domingo, 20 de setembro de 2015

Alfarrábios do Melo

A casa está em obras.

Acontece que ainda não moro sozinho. Resido com os meus pais, o que, a despeito de me tolher certa liberdade, é conveniente em termos financeiros e na organização de horários e rotinas para me manter focado nos estudos, financiados com o soldo do árduo trabalho na indústria.

Ocorre que a casa está em obras. E não são reformas prosaicas. É piso, armário, azulejo, tudo. O apartamento está sendo descascado e dele surgirá um novo. Questão é que a convivência com pilhas de pedras, poeira, latas de tinta e estacas de madeira não me soa propriamente harmônica. Torna-se algo inóspito pensar em dormir amparado por galões de massa corrida, jantar escorado em ripas de pau d'arco, estudar acomodado em travesseiros de cimento.

Daí, tiro férias. E me mudo.

É coisa de uns 10 a 15 dias. Transfiro-me, de mochila e cuia, para a casa da namorada. Essa coisa de obras, no fim, acaba se tornando interessante, penso. Entretanto, como não existe jantar de graça, no combo está a necessidade de me adaptar aos excêntricos requisitos de convivência da sogrinha querida.

Enquanto vou coexistindo com essas questiúnculas familiares, o Flamengo vai construindo sua história na aconchegante Copa dos Campeões, torneio recém-criado para a CBF fazer uma média com as Federações do Norte-Nordeste. Esse ano as praças de Maceió e João Pessoa são as agraciadas com os jogos do torneio, composto exclusivamente de jogos eliminatórios, uma espécie de microcopa do Brasil reduzida a duas cidades e um mês de duração.

O Flamengo, no embalo do tri, vai passando o caterpilar em quem vê pela frente. A primeira vítima é o Bahia, logo abatido com contundentes 4-2 e expelido no jogo seguinte com um 2-0 protocolar. Depois, duas partidas nervosas e violentas com o Cruzeiro. Na primeira delas, os mineiros ainda conseguem parar Pet e Edilson na porrada e segurar o 0-0, mas no segundo jogo o rubro-negro, empurrado por uma torcida inflamada, enfia 3-0 em João Pessoa, placar que ficou muito, mas muito barato pelo que foi a partida. E chega à Final, contra o São Paulo.

Fosse eu um desavisado crédulo, poderia imaginar que o time paulista seria o favorito absoluto para a conquista do título. Com efeito, os comandados de Nelsinho Baptista desenvolveram uma campanha vistosa, com várias goleadas (4-2 e 5-0 no Sport, 2-0 e 4-1 no Coritiba). Ademais, os jornais e tevês não se cansam de exaltar as qualidades de um time formado por “estrelas” do quilate de Luís Fabiano, França, Belletti, Gustavo Nery, Kaká e Rogério Ceni. Os três dias que precedem o primeiro jogo são marcados por odes, poesias, loas e exaltações ao tricolor, tacitamente enquadrado como o “virtual campeão”. Olho aquele exagero todo e sorrio. Gosto disso.

Na primeira partida, sofro um desfalque importante. Meu pai, companhia indispensável de jornadas flamengas, está em viagem a serviço. Assim, resolvo assistir ao jogo na minha “hospedagem”, evitando deslocamentos tardios e desnecessários. Tudo certo, preparo minhas acomodações. A namorada prefere ir ler um livro, desinteressada das coisas da bola. Tudo parece tranquilo, apesar da expectativa usual para a decisão. Até que a sogrinha, em plena tarde de domingo, resolve se fechar no quarto e tirar seu sagrado sono da tarde, não sem antes recomendar:

“Só não faça muito barulho, que eu tenho sono leve”

Analiso a situação: o sono dela realmente é leve, diáfano, é capaz de acordar com moscas zumbindo. Se cai uma revista no chão, ela acorda. E de péssimo humor. Estudo a localização dos elementos: a televisão está separada da cabeceira da cama por uma parede não muito espessa. A vizinhança do apartamento é silenciosa ao extremo, de forma que a única fonte de ruído será a tevê, que já tratei de trazer ao volume mínimo somente com a mentalização dos efeitos de um possível desastre. Concluo: “ela não pode acordar em nenhuma hipótese. Tô f..., ahn, tô lenhado”

Busco internalizar todo o profundo conhecimento que reúno das coisas orientais, aqueles papos de budismo, zen não sei o que, taoísmo, meditação, taichichuan, taekwondo (não, pera, isso é luta...), enfim, vou precisar me erguer a um estado espiritual superior, alguma coisa assim, mas não adianta muito. Fico mais nervoso com o ruído da tevê do que com o jogo. O Luís Fabiano não me mete medo, o que me preocupa é o berro do narrador. Baixo mais um pouco o volume.

