domingo, 29 de novembro de 2015

Alfarrábios do Melo

1988, Taça Guanabara.

Aproxima-se a realização de mais um clássico Flamengo x Botafogo, no Maracanã. Como normalmente ocorre, a imprensa vai atrás de declarações apimentadas, iniciativas polêmicas, tudo o que possa potencialmente promover um jogo que normalmente, nessa época do ano (é março e estamos ainda nas primeiras rodadas), ainda não possui tanto apelo.

Mas uma reportagem publicada exatamente no domingo do jogo chama a atenção pela abordagem inusitada. Em matéria de página inteira, a realidade e o cotidiano dos profissionais dos dois clubes é relatada de forma neutra, meramente descritiva, impessoal, como se poderá constatar no resumo que ora segue.

O resultado é eloqüente em sua crueza.

FLAMENGO
Tudo no Flamengo é amplo, vasto, imenso. E funciona.

Antes dos treinos, cada jogador possui à sua disposição um armário individualizado, identificado com seu nome e número, trancado à chave, onde pode guardar seus pertences. A hidratação de todos os atletas, profissionais ou da base, é feita com água mineral disposta em garrafões localizados em pontos estratégicos. Antes dos treinos, é servido a todos um copo com suco de laranja fresco, recém-preparado, e a seção de fisiologia ainda administra doses de chá mate, que ajuda a otimizar o metabolismo dos atletas.

O almoxarifado da Gávea é comparável aos das grandes lojas do Rio de Janeiro. E impressiona pela quantidade, variedade e organização. Se em determinado momento o preparador de goleiros precisa de dez bolas para realizar uma atividade específica, elas lhe são entregues em cinco minutos, todas novas e rigorosamente calibradas.

Os jogadores do campeão brasileiro treinam vestidos em uniformes impecáveis, reluzentes. Basta um furo ou risco para que sejam tidos como avariados e imediatamente trocados. E, com ou sem danos, todo o lote é substituído em 15 dias. Aliás, cada jogador possui uma cota mensal de uniformes fixa para uso profissional e pessoal, podendo dispor das camisas de jogo como melhor lhe aprouver (trocar, guardar, presentear).

Ainda sobre os treinamentos, quando há a realização em tempo integral, o Casarão de São Conrado é colocado à disposição dos atletas que lá desejem almoçar e descansar. Alojamentos limpos, sala de TV, salão de jogos e refeitório onde são servidas refeições balanceadas e adequadas a um profissional de alto rendimento são algumas das conveniências disponíveis.

O gramado da Gávea, outrora com problemas, foi inteiramente reformado e hoje recebe tratamento especializado. A cada semana o campo recebe uma carga de terra vegetal, usada para nivelar o gramado e retocar a drenagem. A cada 15 dias o gramado é aparado e periodicamente é medido o pH do solo, que avalia a eficiência do processo de drenagem e a correta dosagem de nutrientes para a grama. A marcação do campo de treinos é feita com calcita, material relativamente recente usado em substituição à abrasiva (e mais barata) cal.

Todos os medicamentos necessários para os primeiros socorros e cuidados básicos no tratamento de atletas estão à disposição em um estoque que é reposto semanalmente. É uma das mais completas e variadas “farmácias” que equipam um clube de futebol no país.

O cuidado se estende a outros detalhes. O campeão brasileiro possui um amplo estoque, nunca inferior a 100 unidades, de lençóis descartáveis para forrar as mesas de massagens, macas e outros equipamentos destinados à acomodação dos jogadores, mesmo em outros estádios, quando o time atua ou treina fora da Gávea.

O Departamento Médico é um dos mais modernos do país. Está dotado de aparelhos e equipamentos encontrados apenas nas mais avançadas clínicas particulares. A sala de musculação é aparelhada somente com equipamentos importados dos EUA, com dosagem de carga a ar comprimido (ao invés de pesos). Quando um jogador apresenta algum problema no tornozelo, a proteção é feita com uma bandagem americana de termoplástico, material muito mais sofisticado que o usual. E descartável.

O Estádio da Gávea acaba de ser reinaugurado, podendo acomodar um público de até 8 mil pessoas, revestindo-se de alternativa rentável aos jogos de menor apelo do Campeonato Estadual.

Há planos para a construção de um moderno Centro de Treinamentos no recém-adquirido terreno de Vargem Grande, mas os estudos ainda são preliminares.

Na atual década, o Flamengo conquistou um Mundial, uma Libertadores, 4 Brasileiros, 2 Estaduais. É requisitado para amistosos dentro e fora do Brasil. Mediu forças, atuando no mínimo de igual para igual, com equipes do nível de Milan, Internazionale, Juventus, Napoli, Fiorentina, Porto, Eintracht Frankfurt, Real Sociedad, NY Cosmos e, naturalmente, o Liverpool. Para o meio do ano já está agendada a participação em um torneio com a presença de Ajax, Benfica e Sampdoria.

No seu elenco atuam jogadores do porte de Zico, Andrade, Leandro, Renato Gaúcho, Bebeto, Jorginho, Zé Carlos e Edinho, além dos jovens Ailton, Zinho, Leonardo, Aldair, recentemente egressos da base. Comenta-se que a próxima geração de jogadores possui vários garotos bastante talentosos. Ou seja, tudo aponta para a manutenção desse quadro a longo prazo.

