domingo, 14 de junho de 2015

Alfarrábios do Melo

Resolvi assistir na Band.

Meio cansado dos exageros verborrágicos e das sistemáticas elegias à irrelevância praticadas pela equipe da Vênus Platinada e sem paciência para aturar os torcedores de microfone que comporiam a equipe local de transmissão do canal pago, preferi trazer para o canal menos cotado. Ao menos o narrador faz o estilão low-profile, da escola do Luciano do Valle. E o comentarista, o rechonchudo ex-goleiro corintiano, tem o mérito de não se sentir muito à vontade comentando jogos, o que o faz intervir pouco nas transmissões, mantendo-as assim em um nível tolerável.

Dois dedinhos do jogo em que vencemos o freguês no nosso salão de festas, o Couto Pereira: o time evolui a olhos, está sensivelmente se arrumando, começando a se movimentar de uma forma minimamente similar à de uma equipe que possui um esquema treinado. Cristóvão é bom treinador, tem que deixar trabalhar. Como gostam de falar os modernos, atuamos por uma bola, alcançamos o tento e depois foi compactar e resistir às investidas do adversário e da arbitragem cretina. O que é isso de seis minutos? Sobe logo a placa “até empatar”. É mais direto e evita ficarmos discutindo suposições sobre algo que já está escancarado. Aliás, Flamengo virou vitrine de árbitro paulista? Quem quiser, poderá ver que o time não passa três jogos sem um paulista no apito. E vêm em rodízio. Um opera, descansa, vem outro. Cadê a diretoria? Cadê o murro na mesa? Até quando?

Voltando à Band.

Lá pelos 30 do segundo tempo, eles encerram uma espécie de enquete. Se minha limitada capacidade de compreensão não foi afetada, os telespectadores podem ligar, mandar recado em rede social, enfim, escolher de alguma forma aquele que entendem ter sido o melhor jogador da partida. Daí, perto do final, é divulgado o resultado.

Pois ganhou o Márcio Araújo.

Márcio Araújo é o que se pode chamar de volante-volante. Jogador anos 90, dentro do gramado somente consegue conjugar os verbos “marcar, pegar, bater, cobrir, fechar, matar, correr”. À bola, dedica um tratamento formal, solene, de uma humildade que chega a comover. É como se lhe pedisse desculpas pelas lesões impingidas. Mas o pior é que até simpatizo com o rapaz, reconheço. Há dignidade no seio de toda aquela ruindade. Nosso volante não entende de bola, e sabe disso. Tem plena noção de sua falta de jeito, o que demonstra ao sair quase automaticamente ao encalço do adversário a quem acabou de presentear, como quem prevê que a bola, em retaliação aos maus tratos, tomará invariavelmente um rumo distinto do desejado. Mas, sem um ai, sem um cabelinho pintado, sem uma fotinho, sem um sapatinho colorido, nosso herói segue tirando de sua transpiração o seu sustento. Corre, pega, marca. Sofre. Faz sofrer. Da bola, mantém respeitosa distância. Às vezes a golpeia. Pobre da bola.

Então, senhoras e senhores, há um simbolismo na escolha do bravo Marujo como o nome do jogo. Sim, ele correu, pegou, marcou. Ajudou a trancar a porta da defesa. Trabalhou seu jogo operário que manteve os paranaenses a uma certa distância do nosso “bastião inexpugnável”. Suou a litros. Enfim, pode-se dizer que fez, sim, uma boa partida, dentro daquilo que é capaz de entregar.

E qual o problema, afinal de contas?

Ora, senhoras e senhores, essa é a questão. Quando uma partida se desenvolve de uma forma que seu grande nome é justamente um atleta que pratica um jogo tão divorciado daquilo que concebemos ser o futebol, algo está errado. O nosso futebol nativo parece doente, revestido de uma absoluta falta de perspectiva técnica, tática, enfim.

De fato, o jogo de hoje foi uma sessão de linchamento. A bola, sempre a pobre da bola, foi xingada, cuspida, atirada às feras, retalhada, lanhada, arrebentada. Um desavisado espectador que não estivesse movido com o combustível da devoção a uma das equipes certamente teria adormecido, ninado gostoso. A ruindade do espetáculo visto em campo foi quase humorística. Inverossímil. Jogador matando bola no pescoço, caindo sentado, errando lateral.

Aos apressados. Não, isso não é uma deplorável condenação ao time do Flamengo. Uns dizem, “o time é ruim”. Lógico que, em termos absolutos, o time é horroroso. Mas, em termos relativos, está dentro do que se pratica em uma primeira divisão do nosso futebol brasileiro. Anda se reforçando, e, a se confirmar a calmaria que aparenta irromper no horizonte, pode até pensar grande. Mesmo jogando algo não muito diferente do visto hoje, esse time do Flamengo é capaz de ir mais longe do que o mais surreal vaticínio poderia ser capaz de cravar.

Porque essa sessão de maus-tratos é universal. Jogos medíocres e inassistíveis pululam aos cachos semana sim e também. Com Flamengo, sem Flamengo. Dos dez jogos semanais, uns oito ou nove seguem roteiro similar ao espancamento de hoje. Quase tudo o que é time tem lá seu Márcio Araújo em campo. Outro dia vimos uma Copa do Mundo, a vanguarda do futebol aqui, na nossa porta. Algumas seleções jogando um futebol interessantíssimo, colaborativo, talentoso, ofensivo. Jogos espetaculares, ou no mínimo vistosos. Nenhum gênio ou craque fora de série (exceto o Messi, talvez o Robben), mas o conceito de coletividade e da competência técnica levado a dimensões bastante agradáveis aos olhos dos espectadores.

Aqui, na nossa porta. Para aprender no amor. Ou até na dor dos sete no lombo.

Mas aqui ainda continuamos correndo, pegando, marcando.

Boa semana a todos.