Regatas do Flamengo. Que está convidado, assim, a disputar a Taça Tricentenário contra o scratch paraense.

O Flamengo é indiscutivelmente o melhor quadro do Rio de Janeiro. Se em 1914 ganhou o campeonato após uma renhida disputa com os rivais, desta feita a equipe passeou em campo, tendo derrotado de forma inapelável todos os concorrentes (com destaque para as goleadas por 5-0 no Fluminense e 4-2 no América). Ao sistema defensivo sempre sólido, comandada pelo goleiro Baena e os backs Píndaro e Nery, agregou-se um ataque agora devastador, onde se destaca a dupla formada pelo “arco” Sidney Pullen e a “flecha” Riemer (o primeiro grande artilheiro da história do clube). Os veteranos Borgerth, Gallo, Curiol e Arnaldo, junto com o chileno Parras, completam um elenco que foi capaz de marcar 35 gols em 12 jogos, levantando assim, mais uma vez, o campeonato da cidade, agora de forma invicta.

Faltam apenas DOIS dias para a partida do navio “Rio de Janeiro”, do Lloyd Brasileiro. É quando chega à diretoria do Flamengo o convite dos paraenses. Fosse o vetusto Fluminense, o pernóstico Botafogo ou o burocrático América, a missiva seria recebida aos gargalhos e respondida com alguma recusa educada e elegante. Mas o Flamengo, de forma audaz e ousada, sequer coloca o assunto em discussão. Aceitará a viagem sem pestanejar. E, sem pensar muito, se põe à ação.

De forma inteligente, o Flamengo ratifica a viagem daqueles jogadores que já estavam preparados para a excursão, reforçados pelos atacantes Welfare e Baptista, do Fluminense, e mais um jogador do Botafogo. As vagas restantes são preenchidas por jogadores rubro-negros, naturalmente. E assim, em apenas 24 horas, o Flamengo consegue montar uma delegação com 15 jogadores e embarcá-la no navio “Rio de Janeiro”, com destino a Belém. A questão dos camarotes é resolvida de forma improvisada, como sói ao espírito flamengo. Os atletas dividirão quartos até a primeira parada, ocupando os que se forem esvaziando ao longo da viagem.

E assim o Flamengo parte com destino ao Pará. A viagem será tranquila. Mas em terra começará a turbulência.

A desconcertante forma como o Flamengo ajeitou e organizou sua viagem, contrapondo-se à incapacidade demonstrada pela LMSA, que em quatro meses não conseguiu realizar o que seu filiado logrou encetar em menos de 48 horas, recebe péssima repercussão entre os meios esportivos cariocas. A Liga vira motivo de chacota e escárnio, abrigo da “nata da incompetência”, “refúgio dos obtusos”, entre outras pechas pouco altaneiras. Ainda atordoados, seus dirigentes convocam, às pressas, uma reunião emergencial para tratar do assunto. Reunião que será sigilosa, fechada à imprensa.

Algumas raposas felpudas começam a farejar a tempestade se armando.

A reunião é densa, carregada. A LMSA exige do Flamengo explicações, especialmente por não ter recebido deste a ciência do convite e de ter decidido pela viagem sem o requerimento de autorização prévia. Há uma quebra de hierarquia aqui, o que remete à indisciplina, rosna a Liga. O Flamengo se defende, argumentando ter sido impossível convocar uma Assembleia em tão exíguo espaço de tempo. Fluminense e América, tradicionais aliados políticos flamengos, alinham-se ao discurso rubro-negro, mantendo o tom de confrontação. Mas o representante do Botafogo faz uso da palavra e profere um discurso extremamente agressivo, taxando de “inaceitável” e “inadmissível” o ato de “rebeldia” que se revestiu de um “tapa na cara” da sociedade carioca e brasileira. O discurso botafoguense é tão virulento que gera vários bate-bocas, a nível colegial, entre o dirigente alvinegro e os seus pares flamengos e fluminenses. Mas, encerrados os discursos e decorrido o intervalo para as deliberações, chega-se à decisão final.

A LMSA decide romper relações com a Liga Paraense e comunica ao Flamengo que o clube não está autorizado a realizar NENHUMA partida, sob nenhum caráter, fora do território do Rio de Janeiro, sob pena de sumária desfiliação e banimento do futebol. Ademais, a LMSA recomenda enfaticamente que a delegação já posta em viagem desembarque no primeiro porto e retorne imediatamente ao Rio de Janeiro, evitando assim a possibilidade de aplicação de suspensões individuais aos seus integrantes.

A decisão está tomada, por 7 votos a 5. Entre os votos favoráveis à LMSA, estranhamente figuram América e Fluminense.

A publicação das medidas da LMSA provoca um terremoto no mundo esportivo carioca. Está criado um impasse com poucas possibilidades de solução. Indignado, o Flamengo avisa que sequer dará à delegação a ciência de medidas tão estapafúrdias. A esmagadora maioria dos jornais segue apedrejando a falta de habilidade política e a vaidade dos dirigentes da Liga, incapazes de abordar uma questão tida como “simples”, transformando-a em um imbróglio interestadual.

A essa altura, o “Rio de Janeiro” já se aproxima de São Luís.

