domingo, 31 de maio de 2015

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos,

Já foi fartamente discutida, debatida e repercutida a contratação do atacante Paolo Guerrero. Os rubro-negros exalaram amplas doses de euforia, ansiedade, divertiram-se com as reações emocionais e desconexas dos torcedores de microfone que se dizem jornalistas. Na visão tacanha de muitos, ao Flamengo caberia esse papel bonitinho e inofensivo de paladino da moralidade e dos bons costumes, mantendo-se lá pelo 12º lugar e se contentando em, de vez em quando, mendigar os dejetos dos “grandes” clubes de outros centros.

Pois o mocinho boboca resolveu morder.

O Flamengo tomou do Corinthians seu melhor jogador e ídolo.

Desenvolvendo, o “Flalido” foi ao berço da economia pujante desse Brasil varonil-il-il, ao São Paulo Quatrocentão, à Terra da Garoa, à “Locomotiva do País”, ao centro que, segundo muitos de seus habitantes, “segura a economia desse país nas costas”, pois o endividado, falido e quebrado Flamengo foi lá e tomou do “Todo Poderoso” Corinthians, o SCCP, o “novo chelsea”, o representante da Champions League na América Latina, o “clube dominante no futebol brasileiro”, pois foi lá e lhe tomou seu melhor jogador. Seu artilheiro. Seu ídolo. Tomou sem disparar um tiro, sem cama, sem chama, sem drama. Sem luta. Chegou, avisou “vou levar” e levou. Sem maior protocolo. Como acontece quando se vai a uma Chapecoense trazer um Zezinho da vida.

Inevitável posicionar essa manobra de fortíssimo caráter simbólico com outras transações rumorosas acontecidas em outros tempos. Operações que explicaram, didaticamente, o momento vivido pelas equipes envolvidas. Transações que significaram “passagens de bastão”, ou selaram o desfecho de processos já em andamento. Demonstraram, acima de tudo, o momento das equipes envolvidas.

Donde, seguirão alguns desses exemplos. Que a contratação do Guerrero também se revista de um símbolo e seja o marco inicial de um processo irreversível de retomada do protagonismo que jamais deveríamos ter perdido.

* * *

BATISTA, 1981 (Internacional para Grêmio)
Com a venda de Falcão para a Roma, o talentoso volante Batista se torna seu substituto natural nos corações colorados. Jogador moderno para a época, é capaz de atuar na proteção à área e na armação, onde se sente mais à vontade. Seu estilo viril (embora técnico), que lhe vale críticas das imprensas carioca e paulista, não é empecilho para que Telê o mantenha entre os convocados à Seleção Brasileira. Após uma atuação irrepreensível numa goleada histórica sobre o Palmeiras (6-0) pelo Brasileiro, Batista fratura a perna contra o Sport. Durante a inatividade, seu contrato é expirado. A diretoria do Internacional, apreensiva com suas condições físicas após o retorno, protela a renovação. O impasse vai se estendendo e parece sem solução, mesmo após a recuperação de Batista. É quando o jogador, preocupado com uma inatividade que poderá comprometer sua participação na Copa do Mundo, resolve aceitar uma proposta do Grêmio, que deposita o valor do “passe” na Federação e leva o jogador. A contratação de Batista simboliza o momento em que o Grêmio passa a exercer o domínio amplo e absoluto do futebol gaúcho, chegando inclusive a conquistar Libertadores e Mundial. O Internacional vê desmoronar a Era Falcão, ainda conquista alguns Estaduais, mas se manterá por um bom tempo como sombra do rival.