O céu está meio nublado, mas ninguém acredita que vai chover.

BOTAFOGO
O Botafogo, clube que dominou o cenário carioca nos anos 1960, está sem casa para treinar. O campo de Marechal Hermes, esburacado, desnivelado e irregular, além de exibir vários pontos sem grama, foi condenado pelo Departamento de Futebol. E não há previsão concreta de reforma a curto prazo.

Como paliativo, o time treina no improvisado campo de futebol de um hotel no Recreio dos Bandeirantes, que também se traveste de concentração. Ao menos o gramado do campo é adequado, mas não há proteção ou isolamento aos atletas. Mosquitos, répteis e mesmo um touro bravo (que uma vez correu em desabalada carreira atrás do treinador de goleiros) são elementos capazes de atrapalhar e até interromper a realização dos treinamentos.

O vestiário do hotel é pequeno, apertado e precário. Uma corda de nylon é estendida fazendo as vezes de varal, mas a primazia de sua utilização pertence à comissão técnica. Aos jogadores, resta disputar o uso de um pequeno basculante na parede, onde é possível pendurar as roupas sem que amassem. Alguns jogadores chegam mais cedo para “garantir” o privilégio. Aos retardatários, resta empilhar as roupas no chão ou colocá-las em cima de macas ou cadeiras. Além disso, não há chuveiros para todos e a maioria está com as resistências queimadas. Para o banho, é necessário formar constrangedoras filas.

Mas já foi pior. Até pouco tempo atrás, não havia sequer uniformes para os treinamentos. Os coletivos eram realizados entre times “com e sem camisa”. Houve atividades canceladas por falta de bolas. Não havia medicamentos primários, como xilocaína, e não era raro os médicos recorrerem às amostras grátis recebidas em seus consultórios particulares. Os salários atrasavam em meses.

Isso mudou com a chegada de um mecenas, alguém que passou a arcar pessoalmente com as despesas do clube, o que sanou o problema dos salários, da falta de material (ao menos o mais básico) e mesmo do campo, pois o aluguel do hotel também é financiado pelo patrono. Com a ajuda, alguns jogadores de bom nível foram contratados, mas o rendimento em campo não tem sido compatível, até aqui, com o investimento realizado.

As refeições são improvisadas. Os jogadores se alimentam no buffet do próprio hotel, nem sempre de forma adequada. Além de não corresponder às necessidades de atletas de alto rendimento, a comida ainda tem sua qualidade bastante questionada.

A estrutura de preparação física se resume a um convênio com uma academia de médio porte na Barra da Tijuca, o que assegura um mínimo de preparo. Caso deseje, o jogador poderá estender seu tempo de treinamento no local, desde que o faça por conta própria.

Naturalmente, a reação dentro do elenco é de desapontamento. O goleiro Alvez, da Seleção Uruguaia, sintetiza: “joguei muito tempo no Peñarol, lá não nos faltava nada. Aqui, apesar do esforço do pessoal, infelizmente a situação não é a mesma.”

O experiente zagueiro Vagner Bacharel, ex-Palmeiras, crava: “a falta de estrutura pode não ser o principal problema, mas quando se junta uma coisinha aqui a outra ali, isso certamente influi no desempenho do jogador, tanto físico quanto psicológico. Há vários colegas desiludidos, e isso com certeza é levado pro campo.”

Essa década tem sido cruel com o Botafogo em termos de resultados. O clube arrancou um 4º lugar no Brasileiro de 1980 e foi o sétimo colocado da última edição (que contou com 16 participantes). Nos demais anos, teve sérias dificuldades para se firmar entre os 20 primeiros. Chegou a ser rebaixado no confuso Brasileiro de 1986. No Estadual, o rendimento não foi muito melhor. O clube está chegando ao vigésimo ano sem um título. Mais, não consegue chegar entre os TRÊS primeiros desde 1979, o que significa que nesta década suas melhores participações alcançaram a opaca 4ª colocação. O fundo do poço aconteceu em 1985, quando o clube se salvou do rebaixamento apenas nas últimas rodadas. Na última edição, chegou na sétima colocação.

Expressão internacional inexiste. O clube chega a disputar alguns torneios, normalmente sem destaque, mas uma vergonhosa goleada sofrida para o Dinamo Kiev (6-0) praticamente fecha as portas do alvinegro para o exterior.

Pior, vê seu principal rival, o Flamengo, roubar-lhe duas glórias intangíveis, das quais se orgulhava. A vantagem no retrospecto e a goleada de 6-0, ambas pulverizadas de forma inapelável.

O Botafogo de hoje é uma caricatura da equipe que protagonizou com o Santos de Pelé, a Academia do Palmeiras e o Cruzeiro de Tostão algumas da mais belas páginas da história do futebol brasileiro. A equipe que serviu de base para seleções campeãs mundiais hoje praticamente vive de sua história e de sua (ainda) atuante torcida, que, quando mobilizada, é a única capaz de dividir o Maracanã com o Flamengo. Agarra-se ao mecenato como única fonte capaz de lhe proporcionar uma caricata, ainda que fugaz, manifestação de grandeza.

A diferença entre as realidades é tão verborrágica que o atual patrono do clube, num sincero momento de reflexão, não resiste e emenda uma frase categórica.

“Meu sonho é transformar o Botafogo num Flamengo”.