É quando entra em cena o Senador Lauro Sodré, principal idealizador e entusiasta da realização dos amistosos em Belém. O Senador passa a desenvolver uma série de conversas com o Presidente da LMSA e a se comunicar com a Liga Paraense, costurando uma solução para o caso. Após alguns jantares e uma meia-dúzia de telegramas, resolve-se que a Liga Paraense deverá expedir um telegrama aos cariocas, explicando os motivos que a levaram a se dirigir diretamente a um filiado, passando por cima das boas práticas hierárquicas, e dando ciência das responsabilidades assumidas com a realização do evento, enfim.

E assim se faz. Emitido o telegrama (vasto, com um cacho de laudas), a LMSA procede conforme combinado com o Senador. Convoca novamente os filiados para nova Assembleia extraordinária, mais uma vez sigilosa.

Mais uma vez, a sessão é tensa, embora os discursos já apresentem um tom menos inflamado. O Flamengo, em que pese mostrar-se vivamente incomodado com a questão, evita ferver a água. Como se imaginava, as explicações dos paraenses são bem recebidas pelos dirigentes, que agem para reverter o resultado da reunião anterior. A LMSA ainda cogita exigir que o Flamengo lhe transfira a posse de todos os troféus que eventualmente conquistar, mas, diante da pouca receptividade, recua. E dessa vez, com o voto quase unânime dos clubes (apenas São Cristóvão e Boqueirão FC contrários), a LMSA resolve por reatar as relações com a Liga Paraense e concede ao Flamengo a autorização para disputar quantos jogos entender necessários durante a viagem ao Norte.

A excursão, para alívio generalizado, está salva.

Poucos dias depois, o Flamengo desembarca em Belém, sob uma caudalosa ovação de uma multidão que recepciona a delegação.

A excursão é um sucesso absoluto, em todos os aspectos. O Flamengo vence uma seleção reserva paraense, ainda em dezembro, por 5-1. Já em janeiro, empata com o scratch do Pará (1-1), mantendo em aberto a disputa da Taça Tricentenário. A seguir, vence Paysandu (4-0), Remo (3-2) e o scratch paraense (2-0). E, por fim, no que seria o desempate contra a seleção paraense pela posse do Troféu Tricentenário, acaba vendo o jogo (ainda 0-0) ser interrompido por um temporal com apenas 20' disputados.

O clube desembarca na capital federal com o seguinte cartel de taças conquistadas: Troféu Jornal Folha do Norte, Troféu Artístico, Troféu Clube do Remo, Troféu Bancada Paraense. Ironicamente, o Troféu Tricentenário, pivô de toda a excursão, não terá seu desfecho consumado, restando sem vencedores.

No final de janeiro, a delegação chega à capital federal, pronta para, após breve descanso, dar início aos preparativos da longa temporada que está prestes a ter início. A recepção é calorosa, própria de um clube que já começa a formar laços fraternos de admiração e até idolatria com seus admiradores e seguidores. Relação que pode ser bem expressa na crônica publicada em uma revista da época, que prontamente se reproduzirá aqui, de forma resumida.

“Mademoiselle, logo que acorda e consegue chegar até a Praça Dom Afonso, em Petrópolis, antes de procurar as amiguinhas ou um banco onde as espere, corre para um jornaleiro.
E Mademoiselle, que preferiu sempre os diários de crônicas mundanas, agora toma nervosamente o “Jornal do Commercio” das mãos do vendedor. Pois é a verdade. Mademoiselle hoje é ‘o mais atento e constante leitor’ do Jornal do Commercio em Petrópolis. E abrindo a folha, os seus olhos correm alvoroçados as colunas dos telegramas.
O que será? Notícias da guerra? Algum voluntário patrício que estaria atualmente na Legião Estrangeira do Exército Francês?
Afinal, ela encontrou o que desejava na leitura feita com a maior emoção. Deixou o jornal cair sobre o regaço, deu um suspiro de alívio como quem tira um peso do coração, sorriu, tudo isso enquanto os olhos se umedeceram, preparando o choro.
Concluímos: tem o noivo na guerra, acaba de ler que foi ferido, mas escapou da morte e recebeu condecoração, a Medalha Militar ou a Legião de Honra.
Resolvido o problema, quisemos saborear o prazer da vitória da nossa observação. Aproximamo-nos de Mlle, e expusemos todas nossas conjecturas, à queima-roupa, satisfeitos conosco mesmo por nossa perspicácia. Mlle. sorriu e respondeu-nos, mostrando o que acabava de ler.
- Está enganado. Veja...
Vimos, lemos. Era um telegrama de Belém do Pará. O seu conteúdo:
Belém 9. De todos os jogos entre os footballers cariocas e paraenses, o mais equilibrado e renhido foi o match entre o Flamengo e o Club do Remo, terminando por vitória do Flamengo etc
- Ora, bolas...
- Ora bolas coisíssima nenhuma. É isso mesmo o que o Sr. está vendo aí. Três gols a dois, reportados lá do Pará. E não adianta insistir, porque não abandono o meu Club...
E, antes de correr para o canto oposto do largo, em busca de uma camarada, ainda exclamou:


- Hurrah, hurrah, hurrah, FLA-MEN-GO!!!”