E assim, no mais absoluto e pleno silêncio, tevê murmurando, o jogo começa diante dos meus olhos. Partida de estudos, times tocando bola, embora desde o início já tentem imprimir certa velocidade. Ainda me permito sussurrar um comentário, “tomara que seja jogo de poucos gols. Que o Flamengo faça um ou dois a zero, estará bom. E que não haja muitas chances de gol”

Mal dá tempo de concluir o raciocínio. Edilson abre o placar e na saída de bola o São Paulo empata. Um pouco desconfortável com essa coisa de ficar em silêncio com o jogo comendo, vou percebendo, já meio que em desespero, que a partida será daquelas francas, abertas. Com efeito, as duas equipes se notabilizam por seus ataques devastadores e suas defesas não muito sólidas. Mas o Flamengo, que nitidamente desfruta do esmagador apoio da torcida paraibana, está mais à vontade e controla as ações, fustigando a medíocre defesa sãopaulina. Não demora muito, o jogo já está 3-1, e ainda estamos no primeiro tempo.

Intervalo. Olhos vigilantes, perscruto as dependências do apartamento e suas redondezas. Tudo na santa paz. A sogrinha ressona. Bebo umas duas águas. Metade do caminho está andado. Agora é só manter. O Flamengo, o jogo. Eu, a paz na sala. Acho que consigo.

Mas o Flamengo insiste em infernizar minha existência. Quando eu penso que o time vai administrar tocando bola, Zagallo manda a equipe partir pra cima. E dá-lhe perder gols. Ironicamente, na chance menos clara, um zagueiro paulista faz uma lambança e dá um bico em cima de Edilson. A bola espirrada vai parar no gol. Flamengo 4-1, ainda no comecinho do segundo tempo. Permito-me um soco no ar, agora já me permito um sorriso. Penso, “pô, logo no melhor do ano estou aqui, sem poder pular e cantar. Mas tá valendo, tá lindo”.

Acontece que agora Zagallo resolve recuar o time e o São Paulo, animal ferido, avança sem pensar no amanhã. O kamikaze dá certo e o Flamengo é acuado, vai pras cordas. Júlio César começa a fechar o gol. Em silêncio, transpiro. Mas o pior acontece. E acontece de novo. O time sofre dois gols rigorosamente iguais em um intervalo de dez minutos. Escanteio no primeiro pau, adversário fechando de cabeça. A goleada vira um apertado 4-3. E ainda faltam vinte minutos. A tensão se torna palpável, sinto o ar denso, cortável a faca. Suo, transpiro. Tudo em silêncio.

1982 me vem na hora à cabeça. O jogo que o Flamengo deixou de dar uma goleada histórica no São Paulo e quase saiu do campo amargando um inacreditável empate. Aqui tá parecido, as circunstâncias são semelhantes, espero que termine do mesmo jeito. A diferença básica, que é o que vai definir a história desse confronto, é que, ao contrário daquele longínquo jogo no Morumbi, o treinador flamengo manda o time voltar a avançar. E o jogo se torna assim tenso ao extremo, aberto, amplamente imprevisível.

Edilson, que está voando em campo, avança pela ponta direita. Dá um rabo de vaca num contrário. Olha a área, lá está somente seu desafeto Petkovic. Então, mesmo sem ângulo, resolve chutar. Rogério Ceni defende o balaço, mas o rebote espirra no horroroso zagueiro Rogério Pinheiro e vai parar dentro do gol. O Flamengo faz 5-3.

É demais. Os olhos esbugalham, meu organismo inteiro se crispa, os pelos se eriçam, os músculos se retesam, sinto que todas as entranhas de minha existência clamam pela necessidade biológica de um grito. É um desejo cujo controle não está mais circunscrito à minha manifestação de vontade. Meu corpo, minha alma, minha essência irá gritar, clamar, urrar a alegria de ser flamengo. Porque o Flamengo não pede licença, não pechincha migalhas, não clama afeto. O Flamengo domina verborrágico, sanguíneo, pulsante. O Flamengo se apossa e cria um transe, um estado mental etéreo, fugidio, ao qual ninguém resiste indiferente. E o grito simplesmente brota, jorra, ejacula-se caudaloso, ribomba num orgasmo febril e intenso, do qual emerjo vazio, leve, suave, feliz.

O jogo, decidido após o quinto tento, ainda corre com mais uma ou outra chance, porém mais nada de relevante acontece. O Flamengo faz 5-3 e leva boa vantagem para a partida seguinte. A transmissão se encerra com uma entrevista desanimada de Rogério Ceni, lombo ardido, castigado por cinco chibatadas flamengas pela segunda vez em pouco mais de um ano.

Exausto, adormeço.

Dia seguinte a sogra me cumprimenta, sorridente. Pergunto, “dormiu bem?”, “sim, como uma pedra. Nem parecia jogo”. Maroto, dou uma última olhada nas duas almofadas que me salvaram a pele, travestidas de mordaça. Penso aos gargalhos, “sempre é bom ter um plano de contingência”.

Tomo meu banho, arrumo-me, dou um beijo na namorada e ganho meu rumo.

Vou curtir o dia. Que amanheceu lindo.