NELINHO, 1982 (Cruzeiro para Atlético-MG)
O Cruzeiro vive gravíssima crise financeira no início dos anos 80, decorrente do endividamento causado pela manutenção das caras equipes da década anterior. Seus principais jogadores começam a protagonizar um melancólico êxodo em direção a outras agremiações. Como agravante, um dos seus melhores jogadores, Joãozinho, sofre uma fratura e, ao retornar, perde competitividade. Resta a estrela maior, Nelinho, lateral-direito extremamente ofensivo oriundo do Bonsucesso que se notabiliza por seu chute fortíssimo. Enquanto isso, o Atlético-MG, que reestruturou suas divisões de base, começa a colher os frutos e, após um período batendo sistematicamente o rival, passa a ganhar expressão nacional. Em 1982 Nelinho não chega a um acordo com o Cruzeiro, que, completamente asfixiado financeiramente, aceita uma oferta milionária do maior rival por sua estrela. Mais do que humilhante, a transação viabiliza a sobrevivência do clube a curto prazo. Enquanto isso, o Atlético seguirá presente nas decisões dos principais campeonatos do país, embora não conquiste nenhum. Somente no final da década de 80 o equilíbrio regional será restabelecido.

FILLOL e JOÃO PAULO, 1984 (Argentinos Jrs, Santos para Flamengo)
Entre 1983 e 1984, a diretoria do Flamengo avaliou que seu elenco teria a necessidade de trazer um goleiro e um ponta-esquerda. O goleiro iria suprir a aposentadoria de Raul (tendo em vista que o reserva, Cantarele, não era considerado confiável) e o ponta-esquerda daria uma alternativa tática a uma equipe que já começava a envelhecer. Pois o Flamengo foi ao mercado e trouxe o principal goleiro em atividade na América do Sul (Fillol), tido com um dos melhores do mundo à época, titular absoluto da Seleção Argentina. Ademais, foi a São Paulo e tirou do Santos, vice-campeão brasileiro e rival direto na Libertadores, um dos seus principais atacantes, com várias passagens pela Seleção Brasileira, o arisco e goleador João Paulo. Em que pese o relativo sucesso das contratações (Fillol fez uma brilhante temporada em 1984, mas perdeu foco no ano seguinte, por conta das polêmicas envolvendo sua liberação para a seleção, e João Paulo sentiu o peso da camisa e logo caiu para a reserva), as transações demonstram que, à época, o Flamengo, que era de longe o clube mais conceituado e prestigiado do país, reunia a capacidade de captar e contratar profissionais de primeira linha para sua equipe. Isso ainda se manteria ao longo de praticamente toda a década.

BEBETO, 1989 (Flamengo para Vasco)
Transferir-se para o futebol europeu torna-se quase uma obsessão para Bebeto, já há seis anos defendendo o Flamengo. O futebol brasileiro já aceita e convive com a realidade de ver seus melhores jogadores indo atuar fora do país, e Bebeto percebe ter chegado sua hora. Está no auge, é goleador no clube, na Seleção. O contrato está perto de vencer. Seu procurador busca cavar transferências para equipes como Roma e Bayern Munique. As negociações com os alemães evoluem, mas a diretoria do Flamengo, irritada com a insistência e o assédio ao jogador em um momento decisivo do Estadual, consegue, através de algumas manobras diversionistas, impedir a negociação. Irritado e magoado, Bebeto se deixa seduzir por uma proposta do Vasco e deixa o Flamengo para defender o rival, numa das mais polêmicas transações da história do futebol carioca. O símbolo maior dessa negociação é a demonstração de que os sucessivos erros da administração flamenga começam a cobrar seu preço. O Flamengo ainda se manterá, a duras penas, protagonista por alguns anos, mas enfim sucumbirá ao caos. Ironicamente, Bebeto, apesar do bom início no Vasco (conquista um Brasileiro), tem passagem apagada e marcada por lesões.

EDMUNDO, 1993 (Vasco para Palmeiras)

O boom vivido pelo futebol carioca nos anos 1991-92, revelando pencas de bons jogadores e formando equipes de ponta, não se mostra sustentável, por uma série de fatores. Mais organizados e com capacidade de investimento, os clubes paulistas vão como lobos sobre os alquebrados times do Rio, arrancando-lhes seus principais jogadores. Nesse contexto, a principal transação, que simboliza esse momento, é a transferência de Edmundo, melhor jogador e candidato a ídolo vascaíno após a aposentadoria de Roberto e a venda de Bebeto, para o Palmeiras. Outros jogadores (Valdeir, Válber, Marcelinho, Júnior Baiano, Djalminha) irão trilhar o mesmo caminho, pavimentando um domínio que se estenderá ao longo de praticamente toda a década de 90.